Em 1930, Fernando Pessoa publicou num do jornal açoriano um poema até então inédito. “Névoa” apareceu junto a “Minuete Invisível”, que tinha sido apresentado pela primeira vez no primeiro (e único) número da Portugal Futurista, e a um texto de apresentação assinado pelo jornalista Rebelo de Bettencourt. Depois dessa data, o poema não voltou a ser publicado. Caiu no esquecimento, até que um investigador o encontrou, por acaso, mais de 80 anos depois. Agora, entrou finalmente para o corpus pessoano, ao ser incluído no mais recente volume da edição crítica da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM).

A única versão que se conhece de “Névoa” foi publicada na página “Letras” do Diário dos Açores, o mais antigo jornal diário do arquipélago, a 17 de julho de 1930, cinco anos antes da morte de Pessoa. O suplemento trazia um texto sobre o poeta, intitulado apenas “Fernando Pessôa”, retirado do livro O Mundo das Imagens: Crónicas, de Rebelo de Bettencourt. O jornalista açoriano, seis anos mais novo do que Pessoa, tinha participado na Portugal Futurista com um texto sobre Santa-Rita Pintor, de quem era amigo. A revista, publicada em 1917, “excedia tudo quanto em audácia e originalidade se tinha até então publicado”, de acordo com o próprio Bettencourt.

Enquanto redator principal da Lisboa Galante, Rebelo Bettencourt tinha defendido, contra Sousa Lopes, que os pintores modernistas deviam ser representados no Museu de Arte Contemporânea. Um ano antes, em 1928, tinha publicado pela editora Ressurgimento o livro de onde foi retirado o excerto usado pelo Diário dos Açores, onde descreveu a obra de Fernando Pessoa, um poeta que tinha “o dom de pensar”, como “fragmentária”. “As suas imagens são ainda pensamentos, e o próprio ritmo dos seus versos é também uma série de ideias – ideias postas em música”, referiu no texto reproduzido pelo diário açoriano, fundado em 1870.

Considerando que a personalidade de Pessoa era “tão complexa ou tão completa” que tinha de se desdobrar em Álvaro de Campos, o jornalista considerou que a obra do poeta estava praticamente esquecida, mas que “o seu espírito original e criador, a subtileza do seu pensamento” não haveriam de “morrer tão cedo”. “Antes estarão sempre, como amparo e guia, ao lado de todos quantos, sentindo na sua inteligência a necessidade quase física de ser uma outra coisa, mais completa e perfeita, nele hão-de sentir o precursor dum grande movimento e a origem duma nova vida”, declarou.

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O poema que foi esquecido e descoberto por acaso

Depois da sua publicação no Diário dos Açores, “Névoa” ficou esquecido durante várias décadas, até que o investigador e editor Vasco Rosa o encontrou. Questionado pelo Observador sobre a descoberta, Rosa admitiu já não se lembrar ao certo em que circunstâncias se deparou com o poema, mas que provavelmente terá sido por causa de “qualquer pesquisa que estava a fazer na época, sobre Raul Brandão ou sobre António Dacosta”, dois autores sobre os quais tem vindo a trabalhar.

“Fui folhear anos a fio esse jornal açoriano e tendo encontrado o poema verifiquei no exaustivo inventário pessoano organizado por José Blanco que não estava identificado, e em seguida que não estava em qualquer outro livro, do Fernando Pessoa ou dos heterónimos”, afirmou o investigador, salientando que “a vantagem de se percorrerem exaustivamente publicações periódicas é que se vão encontrando curiosidades variadas, e como a imprensa açoriana é tida como periférica, a ninguém pareceu útil ir ver o que por lá havia”.

