8 de junho de 2009. Assembleia da República. O governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, responde aos deputados da comissão parlamentar de inquérito ao BPN, um enorme buraco a céu aberto que entretanto já custou cerca de cinco mil milhões de euros aos portugueses. À época era o maior escândalo bancário em Portugal, envolvendo crimes de corrupção, tráfico de influências e lavagem de dinheiro.

Em destaque estava o Banco Insular, em Cabo Verde, que era usado como um autêntico saco azul para a concessão de financiamentos de alto risco a partes relacionadas ou que não chegaram a ser identificadas. Era também no Insular que ficavam escondidos os buracos provocados pelos sucessivos incumprimentos do BPN.

Apertado pelos deputados, Constâncio diz que a supervisão fez tudo o que estava ao seu alcance. Não conseguiu evitar as fraudes porque havia no BPN uma “atuação de estrita e potencial ilegalidade de foro criminal”. “Infelizmente ninguém suspeitou no Banco de Portugal porque não havia razão para tal”. Simplificando, o supervisor não detetou, não agiu e não puniu porque as operações do BPN eram ilegais e o banco de Oliveira e Costa agiu deliberadamente para as esconder, com uma contabilidade paralela.

“Não houve qualquer denúncia, ninguém cumpriu no BPN os deveres legais que tinha de avisar as autoridades sobre o que se passava no banco, nem sequer de forma anónima”, afirmou o governador do BdP. Os deputados da comissão apontaram o óbvio: Constâncio queixava-se de não ter agido contra as ilegalidades do BPN porque o banco se tinha recusado a avisar o supervisor que as estava a cometer. “Do que se conhecia e era possível de descobrir na supervisão prudencial”, justificou-se ainda Constâncio, o BPN nunca esteve sem cumprir os rácios de capital.

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Morto por ter cão e morto por não ter

Salto de dez anos na máquina do tempo. 28 de março de 2019. Vítor Constâncio responde novamente numa comissão de inquérito sobre banca, desta vez sobre atos de gestão da Caixa Geral de Depósitos entre 2000 e 2015. Em causa um conjunto de créditos problemáticos — muitas vezes concedidos ao arrepio de regras internas do próprio banco. Mais um ponto em comum com o BPN: também resultaram em perdas de milhares de milhões de euros, com as consequentes necessidades de capitalização do banco. Para contribuinte o resultado é quase o mesmo: os portugueses chamados a pôr na Caixa mais cinco mil milhões de euros.

Vítor Constâncio e Carlos Costa. Quem fez mais pela (crise da) banca?

Tal como em 2009, os deputados apontam o dedo ao supervisor, especialmente a Constâncio (governador do BdP durante dez dos 16 anos de abrangência da auditoria da EY que detetou as irregularidades na Caixa). “O senhor foi governador num tempo que o banco fez o que quis — concedeu créditos sem garantias, a investidores descapitalizados, sem seguirem as regras. Foi uma farra!”, acusa Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda.

“No relatório de auditoria da EY há 80 operações de crédito na Caixa em que o parecer do risco é condicionado e em que o órgão decisor não apresentou justificação para não ter seguido a recomendação. Sendo assim, acha que a supervisão assegurou uma ação adequada?”, insiste a deputada do CDS Cecília Meireles.

Constâncio usa uma lógica semelhante à de 2009, mas em sentido diametralmente oposto. Se no caso BPN a supervisão não podia fazer nada porque o banco tinha cometido e escondido ilegalidades, agora o Banco de Portugal não podia fazer nada na Caixa porque as operações eram todas legais.

“As chamadas operações que, de alguma forma, se tornaram controversas, eram conhecidas, foram examinadas pelo Banco de Portugal. Eram arriscadas, sim, mas não estavam escondidas. (…) Eram decisões de gestão. A única responsabilidade do supervisor era exigir que houvesse cobertura de rácios de capital. Também não pode punir os gestores que tomaram decisões demasiado arriscadas pelo facto de terem tomado decisões demasiado arriscadas. Só o acionista o pode fazer. É a lei. Veja a lei”, responde Constâncio.

“É a lei. É a lei. É a lei. Pode discordar, mas é a lei”.

Entre esgares, olhares esgargalados, gestos nervosos de mãos, remoques e também algum enfado, Constâncio insiste, uma e outra vez: “É a lei. É a lei. É a lei. Pode discordar, mas é a lei. É a lei. É a lei”. Várias vezes Vítor Constâncio recusa a sugestão deixada pelo Bloco de Esquerda de que o supervisor não é mais do que um “contabilista de rácios de capital”.

