Se a Suíça é normalmente encarada como um país neutro, a verdade é que Portugal jogava esta quarta-feira com os helvéticos uma espécie de vingança. Ou um mero espanta fantasmas, se assim for preferível. Na primeira meia-final da inédita Liga das Nações, a Seleção Nacional tentava mudar o rumo da história: na última vez que uma competição europeia de seleções arrancou em Portugal e no Estádio do Dragão, Portugal perdeu. O 1-2 com a Grécia deu lugar, cerca de um mês depois e na Luz, a uma desvantagem mínima que roubou o primeiro título à Seleção e o deu aos gregos. 15 anos depois, uma competição europeia de seleções arrancava novamente em Portugal e no Dragão — e era tempo de alterar o que a história contava.

Dessa equipa, sobra Cristiano Ronaldo. O agora capitão português é o único dos convocados de Fernando Santos que também esteve nos eleitos de Scolari em 2004: quando Bruno Fernandes tinha sete anos, Rúben Dias tinha sete e João Félix tinha quatro. Ora, João Félix, que passados 15 anos continua a ter apenas 19, tem sido o protagonista incontestado da concentração da equipa portuguesa para preparar a meia-final com a Suíça. Primeiro, por ter sido novamente convocado (já o tinha sido no duplo compromisso da qualificação para o Euro, em março, mas acabou por não jogar); depois, porque o selecionador assumiu dar a primeira internacionalização ao médio do Benfica e os desportivos começaram imediatamente a sonhar com uma parceria com Ronaldo; e, por fim, pelos insultos que ouviu na chegada à Espinho, que tanta tinta fizeram correr na imprensa nos últimos dias.

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Ficha de jogo

Portugal-Suíça, 3-1

Meia-final da Liga das Nações

Estádio do Dragão, no Porto

Árbitro: Felix Brych (Alemanha)

Portugal: Rui Patrício, Nelson Semedo, Pepe (José Fonte, 63′), Rúben Dias, Raphael Guerreiro, William Carvalho, Rúben Neves, Bernardo Silva, Bruno Fernandes (João Moutinho, 90+1′), João Félix (Gonçalo Guedes, 70′), Cristiano Ronaldo

Suplentes não utilizados: José Sá, Beto, João Cancelo, Mário Rui, Danilo, Pizzi, Rafa Silva, Dyego Sousa, Diogo Jota

Treinador: Fernando Santos

Suíça: Sommer, Mbabu, Schar, Akanji, Rodríguez, Zakaria (Fernandes, 71′), Xhaka, Zuber (Steffan, 83′), Freuler (Drmic, 90′), Shaqiri, Seferovic

Suplentes não utilizados: Mvogo, Omlin, Moubandje, Elvedi, Lang, Okafor, Benito, Ajeti, Sow

Treinador: Vladimir Petkovic

Golos: Cristiano Ronaldo (24′, 88′ e 90′), Rodríguez (56′)

Ação disciplinar: cartão amarelo a Xhaka (65′), a Schär (68′), a Shaqiri (85′)

Mais de uma hora antes do apito inicial no Dragão, o onze inicial português voltava a dar protagonismo a Félix: o jovem jogador do Benfica era titular, na frente de ataque ao lado de Ronaldo, e ia mesmo estrear-se com a camisola da Seleção Nacional. Fernando Santos dava também a titularidade a Bernardo Silva, que conquistou o triplete em Inglaterra, a William, que cumpriu uma temporada regular ao serviço do Betis, e a Rúben Neves, que na próxima época vai estar na Liga Europa com o Wolverhampton. Na decisão entre os dois melhores jogadores do último ano em Portugal, o selecionador escolheu Bruno Fernandes e deixou Pizzi no banco de suplentes. Nélson Semedo era o dono da lateral direita da defesa, Guerreiro era titular no lado contrário e Pepe fazia dupla com Rúben Dias no eixo central, ficando José Fonte no banco. Na baliza estava Rui Patrício, algo que apesar de estar longe de ser notícia significava esta quarta-feira que o guarda-redes do Wolves igualava Vítor Baía como guardião português com mais internacionalizações (80).

