Como muitos outros norte-americanos, Kevin Costner cresceu com armas por perto. O avô tinha uma, que passou para o seu pai e depois para ele. Um dia passará para os seus filhos, se eles a quiserem. Aos 64 anos, o ator, que entra no novo filme da Netflix, admite que tem uma espécie de ligação emocional com as armas: “Quando encosto [a arma que era do meu avó] à minha bochecha, é a mesma coisa que um bonito colar que uma mulher recebeu da sua mãe e que depois irá passar à sua filha”. Contudo, defende que a legislação devia ser mais restrita e que certo tipo de armas não devia estar ao acesso de qualquer um.

Costner esteve no início desta semana em Madrid para promover “Emboscada Final”, uma produção da Netflix sobre os homens que apanharam os famosos bandidos Bonnie e Clyde. Participou em várias mesas-redondas com jornalistas de todos os cantos da Europa (o Observador esteve numa delas) e respondeu a todas as perguntas sem rodeios. Simpático e falador, parecia demasiado confortável no cadeirão “fofinho” de um dos hotéis do Passeo de la Castellana para se ir embora. Quando o tempo concedido chegou ao fim, continuou a falar. A entrevista só terminou quando os jornalistas foram obrigados a sair do quarto.

Questionado sobre o tema das armas, o ator, conhecido por filmes como “Dança com Lobos”, admitiu que não é possível “discutir com as pessoas que são” contra elas, e que ele próprio não o tenta fazer. Por isso, preferiu antes explicar o que é que “representam para si”. “Caço desde pequeno”, começou por dizer, admitindo que as armas sempre fizerem parte da experiência de caçar, sozinho na natureza ou com o pai, William Costner. “E agora com os meus filhos. Eles é que devem decidir como se sentem em relação a caçar. Já os levei comigo e não os forço a isso, como não os forço a gostar de desporto. Apenas os exponho àquilo que me fez feliz e que gosto de fazer. Gosto de caçar com os meus cães. Às vezes vou apenas com eles e sem uma arma.”

Apesar da relação que tem com as armas, Costner acredita que a discussão sobre a sua restrição nos Estados Unidos da América nem sequer devia existir: “Para mim, não existe debate. Devia haver leis muito mais restritas, não devia haver armas automáticas [à venda]. Mas nós, [norte-americanos] por alguma razão não as queremos largar”. Isso tem a ver com a história do seu país, forjado “com sangue”, mas também com os seus políticos, que “não têm o que é preciso para fazer frente a isso. Todos querem ser reeleitos”.

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“[Os meus familiares] tiveram de ir para a Califórnia, como n’As Vinhas da Ira. O meu avô era como o Tom Joad”

A questão das armas surgiu na sequência de várias perguntas relacionadas com o filme que Costner esteve em Madrid a promover. “Emboscada Final” conta a história de Francis Hamer (a personagem que o ator norte-americano interpreta) e Maney Gault (Woody Harrelson), os homens contratados pelo governo do Texas para apanharem Bonnie e Clyde, há dois anos em fuga. Esta é a primeira vez que uma longa-metragem conta a história dos dois criminosos de uma perspetiva diferente (neste caso, de quem os perseguiu), quebrando com a linha de filmes que, desde os anos 60, têm ajudado a criar uma imagem romantizada do casal de namorados.

O primeiro, e talvez o mais famoso destes filmes, surgiu em 1967. Realizado por Arthur Penn, com Warren Beatty e Faye Dunaway nos papéis principais, “Bonnie e Clyde” ajudou a construir a imagem glamorosa dos dois bandidos que persiste até aos dias de hoje. Costner lembra-se de o ter visto quando era adolescente (o ator tinha 12 anos quando a longa-metragem saiu) e de o ter adorado. “Achava que era muito bonito”, disse, admitindo que chegou a ler vários livros sobre os dois criminosos porque “tinha muito interesse naquela época”. O fascínio, contudo, não tinha sido criado apenas pelo filme de Penn. A família do ator é originária do Oklahoma, estado muito afetado pela Grande Depressão dos anos 30, o tempo de Bonnie e Clyde.

