A história chegou por email às mãos do bispo de Aveiro em finais de fevereiro e dava conta de que um rapaz sofrera abusos sexuais ao longo de dois anos por um padre, que já morreu, e, numa das ocasiões, por outros dois sacerdotes ainda ao serviço daquela diocese. Tudo tinha acontecido há cerca de 40 anos e quem o relatava referia também que o caso até já era do conhecimento do Observador, no âmbito de uma investigação sobre abusos sexuais na Igreja.
O email, cuja existência e conteúdo foi confirmado ao Observador por fontes da Igreja, vinha, pelo menos, com uma mentira: a pessoa que o assinava dizia que o Observador estaria disponível para pagar 10 mil euros à vítima, para que contasse o seu caso — o que nunca aconteceu. Mais à frente, sublinhava que tinha tido muitos gastos com psicólogos, por exemplo, e que o dinheiro lhe fazia falta, o que foi interpretado como um pedido encapotado de uma contrapartida para que os pormenores dos alegados crimes não fossem divulgados.
Era noite de quarta-feira e o bispo de Aveiro, D. António Moiteiro, ficou incrédulo com o que lia. Imprimiu o email e, na manhã seguinte, levou-o à Polícia Judiciária, onde se deslocou na companhia de um elemento da hierarquia da Igreja, para que aquela denúncia de alegados abusos sexuais fosse investigada. Apresentou uma denúncia formal e prestou declarações aos inspetores da PJ. Mas, ao mesmo tempo, desconfiou da referência que o email fazia aos tais pagamentos que o Observador supostamente faria em troca das denúncias e temeu estar perante uma tentativa de extorsão à diocese.
A primeira preocupação da PJ foi investigar a veracidade da denúncia de abuso sexual. Fonte policial contactada pelo Observador explica que, apesar de um dos padres referidos — apontado como o principal responsável pelos abusos sexuais — já ter morrido, era relatado um episódio que envolvia outros dois sacerdotes, que ainda estão ao serviço da diocese e que terão sido identificados no email. “É preciso investigar os seus percursos e perceber se foram já alvo de outras suspeitas ou, mesmo, queixas formais”, adiantou. “Não sei, de momento, se este processo vai acabar num verdadeiro caso de abuso sexual na Igreja ou de extorsão ou denúncia caluniosa”, ressalvou a mesma fonte, explicando que, primeiro, era preciso investigar e que era isso que estava a ser feito.
Independentemente das suspeitas, a PJ não esperou muito até começar a tentar descortinar o caso. Em menos de 24 horas, a alegada vítima que era referida no email recebeu um telefonema de um inspetor de Aveiro a pedir-lhe que se encontrassem para conversar sobre o caso. O inspetor disse até que se deslocava a Coimbra, para não perturbar a vida do homem, que teria sofrido abusos sexuais cerca de 40 anos antes. Mas, até à data da publicação deste artigo, a PJ ainda não tinha conseguido falar pessoalmente com ele.
Pouco depois do primeiro contacto da PJ, também a diocese contactou a alegada vítima, mas por email. No dia 3 de março, o bispo sugeriu que se encontrassem pessoalmente para definirem se avançariam com um processo civil e/ou eclesiástico e para obter mais informações sobre a denúncia que tinha chegado à diocese. A alegada vítima, porém, nem sequer lhe respondeu.
Esse email do bispo acabaria por ser reencaminhado para o Observador pela própria alegada vítima cinco dias depois, mas logo no primeiro parágrafo havia um corte no texto que tirava o sentido à frase e levantava algumas questões. Fonte eclesiástica acabaria por confirmar que aquele primeiro parágrafo fora truncado e que as informações relativas ao Observador e ao valor de 10 mil euros tinham sido eliminadas do conteúdo que foi mostrado ao jornal.