Mas reitera que “o supervisor não é uma espécie de polícia moral acerca das decisões tomadas pelos gestores da banca”. “Pode apenas exigir capital, níveis, solvabilidade. Os supervisores não têm competência para discutir esse tipo de operações com os gestores dos bancos. Não nos compete fazer julgamentos sobre as políticas comerciais”, completou.

A ideia de que o supervisor da banca não é polícia ou detetive não é de agora. Se em março de 2019 o supervisor “não é polícia moral”, em maio de 2009 “não era um super polícia com acesso a tudo”. Mais: na altura, tal como hoje deixou implícito, acusava os deputados de “equívocos ou ignorância fundamental” sobre o que é a supervisão, considerando que a natureza de algumas perguntas formuladas partem de “presunções de que os supervisores são uma espécie de KGB e FBI juntos”.

De volta a 2019, outra vez a olhar para a Caixa. Os deputados recorrem a outra cartada: mas o BdP foi ou não avisado por elementos da própria Caixa Geral — a noticiada carta de Almerindo Marques — para as irregularidades que se estavam a passar. Constâncio corta de trunfo: tudo ocorreu há demasiado tempo e a memória não ajuda. “Não me lembro”. “Isso foi há 12 anos? Tanto papel que eu recebi desde então. Se a carta existiu, haverá registo no Banco de Portugal. Não tenho ideia dessa carta. Não tenho obrigação de ter memória de todas as cartas, era impossível”.

Jorge Sampaio e Vítor Constâncio ignoraram alertas sobre a Caixa

Quando tudo falha, “não era esse o meu pelouro”

Já em 2009, no caso BPN, Vítor Constâncio tinha ensaiado esta defesa. O Banco de Portugal tinha uma capacidade limitada para descobrir irregularidades no âmbito da supervisão prudencial. Não descobriu tudo nem evitou os maiores problemas, mas na altura o governador não enjeitou responsabilidades.

Em 2019 sim. Constâncio disse aos deputados que, durante o seu consulado no BdP, “estava essencialmente concentrado na política monetária”, e que “a supervisão era matéria do vice-governador”. E completou, agora sobre uma auditoria de supervisão ao Caixa BI: “Os gestores de topo” não têm incumbência de verificar casos concretos, “sobretudo quando não tem pelouro da supervisão”. O vice-governador do Banco de Portugal que tinha o pelouro da supervisão nessa altura era António Marta e não se pode defender, uma vez que já morreu.

Entre as comissões de 2009 e de 2019 há mais pontos em comum, em especial um outro nome. Há dez anos, Constâncio foi confrontado com um alerta da auditora Deloitte acerca de “várias anomalias contabilísticas no grupo Banco Português de Negócios”. Na altura, Constâncio desvalorizou este alerta, afirmando que os auditores não lhe disseram nada quando foram diretamente interpelados pelo supervisor.

Esta quinta-feira, a Deloitte surgiu novamente na conversa, pela mão do PCP. Os comunistas perguntam a Constâncio se os auditores externos da Caixa (a Deloitte) fizeram um bom trabalho. O ex-governador evitou a resposta. In extremis, o PCP insistiu, mas a resposta de Constâncio perdeu-se no meio do ruído dos deputados que já davam a audição por terminada. Constâncio apontou, no entanto, que “em vários casos, não houve um comportamento positivo” das auditoras.

“O pior ceguinho é aquele que não quer ver”

Em suma: Constâncio ou não se lembra, ou não podia ter feito nada ou não tinha o pelouro do que era preciso fazer. O deputado do PSD Duarte Marques deixa-se de rodeios e pergunta-lhe diretamente: “mas sente ou não, olhando para tudo o que aconteceu, que o Banco de Portugal falhou, que os governadores falharam?”.

Constâncio admite alguma coisa, mas dilui a responsabilidade juntando-se a episódios ocorridos noutros países. “Não sinto que tudo correu mal, mas decididamente que houve falhas em relação a alguns aspetos da supervisão, mas não foi só em Portugal mas em todos os países europeus”, disse.

No final Duarte Marques acusa Vítor Constâncio de “pior do que ceguinho é quem não quer ver”. Constâncio “ou fez parte ou foi deixado de parte”, acusa Duarte Marques, perante a indignação de Vítor Constâncio.

O ex-governador ainda teve tempo para rejeitar a ideia — transmitida por João Paulo Correia, do PS — de que o Banco de Portugal deveria ter sido um protetor dos contribuintes: uma “espécie de VAR”. Mas Constâncio chutou para canto: “o Banco de Portugal não é o protetor do contribuinte, a sua missão é proteger os depositantes e a estabilidade do sistema financeiro. Quem tem de garantir a proteção do contribuinte é o Estado”.