Era ele o homem mais esperado. Perto das 9h45, hora a que estava previsto ter início o painel com a participação de Sérgio Moro, o auditório da Faculdade de Direito de Lisboa começou a tornar-se pequeno para a procura. Não havia cadeiras suficientes para tantos participantes do VII Fórum Jurídico que ali estavam para ouvir o antigo super-juiz, tornado agora super-ministro.

Uma plateia com portugueses, é certo, mas também muitos brasileiros, que não se coibiram de cantar audivelmente o seu hino, no início da sessão de abertura — ao contrário da atitude mais discreta dos anfitriões, que se limitaram a escutar a versão instrumental d’A Portuguesa. Uma plateia que, independentemente da nacionalidade, ouviria com entusiasmo a análise jurídica do ministro e escutaria daí a pouco os reparos feitos por Moro à Justiça portuguesa, a propósito da Operação Marquês e da sua lentidão.

Despachada a sessão de abertura, entra em cena o orador mais desejado e logo são tirados dos bolsos os smartphones. Fotografia atrás de fotografia, os presentes procuram assinalar a presença daquele que é o ministro mais popular de todo o Governo de Jair Bolsonaro: 59% de taxa de aprovação, bastante destacado face ao próprio Presidente, que goza atualmente de apenas 35%.

Sérgio Moro escuta com atenção a sessão de abertura do VII Fórum Jurídico, na Faculdade de Direito de Lisboa (Leonardo Negrão / Global Imagens)

É apenas um ministro, é certo, mas mais parece uma estrela pop: todos querem ouvir cada palavra de Sérgio Moro com atenção e registar o momento para a posteridade, quer estejam confortavelmente sentados nas cadeiras, quer de pé encostados à parede. O ministro brasileiro, mais conhecido pelo seu papel na Operação Lava Jato e por ter ordenado a prisão do ex-Presidente Lula da Silva, tem um perfil discreto e é isso que traz para cima do palco, falando em voz baixa e pausada. O motivo da passagem da tour Moro por Portugal é a apresentação do seu novo pacote de alterações legislativas, como revela o powerpoint em fundo intitulado “Projeto de lei anti-crime”.

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As comparações com Portugal. Processo de Sócrates “não decorre em prazos razoáveis”

Moro começa por abrir o discurso abordando de frente “o diálogo permanente entre Brasil e Portugal”. “É complicado falar de problemas de segurança dos dois países, porque as realidades são muito diferentes. Nós temos um problema sério com a segurança pública, com um recorde de 60 mil homicídios por ano. Portugal teve 76 homicídios nesse mesmo ano de 2016, portanto causa-nos muita inveja”, afirma, com um sorriso, o ministro da Justiça de Bolsonaro.

Mas as comparações entre os dois países não se ficaram pela criminalidade violenta e Moro não teve mesmo receio de abordar de frente um outro problema — este onde, talvez, a inveja dos brasileiros seja menor. “Temos tido desde o Mensalão e a Lava Jato um sério problema com a grande corrupção. Nesse ponto, Portugal tem uma realidade diferente, pelo menos olhando para o índice de corrupção da Transparência Internacional”, começou por dizer o ministro, para logo apontar um ponto menos positivo: “Não obstante, também Portugal não está imune, basta citar o famoso caso do ex-primeiro-ministro José Sócrates, vendo-se também uma dificuldade institucional em que o processo decorra em prazos razoáveis.”

Seria a única referência à Operação Marquês ou à corrupção em Portugal durante toda a palestra de Moro. À saída, perante jornalistas, Moro não hesitou, contudo, em falar mais sobre o caso: “Aquilo que observo à distância, em relação ao caso desse primeiro-ministro português, é que há um trabalho que tem sido feito, com esforços consideráveis para apuração de provas, mas segundo algumas autoridades portuguesas com as quais falei, não há uma previsão de término desse processo”, lamentou o ministro.