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Do outro lado, sem surpresas, eram titulares Xhaka, jogador do Arsenal, Shaqiri, jogador do Liverpool e campeão europeu no passado sábado, e Seferovic, avançado do Benfica e melhor marcador na edição da Primeira Liga que terminou há poucas semanas. Os primeiros instantes da partida mostraram uma Suíça sem quaisquer complexos e com vontade de ir à procura do golo, mais confortável no jogo e a explorar com qualidade as fragilidades defensivas iniciais de Nélson Semedo, que demorou a entrar no ritmo. Os suíços procuravam a área de Rui Patrício quase sempre a partir da esquerda da defesa portuguesa, onde Bruno Fernandes ia tentando ajudar o lateral do Barcelona e fazer dobras que permitissem depois catapultar jogo para o ataque.

O 4x4x2 da Seleção demorou a impor-se, já que Bruno Fernandes estava então muito colado à lateral direita e procurava pouco o jogo interior, onde Bernardo Silva parecia meio desconectado com as linhas que tinha atrás e a linha que tinha à frente. No setor mais ofensivo, Cristiano Ronaldo estava a tombar no corredor esquerdo, deixando João Félix à deriva entre a faixa central do ataque e o espaço na direita. O médio do Benfica tinha dificuldades em entrar no sistema da Seleção Nacional principalmente porque a referência atacante pela qual se guia e para a qual joga no clube, Seferovic, estava desta vez na equipa adversária. Ronaldo, mais móvel do que o suíço, ia deixando muito espaço livre a Félix — que acabava por não saber o que fazer com ele.

A maior concentração suíça trouxe uma oportunidade logo aos três minutos de jogo, quando Shaqiri apareceu na cara de Rui Patrício depois de um lance muito confuso à entrada de área. O avançado do Liverpool rematou rasteiro e o guarda-redes do Wolves defendeu com o pé direito, impedindo o primeiro dos suíços. As oportunidades da equipa orientada por Petkovic sucediam-se: primeiro foi Seferovic, que rematou muito ao lado já no interior da grande área (5′), depois foi novamente Shaqiri, que com um cruzamento traiçoeiro a partir da direita quase enganou Patrício (15′), outra vez o avançado do Benfica, que conseguiu ganhar posição para cabecear à baliza mas a bola saiu à figura do guarda-redes português (20′). Pelo meio, Ronaldo falhou aquilo que não costuma falhar e atirou muito ao lado praticamente isolado, depois de Bernardo aproveitar uma perda de bola em zona proibida de Akanji para servir o capitão (12′).

Aos 22 minutos, Seferovic tinha mais remates sozinho do que toda a seleção portuguesa (três contra dois) e os suíços tinham mais de 60% da posse de bola. Mas foi precisamente nessa altura, quando o Dragão começava a deixar que a desilusão e o receio ocupassem o lugar que havia sido do entusiasmo e da confiança antes do apito inicial, que Cristiano Ronaldo conquistou uma falta em zona perigosa. A descair ligeiramente na esquerda, um metro antes da meia-lua da grande área suíça, mesmo ao jeito do avançado da Juventus. Silêncio no estádio: Ronaldo atirou de pé direito em direção ao poste mais distante e inaugurou o marcador (24′). Ainda antes da meia-hora de jogo, Portugal estava em vantagem sem estar a fazer muito por isso — mas é por esse motivo que o capitão é importante.

Os minutos que se seguiram ao golo foram de alguma indecisão, com Portugal a querer lançar-se para terrenos mais ofensivos ainda por explorar mas a demonstrar pouca criatividade. Depois do abalo provocado pelo livre de Ronaldo, a Suíça recuperou o fôlego e esteve muito perto de empatar, com um desvio de Seferovic após cruzamento de Mbabu que raspou na trave de Rui Patrício (42′). Mesmo em cima do intervalo, João Félix quase conseguiu isolar-se para responder a um enorme passe de Ronaldo mas acabou por atirar muito por cima, num lance onde ficam dúvidas sobre eventual penálti de Rodríguez (45′). Fim da primeira parte e Portugal estava a ganhar — apesar do ascendente inequívoco da Suíça, que poderia ter feito mais do que um golo e estava bem no jogo, principalmente por intermédio de Shaqiri e Seferovic.

