Nas primeiras filas à frente do fosso do palco NOS, um frequentador habitual do festival NOS Primavera Sound do Porto reconheceria poucas caras entre as 22h15 e as 23h30 da última sexta-feira. Os rostos eram diferentes daqueles que se viam em anos anteriores, eram até diferentes daqueles que se viram em outros concertos do mesmo dia. O público melómano, habituado a ir ao Primavera, cedeu os lugares da frente aos adolescentes e jovens adultos. O motivo era só um: colombiano, chama-se José Balvín mas responde pelo nome de J Balvin.
Tendo-se afastado gradualmente da sua identidade de festival de indie-rock, ainda que aproximando-se nos últimos anos da música urbana e hip-hop fazendo apostas certeiras em rappers como Kendrick Lamar e Vince Staples, o NOS Primavera Sound não dera nunca tanto protagonismo a um artista tão amado e odiado. Tido como um dos novos pontas-de-lança da afirmação do reggaeton no mundo, o cantor colombiano de “Mi Gente” e “I Like It” é um dos mais populares do mundo — e a sua escolha é a entrada do NOS Primavera Sound em força no terreno da pop mais acessível. Foi menos surpreendente ver J Balvin num festival juvenil e de massas como o atual Sudoeste, no ano passado, do que vê-lo neste festival esta sexta-feira. Uma mudança destas deve ser inédita em anos recentes — e o que isto significa é que está história a acontecer à nossa frente.
A aposta, claro, não aconteceu por acaso. Numa tentativa de se renovar e de continuar relevante em anos vindouros, a equipa que organiza o Primavera Sound (festival nascido em Barcelona cujo cartaz é transposto, em parte, para o congénere do Porto) tem renovado os seus programadores, fazendo entrar jovens com poder de decisão capazes de rejuvenescer os cartazes. O objetivo parece ser encontrar um ponto de equilíbrio entre mérito artístico e a popularidade, entre o classicismo do indie-pop e as novas tendências da música mundial.
A música latina é, no campeonato dos novos géneros musicais, impossível de ignorar, dada a sua ascensão e afirmação até em mercados de língua inglesa — como o norte-americano, o maior do mundo. Porém, se a espanhola Rosalía,uma das figuras de proa do último dia da edição de este ano do festival, que é este sábado, 8 de junho, é uma aposta irreverente mas que só chocará mesmo os mais puristas, ninguém esperaria ver por exemplo o autor de “Despacito” (chama-se, ao que indica a internet, Luis Fonsi) no Primavera Sound.
J Balvin não é Luis Fonsi, é mais original e menos padronizado do que o autor do tema mais viral dos últimos anos cantado numa língua que não a inglesa. E no entanto, com ele partilha muitos ouvintes. E no entanto, com ele partilha muitos anticorpos. Mas isso interessará assim tanto quando o Parque da Cidade se enche de milhares de pessoas que ali se deslocaram para cantar e dançar as canções de J Balvin — e que, com sorte, terão também contactado com estéticas musicais a que provavelmente não chegariam de outro modo, por serem em muitos casos ouvintes de música mais casuais e menos obsessivos? Na verdade, interessa.
Da aterragem uma hora antes ao reggaeton Sudoeste
O dia até não tinha corrido especialmente bem a J Balvin. Fonte próxima do festival revelou ao Observador que a avaria num radar do aeroporto Francisco Sá Carneiro, do Porto, esteve perto de colocar em risco a atuação do artista que provocou maior euforia esta sexta-feira no Parque da Cidade do Porto.
Balvin só conseguiu aterrar no Porto às 21h25 — menos de uma hora antes de subir ao palco principal do festival — e só o pôde fazer graças a um corropio de movimentações da organização e dos patrocinadores do NOS Primavera Sound, que passaram o dia em telefonemas para garantir que não aconteceria a hecatombe de uma das estrelas não atuar. Para chegar ao Porto, o colombiano teve de seguir aliás um percurso alternativo àquele que inicialmente tinha delineado, viajando de carro até Nice e apanhando na cidade francesa um avião particular direto para o Porto.
Apesar da correria que antecedeu o concerto, resultante de problemas no aeroporto portuense que originaram ainda o cancelamento de um outro concerto, o de Mura Masa (que passou 5h num aeroporto londrino, 2h30 das quais num avião, acabando porém por não poder voar rumo ao Parque da Cidade), não se notou cansaço em J Balvin. O colombiano, de camisola branca vestida, dente metalizado, brinco na orelha e tatuagens no corpo, pareceu sempre fresco enquanto andava pelo palco e desfilava êxito atrás de êxito.