Sérgio Moro com o ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva, na plateia. Santos Silva fez questão de cumprimentar Moro após a sua intervenção e antes de sair da conferência (Leonardo Negrão/Global Imagens)

Logo de seguida, Moro contrapôs com o exemplo brasileiro, mais positivo do seu ponto de vista: “O que tínhamos no Brasil, principalmente antes do caso Mensalão e da Lava Jato, é que esses grandes casos de corrupção, muito embora às vezes provados e com provas extremamente robustas, nunca tinham as consequências. Isso mudou no Brasil, nos últimos cinco ou seis anos. Não que a situação seja ideal, mas hoje se vê pessoas que cometeram esses crimes, que ocupavam elevadas posições na administração pública ou até no Parlamento, que foram condenadas e que estão cumprindo pena”, resumiu, antes de rematar: “Foi um avanço institucional brasileiro.” Como Lula da Silva?, questionam os jornalistas, antes de voltarem a apontar os muitos microfones e gravadores a Moro, que não dribla a questão: “Certamente. Lula da Silva foi condenado por mim em primeira instância, mas a sentença foi autorizada pelo Supremo Tribunal Federal”.

Sérgio Moro e a delação premiada: “Regra número um é nunca confiar num criminoso”

Nas comparações entre a justiça portuguesa e a brasileira encaixa muitas vezes o termo “delação premiada”. Sérgio Moro falou sobre ele na sua palestra, enquadrado numa nova proposta de modelo de plea bargain semelhante ao norte-americano. Questionado pelos jornalistas à porta sobre se faria sentido aplicar a delação premiada em Portugal, Moro evitou pronunciar-se sobre o modelo português, limitando-se a sublinhar que este é “um método relevante” para a investigação da grande corrupção e que “não é uma criação brasileira”, sendo aplicado em países como os EUA.

“Há sempre o risco da mentira, mas a regra número um é nunca confiar num criminoso. Tudo o que o criminoso diz, mesmo numa colaboração, precisa ter apoio em provas independentes”, afirmou.

Por exemplo, um diretor da Petrobras com contas milionárias em paraísos fiscais ou países como a Suíça: vem o documento, vêm as provas, mas muitas vezes só se descobriram essas provas porque alguém de dentro do sistema criminoso revelou onde elas deveriam ser procuradas”, acrescentou o juiz.

A inclusão de medidas relacionadas com a corrupção no novo pacote anti-crime do Governo brasileiro foi uma decisão deliberada, como explicou o próprio ministro na sua palestra, ligando criminalidade violenta, organizada e corrupção. “Para nós, as três caminham juntas”, resumiu. E depois concretizou: “A corrupção muitas vezes desvia os recursos públicos necessários para o combate à criminalidade violenta.”

Uma das medidas propostas por Moro vai precisamente ao encontro da sua experiência pessoal com Lula da Silva: a proposta de inscrever na lei a prisão efetiva após uma condenação em segunda instância. Lula recorreu para o Supremo Tribunal e esperava poder aguardar em liberdade por essa decisão, mas os tribunais tiveram um entendimento diferente e decretaram a sua prisão. Para Moro, esse deveria ser o único entendimento possível por parte dos juízes. “O que nós propomos é colocar isso de maneira clara na legislação ordinária. Tem que se contextualizar: no Brasil, há um número muito significativo de recursos. O Supremo Tribunal de Justiça recebe 250 mil novos processos por ano! Torna-se impossível o julgamento em prazo razoável”, sentenciou. “Na nossa interpretação, isso não viola a presunção de inocência.”

Moro procurou rebater as críticas ao seu pacote anti-crime, levantadas por organizações como a Comissão Arns, comissão de defesa dos direitos humanos cujos membros incluem ex-ministros dos governos de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. Sobre a alteração da definição de legítima defesa por parte de agentes da polícia, podendo passar a abranger os casos em que houve “medo, surpresa ou violenta emoção”, Moro afirmou-se terminantemente contra interpretações como a da Arns, que classificaram a medida de “licença para matar”. “Eu divirjo totalmente. É o juiz que vai decidir se configura legítima defesa ou não”, explicou Moro à plateia. “A ideia é que as pessoas não são robôs e em situações de legítima defesa podem reagir com excesso sem serem consideradas homicidas.”