Na segunda parte, nem Fernando Santos nem Vladimir Petkovic mexeram na equipas. Zuber foi o primeiro a criar perigo, com um cruzamento venenoso que acabou intercetado por Pepe (48′), e Cristiano Ronaldo também tentou o bis, com um remate cruzado de pé esquerdo que passou ao lado da baliza suíça (51′). Aos nove minutos, quando o segundo tempo ainda tinha pouca história para contar, o Dragão assistiu a um golpe de teatro que podia estar em cena a dois quilómetros de distância, no Sá da Bandeira. A Suíça ficou a pedir grande penalidade de Nélson Semedo, por alegada falta do lateral português sobre Zuber, o árbitro deixou seguir e Portugal lançou-se para o ataque; na outra área, Ronaldo tentou oferecer o golo a Bernardo Silva, que se atrapalhou com bola e acabou por ser travado em falta por Schär.

O alemão Felix Brych deu penálti para a Seleção, Cristiano Ronaldo pegou de imediato na bola, o Dragão começou a entoar o nome do capitão à espera do segundo da noite mas o árbitro foi chamado pelo VAR. Após a consulta das imagens, Brych anulou a grande penalidade que favorecia Portugal e marcou a anterior, a favor da Suíça. Cristiano Ronaldo ainda sprintou para aconselhar Rui Patrício mas foi em vão: Rodríguez atirou rasteiro e para o lado esquerdo do guarda-redes e empatou a partida (56′).

Pepe lesionou-se ao cair mal depois de um pontapé de canto e obrigou Fernando Santos à primeira substituição da noite (entrou José Fonte) mas o selecionador estava apostado em fazer alterações: minutos depois de trocar de centrais, o selecionador nacional tirou João Félix, apagado na estreia pela Seleção, e colocou em campo Gonçalo Guedes. Portugal precisava de jogar mais e melhor para chegar ao segundo golo e à fina da Liga das Nações — até porque, por esta altura, o único remate enquadrado que a seleção portuguesa havia feito tinha sido mesmo o golo de Ronaldo.

A partida entrou numa fase mais apática e incaracterística depois das substituições — Petkovic também mexeu, trocando Zakaria por Edimilson Fernandes, primo de Manuel Fernandes –, com Portugal a jogar durante mais tempo e com mais frequência no meio-campo defensivo da Suíça mas os helvéticos a terem mais perigo sempre que se aproximavam da baliza de Rui Patrício. Cheirava a prolongamento no Dragão e nenhuma das duas equipas parecia tremendamente empenhada em evitar o que já parecia uma inevitabilidade.

Mas é nessas alturas, quando tudo parece algo desmontado, algo ineficaz, algo atabalhoado, que aparece Cristiano Ronaldo. Tal como tinha feito na primeira parte. Quando os milhares que esta quarta-feira encheram o Dragão para assistir à meia-final da Liga das Nações já olhavam para o relógio, a fazer contas à vida e a contar com a meia-hora do prolongamento, Bernardo Silva (que, a par de CR7, foi sem dúvidas o melhor de Portugal) arrancou na direita e cruzou atrasado para o capitão, que atirou rasteiro, de primeira e sem hipótese para Sommer (88′). Explosão no estádio, no Porto e no banco de suplentes português, que saltou de alegria — e alívio, com toda a certeza.

Antes do apito final, Cristiano Ronaldo ainda teve tempo de fazer o terceiro, que recebeu de Guedes já no interior da grande área, tombado na esquerda, ultrapassou o defesa suíço e atirou em jeito para o poste mais distante (90′). Portugal está na final da Liga das Nações (onde vai encontrar Inglaterra ou Holanda) graças ao sétimo hat-trick do capitão ao serviço da seleção portuguesa e vai poder disputar, no próximo domingo, a segunda final europeia no espaço de três anos. Numa semana em que a cidade do Porto está totalmente lotada e a rebentar pelas costuras, não só devido à final four da Liga das Nações mas também graças ao festival Primavera Sound, Cristiano Ronaldo foi ao Dragão entoar as Quatro Estações de Vivaldi, num jogo, mais um, que fica para os livros de História como um soneto do maestro com o sete nas costas.