O terceiro e penúltimo dia do Portugal Fashion começou com um dos nomes fortes do programa. Nuno Baltazar transformou a sala do desfile — circundada por grades e com redes suspensas, a passerelle assumiu a forma de um campo vedado, preparado para exibir uma reflexão do criador sobre gente sem espaço, em particular sobre o artista que não tem onde mostrar aquilo que faz, que está num sítio onde “não se sente amando”. Sugestionado por “Sanctuary”, performance de Bratt Bailey que, no último verão, passou pelo Teatro Municipal do Porto, o designer abriu o leque de possíveis interpretações. “Displaced”, a 30ª coleção de Baltazar, trata o sentimento de deslocamento.
“É uma forma de dizer o que estou a sentir”, afirma, em conversa com o Observador, após o desfile. “Há uma frase da Frida Kahlo que é: ‘Onde não puderes amar, não te demores’. E, às vezes, estás no teu país, amas o teu país, mas já não o podes amar, tens de sair. Acontece com o teu país, com uma pessoa, com um trabalho, com uma religião. Há tantas coisas que temos como certas e que amamos e que, por vezes, somos obrigados a deixar de amar”, refere. “Displaced Love”, o amor sem lugar, foi a frase que estampou ao longo da coleção. Do guarda-roupa para o próximo inverno, masculino e feminino, Baltazar fez a ponte para o seu próprio estado de alma.
Esse reflexo foi expressivo. A paleta encolheu, baseada em verdes secos, pretos e um vermelho tímido, não vibrante. A alfaiataria brilhou, bem como a desconstrução técnica — houve costuras viradas para fora, fitas de remate aplicadas fora de contexto, pespontos, apontamentos em lurex, sobreposições de tecidos e de peças. Os ombros foram o ponto alto da silhueta feminina. Os drapeados, os plissados diagonais e os acabamentos em fio deram forma e textura a sedas, lãs, viscoses, algodões jacquards e tafetás.
No mesmo dia, o criador acabou por revelar que este seria o seu último desfile no Portugal Fashion, segundo noticiou a revista Elle. Consequência do tal estado de espírito, implícito na roupa e no cenário. Nuno Baltazar ainda não tem um plano de ação. A certeza é só uma: continuará a apresentar coleções, seja num formato independente ou não. É de relembrar que Nuno Baltazar também já integrou o calendário da ModaLisboa. O seu último desfile na semana da moda lisboeta foi em março de 2014, dez anos depois se ter ter estreado na mesma passerelle em nome individual e seis meses antes da sua estreia, já como nome consolidado, no Portugal Fashion. Displaced, Baltazar volta a recorrer à coleção atual para explicar a sua própria decisão. Afinal, as peças são a única coisa que o liga ao momento em que ainda tinha lugar.
Engenho, jogo de cintura, determinação, criatividade e um gosto incondicional pela moda — são mais ou menos estes os atributos que um designer tem de ter ou desenvolver para conseguir levar a sua avante. Que o diga Susana Bettencourt que, na tarde de sábado, também fez da passerelle o meio para comunicar uma mudança estratégica. “Chamo-lhe ‘2019 No Season’, é uma coleção conceito. Serve para mostrar do que a equipa Susana Bettencourt é capaz. Estou constantemente a fazer coleções comerciais e sou muito focada no meu conceito. Tudo vem daí, mas acho que o meu público final não vê o conceito e a história que temos por trás”, explica a criadora.
O desfile não foi bem desfile. Dez modelos entraram na sala e acabaram imóveis, em cima de bancos, como se fossem obras de arte numa galeria, enquanto a própria criadora, ao microfone, convidava a plateia a levantar-se e a ver de perto os coordenados. Na mesma sala, havia posters pendurados no teto. Susana Bettencourt, que construiu uma carreira assente em malhas e na sua manipulação através de nova tecnologia, juntou uma espécie de moodboard ao vivo e a cores. Com peças conceptuais, não concebidas para serem usadas na rua, lançou o mote de uma coleção comercial que já existe, mas que só será apresentada na próxima edição do Portugal Fashion, em outubro.