As propostas, contudo, causam receio entre alguns na sociedade brasileira, ainda para mais vindas de um Governo cujo Presidente popularizou expressões como “bandido bom é bandido morto” e defendeu que a polícia possa matar com maior facilidade. Moro desvaloriza e tenta enquadrar tudo através do quadro legal. Referindo-se à proposta de a lei passar a nomear diretamente algumas organizações como o Comando Vermelho como criminosas, o ministro escudou-se em exemplos do Direito noutras partes do mundo, como em Itália, onde a lei nomeia diretamente alguns grupos da máfia como a Cosa Nostra ou a ‘Ndranghetta. “Parece que é tipo vilão de Harry Potter, que não se pode pronunciar o nome. Porquê?”, questionou Moro, arrancando à plateia os únicos risos da sua contida intervenção.

Bolsonaro, o nome que não foi pronunciado

Mas se Voldemort ou as milícias do Rio de Janeiro são os nomes que geralmente não podem ser pronunciados, o mesmo epíteto poderia aplicar-se ao Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que não teve direito a uma única menção direta por parte de Moro — nem na sua intervenção, nem nas respostas às perguntas dos jornalistas.

O mesmo se aplica aos que estiveram presentes na sessão de abertura. O controverso juiz Gilmar Mendes, conhecido por ter votado contra a prisão de Lula no Supremo  e um dos organizadores do evento, limitou-se a dar as boas-vindas a todos e a sublinhar a importância de se discutir o tema deste Fórum, “Justiça e Segurança”, quer no Brasil, quer em Portugal. As suas palavras foram cordialmente aplaudidas e nem por perto se assistiu à contestação de que Gilmar é alvo muitas vezes nas ruas, inclusivamente em Portugal. Como pode ver no vídeo do tweet abaixo, Gilmar Mendes foi insultado há dias no Chiado, quando estava numa esplanada.

https://twitter.com/rossana_morgado/status/1119697460438478849

Já o presidente da Câmara dos Deputados brasileiro, Rodrigo Maia, parece ter aflorado a eleição do mais recente Presidente brasileiro — mas sem nunca lhe pronunciar o nome: “A eleição de Donald Trump, as eleições próximas em Espanha, o Brexit, trouxeram movimentos de tirar algo do lugar, mas ainda não nos disseram o que querem lá colocar”, avisou o político do DEM, que chegou a trocar farpas com Moro a propósito da proposta anti-crime. “O Brasil também vive este ciclo, mas é mais frágil do que estes outros países. A vontade de todos é que se possa construir situações de diálogo”, acrescentou, sublinhando que está em curso uma “reorganização da relação entre o poder legislativo, executivo e tribunais”.

Sérgio Moro cumprimenta Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, com quem teve divergências recentes a propósito do seu projeto de lei anti-crime (Leonardo Negrão/Global Imagens)

Também o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, foi direto a esse ponto, ao destacar a necessidade de “respeitar a independência dos poderes, do jurídico face ao político e vice-versa”. Santos Silva aproveitou para destacar como prioridades o combate às alterações climáticas e a segurança dos migrantes, temas que não são caros a Bolsonaro, que chegou a ameaçar retirar o Brasil do Acordo de Paris e que ordenou mesmo a saída do Pacto das Migrações da ONU. Mas o nome de Bolsonaro, esse, nunca foi mencionado.

Da mesma maneira, também Moro optou pela fórmula “ação executiva” para se referir à possível atuação do Presidente. “As eleições revelaram uma insatisfação muito grande da população brasileira com a grande corrupção e a sua impunidade, com a criminalidade violenta e com a criminalidade organizada. O novo Governo assume isso e entre os seus projetos foi apresentado um projeto de lei sólido que pretende enfrentar essas questões”, afirmou, referindo-se ao seu projeto de lei anti-crime, que em fevereiro contava com uma taxa de aprovação de 62% da população.

“Isso independentemente da ação executiva que está a ser tomada paralelamente”, rematou o popular super-ministro. O nome Bolsonaro, esse, não foi pronunciado na sua passagem por Portugal.