A primeira edição crítica da Mensagem e dos poemas publicados em vida chegou às livrarias em fevereiro. A apresentação aconteceu neste mês de março

Vasco Rosa sugeriu a sua publicação aos editores da Pessoa Plural, Paulo de Medeiros e Jerónimo Pizarro, que estava então a arrancar. Foi assim que, 82 anos depois de ter aparecido nas páginas do Diário dos Açores, que “Névoa” voltou a ser publicado no n.º 1 da revista de Estudos Pessoanos editada pela Brown University, Warwick University e Universidad de los Andes. “Para mim, é sempre muito gratificante passar a outros o que lhes pode ser útil nos seus próprios trabalhos”, afirmou Rosa, que acredita que a “originalidade” do poema se deve “certamente a Armando Côrtes-Rodrigues, o amigo açoriano de Pessoa e um dos elementos de Orpheu”. Côrtes-Rodrigues, que participou nos dois números da revista modernista, terá, presumivelmente, conhecido Rebelo de Bettencourt.

Luiz Fagundes Duarte, responsável pela edição crítica dos poemas publicados em vida por Fernando Pessoa que inclui pela primeira vez “Névoa”, acredita que é “pouco provável” que uma descoberta como a que foi feita por Vasco Rosa se repita. “Pessoa já foi de tal maneira esquadrinhado que qualquer texto assinado por ele, publicado em qualquer algures, dificilmente passaria despercebido”, afirmou, em entrevista ao Observador, admitindo, no entanto, que este poema “em concreto” tinha permanecido “esquecido”. “Por isso, devemos ser cuidadosos e admitir, sempre, que o corpus pessoano, mesmo o publicado em vida, pode não estar fechado.”

O poema, na íntegra:

“A névoa involve a montanha,
Húmido, um frio desceu.
O que é esta mágoa estranha
Que o coração me prendeu?

Parece ser a tristeza
De alguém de quem sou actor,
Com fantasiada viveza
Tornada já minha dor.

Mas, não sei porquê, me dói
Qual se fora eu a ilusão;
E há névoa em tudo o que foi
E frio em meu coração.”

A primeira edição crítica dos poemas publicados em vida e da Mensagem

Desde 1988, quando foi criado o grupo de trabalho responsável pelas edições críticas da obra de Fernando Pessoa, a INCM já publicou mais de duas dezenas de livros. Desta lista não constava, no entanto, a Mensagem. A primeira edição crítica da obra foi apenas publicada pela INCM no passado mês de fevereiro, juntamente com os outros poemas que o poeta deu a conhecer em vida. A edição é de Luiz Fagundes Duarte, que coordena a coleção das obras completas de Vitorino Nemésio, publicadas pela mesma editora em parceria com a açoriana Companhia das Ilhas.

Fernando Pessoa era “um rapaz planeado” e “muito produtivo”, mas durante a sua vida só publicou 129 poemas, entre 1902 e 1935. Poemas soltos mas também alguns conjuntos, com título e coesão interna, mas compostos em momentos diferente, como explicou Fagundes Duarte na introdução do novo volume da INCM. A Mensagem, por exemplo, é composto por poemas escritos entre 1913 e, provavelmente, 1934. Isto significa que o único livro publicado pelo poeta, um ano antes da sua morte, ocupou dois terços de toda a sua carreira literária.

Isto significa que em Mensagem e Poemas Publicados em Vida é possível encontrar textos de períodos muito diferentes, que “Fernando Pessoa, num dado contexto histórico, social e estético, entendeu publicar com o seu nome”. O volume, que foi apresentado no passado dia 12 de março na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, está dividido em três partes:

  • Uma primeira, composta pelos poemas, soltos ou em pequenos conjuntos, publicados entre 1902 e 1935, ano da morte de Pessoa, “respeitando os conjuntos e a devida cronologia de publicação”, como frisou Fagundes Duarte;
  • Uma segunda, onde foi colocada a Mensagem com a sua estrutura original;
  • E uma terceira, com as traduções feitas e publicadas por Pessoa, organizadas por ordem cronológica de publicação.

Além de “Névoa”, o volume tem outras novidades. Uma delas é a publicação de cinco poemas em francês e em inglês: “Trois Chansons Mortes”, publicados na revista Contemporânea em janeiro de 1923, e “Meantime” e “Spell”, dados a conhecer na The Athenaeum (Londres), a 30 de janeiro de 1920, e na Contemporânea, em março de 1923. O livro inclui também as traduções feitas por Pessoa, nomeadamente de poemas dos uruguaios Ramón de Santiago e Alejandro Margariños Cervantes.