A fórmula consiste em misturar o reggaeton, outrora desprezado pela crítica (alguém se lembra de “Gasolina” ser remotamente consensual?), com outros ritmos sul-americanos e com novas estéticas musicais bastante populares nos Estados Unidos, como o trap (um sub-género do hip-hop, profundamente hedonista) e a EDM. J Balvin foi elogiado por isso até na revista musical (outrora feroz) Pitchfork, que deu uma pontuação de 8 em 10 ao seu último álbum, e no Porto provou que a sua fórmula musical é, pelo menos, viciante. De outra forma, não provocaria a euforia que causou e as danças lascivas de adolescentes que se multiplicavam por metro quadrado. Há, já agora, gente de várias idades, rapazes e raparigas, com um controlo incrível sobre os quadris, a bacia, a coxa e os rabos. Bastou andar pelas primeiras filas para ver a loucura (que se estendia até lá bem atrás) que se instalava a cada início de canção de J Balvin, a cada refrão, a cada disparo instrumental.
“Con Altura” — tema que J Balvin gravou com Rosalía e o produtor musical El Guincho —, “Downtown” (que gravou com a brasileira Anitta), “Como Un Animal”, “6AM”… os seus êxitos são muitos e Balvin levou-os ao Porto. Porventura não os considerando ainda suficientes, ainda se apropriou de temas alheios (como “Bum Bum Tam Tam”, de MC Fioti e “Baila Baila Baila”, do qual gravou uma remistura com Daddy Yankee) para se reivindicar embaixador da nova música latina.
A eficácia é máxima: o grupo de bailarinos que convocou para o apoiar em palco está altamente sincronizado, houve bonecos humanos permanentemente no cenário (incluindo cogumelos e uma proto-Cardi B), os efeitos de fumo disparados aqui e ali foram impressionantes e até a utilização da música pré-gravada foi gerida sem excessos, com um ajudante a dar-lhe um apoio precioso na cantoria. Já tarimbado nos grandes palcos, Balvin foi disparando êxitos e agradecendo insistentemente e em várias línguas: “obrigado, gracias mi gente, thank you so much, so grateful” disse a dada altura, assim mesmo, de rajada.
Se não haverá grandes críticas a apontar à transposição da sua música para palco, porque J Balvin até o faz melhor do que muitos dos seus contemporâneos que fazem música de massas (nomeadamente oriundos do hip-hop), a qualidade e o bom gosto são alvo de discussão desde que J Balvin foi confirmado no cartaz do Primavera Sound. As opiniões dividiram-se entre o “incrível”, claramente maioritário, e o “que azeiteiro dos diabos”, claramente minoritário. Entre os seus fervorosos fãs estará Cristiano Ronaldo: o avançado português terá enviado uma camisola da Seleção Nacional assinada por si e com o 7 nas costas ao músico. Balvin mostrou-a mesmo, na ponta final do concerto.
Para se falar da música, já terá de se ser menos gentil: as batidas instrumentais de J Balvin nos melhores momentos vão beber a ritmos quentes sul-americanos, mas nos piores momentos parecem ir beber diretamente da fonte das batidas chunga das feiras (ainda existem?) das vilas, aldeias e cidades portuguesas, com os seus carrinhos de choque e cangurus do amor, ou ainda a sirenes policiais desafinadas. As letras são de uma puerilidade embaraçosa, recheadas de lugares-comuns e chavões, quando não de idiotices (atente-se na confrangedora letra de “Como Un Animal”, em especial nos versos “aqui hay ritmos bestiales / proprios pa animales”). O momento lap dance do seu espetáculo musical, com “Downtown” a tocar e uma rapariga a esfregar-se em J Balvin, foi tão inconsequente e teve tão poucas intenções artísticas e estéticas que ninguém percebeu bem porque é que existiu, senão para o público ver um rabo feminino esfregar-se no cantor nos ecrãs gigantes; e os “arriba, arriba, arriba” e “sube, sube, sube” insistentemente pronunciados não melhoraram a moldura.
Se os comentários daqueles que mais vibraram com o concerto de J Balvin forem relevantes para perceber melhor este renovador do reggaeton, as conclusões não abonam a favor do que se passou naqueles 85 minutos no Parque da Cidade do Porto: uma rapariga analisa uma das suas canções dizendo que “esta música é top” e, à saída, um adolescente exclamou entusiasmado pelo telefone: “foi bué bera, adorei”. Outro, ripostava que quem gostava de música deprimida não gostava de viver, ponto final.
Não há problema algum em alegrar as pessoas. Os sorrisos rasgados nos rostos de milhares que cantaram e dançaram ao som de J Balvin são bem-vindos, mas esta sexta-feira foi mesmo, goste-se mais ou menos disso, a noite em que o Porto se tornou Zambujeira do Mar e o NOS Primavera Sound mudou de vestes e se aproximou de um Sudoeste, que já tem um público juvenil relativamente fiel e fixo. Sobreviverá um festival a uma variedade tão grande no seu cartaz? A resposta chegará nos próximos anos.
Com João Porfírio e Maria Martinho