[O trailer de “Emboscada Final”:]

“[Os meus familiares] estiveram naqueles campos de migrante [que aparecem em “Emboscada Final”]. Puseram dinheiro no banco e perderam tudo. Nunca recuperaram dessas mudanças na sua vida. Tiveram de ir para a Califórnia, como n’As Vinhas da Ira. O meu avô era como o Tom Joad.” Joad, protagonista do romance de John Steinbeck passado durante a Grande Depressão, era oriundo de uma família pobre de agricultores do Oklahoma. A crise económica que atingiu o país — e que levou a que muitos louvassem os roubos a bancos realizados por Bonnie e Clyde na década de 1930 — levou a que tivesse de migrar para a Califórnia juntamente com muitos outros “okies”, nativos do seu estado.

O mundo podia “adorar a Bonnie e o Clyde” por, aparentemente, combaterem um sistema que tinha deixado tantos norte-americanos na pobreza, mas eles eram violentos. No início de “Emboscada Final”, é referido que, até àquele momento, o seu gangue já tinha sido responsável pela morte de sete polícias. “Havia uma violência que as pessoas geralmente não investigam”, apontou Costner, frisando que a história foi tornada “mais glamorosa”. “Era um filme sensacionalista. E o problema é que, além de [terem ignorado] as pessoas que foram assassinadas, mataram a reputação do Frank Hamer.”

“É mais fácil escrever sobre os maus da fita, é mais colorido”

Francis Augustus Hamer, o ranger do Texas mais famoso de todos os tempos, era uma “lenda viva”. Numa altura em que os Rangers do Texas tinham sido extintos por decisão da governadora Miriam “Ma” Fergunson (interpretada por Kathy Bates, na produção da Netflix), Hamer foi chamado para apanhar os dois criminosos que ninguém parecia ser capaz de combater. E “era tão respeitado pelas forças da lei que nem se quer sabiam o que é que ele andava a fazer”, apontou Costner, numa referência aos vários momentos em que os responsáveis perderam o rasto a Hamer e ao seu companheiro Benjamin Maney Gault, também um antigo ranger do Texas. “[No filme de 1967,] tiveram de combinar três personagens para o criarem.”

Isso criou problemas com a viúva do ranger, Gladys Hamer, que “aparece em duas cenas [de “Emboscada Final”, interpretada por Kim Dickens] e que também matou umas quantas pessoas”, apontou o ator norte-americano. “Ela viu o filme em 1967, alguns dias depois de ter estreado em Austin. Vi o filme no mesmo cinema que ela. Ela chamou o Joe Jamel, que era um famoso advogado texano e processou a Warner Brothers por difamação. Ela disse: ‘Deviam ter vergonha. Não imaginam o que o meu marido trabalhou durante todos aqueles dias’. Defendeu o marido na morte. Foram precisos 60 anos para que aquela família pudesse ver uma versão diferente dele.”

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O facto de Bonnie e Clyde sempre terem recebido mais atenção tem talvez a ver com o facto de os verdadeiros heróis serem “muito sossegados”. “Nunca ouvimos falar deles. Fazem as coisas de forma silenciosa. Às vezes tomam uma posição como nós nunca seríamos capazes de tomar. E é assim que reconhecemos o heroísmo, quando dizemos: ‘Wow, nunca seria capaz de fazer isto!’. Se calhar todos achamos que somos assim tão corajosos, mas será que somos mesmo? É preciso uma pessoa especial para fazer isso”, afirmou Costner, lembrando que é verdade que Frank Hamer matou mais pessoas do que a Bonnie e o Clyde, mas que não tirou “nenhum prazer disso”. “Ele simplesmente era uma pessoa que dizia: ‘Esta pessoa tem de ser tirada da rua’.”

Apesar de este filme ser o primeiro a tentar retratar Hamer como ele era na realidade, não foi feito para esclarecer as coisas. “Era assim que os realizadores o queriam fazer. E eu acreditei no guião”, admitiu o ator, acrescentando que “quando há uma história, há duas”. Há sempre um outro lado, e ali também havia. “Era interessante o suficiente? O guionista [John Fusco] achou que sim e acho que ele a tornou interessante. É mais fácil fazer uma história sobre os bandidos. É mais fácil escrever sobre os maus da fita, é mais colorido. As pessoas boas parecem ser mais aborrecidas.”