“Quis comunicar diretamente o meu conceito. Em todas as coleção, estas peças são imaginadas por mim, só não são feitas por causa de limitações financeiras e de tempo”, refere. O tempo é precisamente a ideia base da coleção. Os elementos circulares remetem para os mecanismos de precisão que fazem um relógio funcionar. Não palpável é a realidade por detrás do tema e para a qual a criadora puxou o foco. Susana frisa o aumento do consumo de antidepressivos em Portugal. “O relógio tem de parar e eu queria passar essa mensagem com a coleção”, reafirma.
“Ou fazia isto ou já não fazia sentido fazer coleções comerciais. Estou cansada, não vendo o suficiente. Estamos todos em sufoco, porque é que, de seis em seis meses, tenho de fazer uma coleção se ela não vende o suficiente para sustentar o meu ordenado e o da minha equipa? Eu, como todos os outros designers, estou sufocada por este sistema, por não nos podermos expressar, por não podermos fazer o desfile como queremos, de não podermos passar o nosso conceito como ele merece ser passado. O Portugal Fashion dá-nos uma plataforma incrível, o mundo é que está à espera que nos comportemos de uma certa forma. Quero acabar com isso. Faço a minha arte e faço a minha marca como quero, não é porque é verão nem porque é inverno. Estou cansada de seguir o rebanho”, confessa Susana Bettencourt, minutos após o final da apresentação. Com as peças apresentadas neste penúltimo dia de Portugal Fashion, totalmente feitas à mão, a criadora regressou às origens, retomou o trabalho manual e a missão, entretanto, relegada para segundo plano, de resgatar o artesanato português.
Micaela Oliveira e a prole dos craques de futebol
Mas sábado foi também o dia em que as grandes marcas nacionais desfilaram no Portugal Fashion. Meam, Concreto e o habitual desfile de calçado e acessórios — do qual fizeram parte as marcas Ambitious, Fly London, Gladz, J. Reinaldo, Lemon Jelly, Nobrand, Rufel e The Baron’s Cage — preencheram parte da agenda da tarde, que culminou com Micaela Oliveira. A criadora, conhecida por vestir figuras públicas como Rita Pereira e Cristina Ferreira, desdobrou-se em frentes múltiplas. Das silhuetas mais puritanas, compostas por saias longas e blazers cintados, aos brilhos, plumas e rendas que a popularizaram enquanto designer de vestidos, Micaela não deixou muita coisa de fora. O momento ficou também marcado pela inclusão de modelos de criança na coleção. A ex-manequim Diana Pereira abriu o desfile com a filha. Seguiram-se outras ilustres descendências, como as filhas dos jogadores Pepe e Fábio Coentrão e do treinador André Villas-Boas. A mulher e a filha de Salvio também desfilaram.
A noite acabaria por desembocar no desfile da dupla Alves/Gonçalves, um banho de sensibilidade e bom gosto, de silhuetas esguias, elegantes e rebeldes. Um “olhar emocional sobre o feminino”, como explica Manuel Alves. O desfile arrancou com silhuetas marcadas por cintos largos e, rapidamente, os ombros explodiram em blusões acolchoados com mangas balão. É o resultado de deixar o streetwear mais contemporâneo nas mãos da dupla de criadores. Tornaram-no mais sofisticado, carregaram-no de materiais de acabamento envernizado, uma espécie de assinatura Alves/Gonçalves, exageraram a amplitude das saias, abusaram dos fechos e plissaram as sedas de forma assimétrica. Por momentos, Manuel Alves e José Manuel Gonçalves transportaram a passerelle da alfândega até uma das grandes capitais mundiais. O que se viu sob os holofotes foi moda pura e dura.
Coube a Luís Onofre encerrar o terceiro dia de Portugal Fashion. Atento às tendências, o criador português de calçado pegou em modelos tradicionalmente associados aos desportos de neve para dar forma à coleção do próximo inverno. Este domingo é o último dia de desfiles na Alfândega do Porto. Marques’Almeida e Alexandra Moura são os nomes mais internacionais do calendário e abrem caminho para Carla Pontes e David Catalán, que fecham esta 44ª edição do Portugal Fashion.