Caso foi denunciado ao Observador
A história dos alegados abusos chegou ao Observador dias antes de aquele email chegar à diocese de Aveiro. O primeiro contacto também foi feito por escrito, através do email geral do jornal. A mensagem chegou às 9h00 da manhã do dia 21 de fevereiro, escrita pela alegada vítima:
“Fui violado em garoto por alguns padres durante a minha passagem pelos escuteiros católicos, e alguns anos feitos a propósito do acompanhamento psicológico confrontei um deles que me tentou subornar para estar calado, mas preciso de saber quais as condições para que possa contar a minha história.”
Quatro minutos depois, para ter a certeza de que a sua história chegava ao jornal, preencheu o formulário que o Observador criou na sequência da publicação de uma série de trabalhos sobre os abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal, destinado aos leitores que quisessem contar uma história que tivessem vivido ou de que tivessem tido conhecimento.
“Para simplificar, fui escuteiro em Águeda e fui abusado sexualmente por três padres e recentemente fui aconselhado a confrontar um deles que me tentou subornar para estar calado”, escrevia.
O Observador contatou-o de imediato. Como não lhe era possível falar naquele momento, a equipa de jornalistas responsável por acompanhar o tema optou por enviar um email a dizer que o encontro podia ser pessoal ou por telefone. E, em resposta à questão sobre “as condições” para que pudesse contar a sua história, foi explicado que, se assim o desejasse, o seu anonimato estaria garantido. Em nenhum momento foi pedida ou proposta qualquer contrapartida. O Observador não oferece — nem ofereceria — qualquer valor monetário ou qualquer outra contrapartida pelas histórias que lhe possam chegar, seja por que meio for.
Ainda antes de a PJ contactar a alegada vítima, que tem agora 51 anos e é motorista em Coimbra, o próprio voltou a falar com o Observador para recordar a história dos alegados abusos sexuais que teria sofrido. Segundo ele, enquanto relatava ao Observador pormenores do que vivera entre os 14 e os 16 anos, a memória ia-lhe trazendo novos fragmentos que julgava esquecidos.
O homem que conta toda esta história voltou a falar com o Observador no dia em que foi contactado pela PJ. Revelou-se surpreendido com aquele telefonema e até mostrou algum desconforto, pensando que tinham sido os jornalistas a contar a sua história à Judiciária. Só um dia depois voltou a falar com o Observador com uma “nova informação”. “Afinal quem contou tudo à PJ foi a minha terapeuta. Ela reencaminhou esse email e enviou depois um texto com a minha história”, contou. “Acabei por perdoá-la porque ela diz que fez aquilo para o meu bem”, justificou.
O Observador pediu-lhe, então, que falasse com a sua terapeuta para que ela prestasse declarações para o trabalho jornalístico. Teria sido ela a acompanhá-lo durante os últimos dez anos e, na versão dele, a incentivá-lo a confrontar o agressor e a contar a sua história. A equipa do Observador pediu-lhe também que se encontrassem em Coimbra, no dia em que fosse ouvido na PJ — que ele disse ser no dia 13 de março. A alegada vítima mostrou-se completamente disponível para ambos os pedidos, mas este acabou por ser o último contacto estabelecido.
Já em Coimbra, para o encontro combinado, o Observador tentou várias vezes telefonar à suposta vítima, sem sucesso. Junto da PJ percebeu que, afinal, nenhum inspetor da Judiciária de Aveiro se tinha deslocado ali, naquele dia, para falar com o queixoso. Já na Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra, onde supostamente trabalharia a sua terapeuta, o Observador confirmou não existir nenhuma professora com o nome que a suposta vítima fornecera aos jornalistas. Ainda foi tentado um último contacto por email, confrontando a alegada vítima com todas estas informações, mas, até agora, não houve qualquer resposta.
Neste momento, a PJ tem um inquérito aberto e está ainda a investigar se a história que lhe chegou é verdadeira e se existem dois padres suspeitos de abuso sexual a prestar serviço sacerdotal na diocese de Aveiro. Caso a alegada vítima continue a recusar encontros com a polícia, poderá mesmo vir a ser detida para prestar declarações. Para já, desconhece-se também se foi, ou não, a própria vítima que denunciou o caso à diocese através do email que foi interpretado pela Igreja como uma possível tentativa de extorsão. O Observador vai continuar a investigar esta história.