“Pensava que os filmes eram só para os americanos”

Kevin Costner começou a sua carreira no início dos anos 80, com um filme chamado “Alta Temperatura”. Até 1990, fez praticamente um filme por ano, e foi durante esse período que teve a sua primeira experiência fora dos Estados Unidos, quando viajou até Itália para participar no Festival de Cinema de Veneza. “Silverado” tinha acabado de estrear, e Costner acreditava ainda que os filmes que fazia “eram só para americanos” e que, na Europa, ninguém queria saber deles. Nesse verão de 1985, descobriu o contrário, como admitiu durante a mesa-redonda em Madrid. “Fui ao Festival de Veneza promover ‘Silverado’. Era um filme com um elenco grande, com pessoas famosas. Cada ator tinha umas 17 entrevistas e eu não tinha nenhuma. Ninguém me conhecia e apenas uma pessoa queria falar comigo. ‘Ok, vou estar lá’.”

A sala de cinema onde eram projetados os filmes ficava de um lado da rua e a entrevista de Costner aconteceu no outro. Pouco depois de ter começado, foi interrompida. “Tens de vir agora”, disseram ao ator, então com 30 anos. “Tens de vir porque estão a passar o teu filme.” O ator não estava a perceber, e perguntou se estavam a projetar “Silverado”. “Não, é o ‘Fandango’”, responderam-lhe. “Não, é o ‘Silverado. Estou cá pelo ‘Silverado’.” Mas não era, era mesmo o filme realizado por Kevin Reynolds que, apesar do fraco sucesso nos Estados Unidos, tinha conquistado os críticos do festival de cinema.

[O trailer de “Fandango”:]

Costner saiu a correr. “Fandango”, que estava a ser projetado do outro lado da rua, estava quase a acabar. “Afastei-me da minha única entrevista. Tinha vindo de muito longe para ela. Atravessámos a rua, entrámos no cinema. Estava cheio, cheio de jovens”, recordou o ator. “Quando o filme acabou, bateram palmas. Depois ouvi dizerem o meu nome quando ligaram as luzes e todos olharam para mim no balcão. Este filme, que não teve uma vida na América, que foi ignorado, era adorado em Itália. Isso mudou-me, e percebi que nunca vou fazer um filme sem entender que ele vai viajar pelo mundo.”

Norte-americano de gema, Costner garante que nunca se vai afastar dos filmes “puramente americanos”, até porque as pessoas sabem o que esperar dele. A grande diferença é que, desde aquele Festival de Cinema em 1985, sabe que há vida do outro lado do Atlântico. “Senti-me melhor”, admitiu. “Foi preciso outro país para valorizar o que fizemos. Senti-me muito grato por isso.”

Questionado sobre se Hollywood mudou nos últimos anos, o ator, que admitiu que nunca ficou desapontado com os guiões que lhe apresentaram mas com o resultado final das produções em que participou, retalhadas para corresponder a um certo objetivo, respondeu que tudo continua na mesma na indústria cinematográfica. “Continuam a ir atrás do dinheiro, a ir atrás de decisões que não parecem artísticas. Para mim, a experiência continua a ser a mesma. As melhores histórias são as que falam sobre homens e mulheres. Vão sempre ser. Porque é que não se dão bem, porque é que não podem ficar juntos…”, disse.

Apontando que o mundo dos negócios está sempre a mudar, o ator garantiu que vai continuar a fazer aquilo que faz sentido para ele — e que ninguém o pode impedir. Isso não significa, porém, que consiga fazer sempre tudo o que quer. “Tenho de trabalhar muito para conseguir fazer as coisas que quero, sinceramente”, admitiu, confessando que o que gostava mesmo de fazer no futuro era produzir um filme de cowboys com “grandes papéis de mulheres”. “É muito, muito difícil para as mulheres, até porque o Oeste era difícil. Mas há papéis muito bons [no filme que quero fazer]. Poderosos. Tenho continuar a lutar para que isso aconteça. Mas vou conseguir!”

O Observador viajou até Madrid a convite da Netflix