O concerto começara há alguns minutos. Só mais tarde Rosalía encarnaria em estrela pop de massas, pose toda ela espampanante, amor para dar e vender às filas da frente deixando-se abraçar pelo público e dizendo “Porto vos quiero mucho”. A ponta final seria efusiva, sim, grandes êxitos todos de rajada que refletem a chegada recente de Rosalía ao estrelato internacional (“Con Altura”, tema que gravou com J Balvin, “Aute Cuture”, a nova canção e “Malamente”, o seu grande single), dança sensual com olhar de matadora, festa iluminada em cima do palco. Foi antes, porém, que Rosalía conquistou o Porto e boa parte dos céticos.
Demorou menos de uma mão cheia de canções a roubar a noite. Já depois de arrancar a atuação com “Pienso En Tu Mirá” — flamenco meets eletrónica, Espanha meets América do Sul e EUA —, já depois de passar com elegância por “Barefoot in the Park”, que gravou com James Blake (primeira grande interpretação vocal, domínio completo do público com as nuances do seu canto, montanha russa de notas acertadas), Rosalía voltou ao passado. E esse, nem aos apologistas do amor monogânico ao rock e às músicas de guitarras poderá ser indiferente.
Primeiro Rosalía apresentou-se, só depois fez marcha-atrás. “Porto! Obrigada. Quero falar português [expressou, com a proximidade possível, na língua de Camões, antes de voltar ao castelhano]. Espero voltar muitas vezes aqui para aprender este língua tão bonita”, começou por dizer. Arrancado já o concerto em beleza, era hora de desafiar os críticos e nada melhor do que mostrar argumentos que não se rebatem: “Para toda a minha gente que ouviu o Los Angeles, esta canção é para vocês”, enunciou. Vinha aí “Catalina”, o quarto tema do seu primeiro álbum (editado em 2017), a grande prova de fogo em solo nacional amplamente superada.
A capella, primeiro, quase a capella, depois — acompanhada apenas pelas palmas do seu coro particular —, Rosalía abriu a boca e olhou a multidão que enchia o Parque da Cidade nos olhos. Quando cantou, atirando os efeitos de voz que lhe serviram noutros momentos do concerto às urtigas, remetendo as batidas eletrónicas e dançantes ao silêncio, não foi menos do que espantosa: canta com mestrado em flamenco (quase literalmente, já que o estudou na Escola Superior de Música da Catalunha com o grande professor Chiqui de La Línea, muito seletivo na escolha dos seus alunos), um alcance vocal portentoso, uma gestão e utilização dos silêncios memorável.
Foi pena o burburinho causado pelas conversas na plateia naqueles silêncios, durante aqueles segundos que provavelmente alguns milhares recordarão daqui por uns anos, se Rosalía continuar a crescer desmesuradamente e provar que a sua fama não durará 15 segundos. Nem as conversas ou a aparente desatenção de alguns grupos na plateia a distraiu, nem isso a impediu de mostrar que estão errados os que a resumem aos seus trejeitos aparentemente e docemente brega, “azeiteiros” para quem não a suporta e a viu no Porto com unhas gigantes, brincos de também portentosa dimensão, roupa branca do casaco proto-robe aos calções, cor dourada no cinto e no colar cintilantes.
Rosalía poderia ter optado só por argumentos clássicos e por esse grande álbum que é Los Angeles para dar um concerto semelhante àquele com que se estreou em Portugal, em setembro de 2017 no Theatro Circo, em Braga, ao lado do seu então parceiro (e colaborador de Lee Ranaldo, Silvia Pérez Cruz e Christina Rosenvinge) Raül “Refree”. Sairia com os indies aos pés, rendidos à sua grande voz e à delicadeza e elegância dos arranjos acústicos, só voz e guitarra a derreterem corações. Acontece que ela já não é só isso. Depois da aventura desconcertante que foi El Mal Querer, disco do ano passado, e depois da submersão mais profunda na pop que se lhe seguiu (mas pop à sua maneira, a pop que lhe interessa e que mais ninguém faz), a catalã é estrela por inteiro, com direito até a trocar algum recato por opções mais escorregadias, dança de reggaetonera safada, movimentos de miúda mais desempoeirada do que solene.
A mistura entre batidas eletrónicas e ritmos tradicionais do seu país não é, na teoria, assim tão diferente do que faz J Balvin, o cantor que atuou no festival na véspera, mas na prática é como noite e dia. De um lado estão canções de reggaeton-dance pop sem desvios inesperados, do outro temas com voltas inusitadas, sons que não se percebe bem de onde aparecem, uma mistura sonora mais individual do que escolástica, que até na mensagem lírica — feminista e crítica, ao abordar por exemplo a violência física e psicológica sobre mulheres, um dos maiores flagelos de muitos países mas em particular de Espanha — é relevante.
O coro ia ajudando a cantora a manter a tradição flamenca como âncora para partir com ela para aventuras de festa pop, no concerto no Porto. As bailarinas asseguravam que o espetáculo era completo e encaixava nos ditames da música para multidões, mas o resto foi mérito de Rosalía, veste casaco despe casaco, drama na voz e na pose, ou a dançar ou num desassossego teatral que a fez parecer estar sempre a debater-se com algo, de mão direita a agarrar o microfone e palma da mão esquerda aberta, para cantar definitivamente.
Existissem mais Rosalías e o NOS Primavera Sound tinha o futuro mais do que assegurado. Aposta ganha para a última noite de concertos do festival, mostrou-se na verdade uma belíssima representante daquilo que o festival (e, em boa verdade, grande parte da indústria musical) está à procura: talento em barda e capacidade de apelar a públicos diferentes com a mesma música. É difícil não ir buscar alguma coisa ali: os indies podem abraçar o flamenco e a poderosíssima voz que se ergue amiúde, os festivaleiros de ocasião podem abraçar o corropio de movimentos e passos de dança de Rosalía e das suas bailarinas, os ritmos rápidos e dançantes de “Con Altura” e “Aute Cuture”, onde o silêncio não tem já o mesmo espaço, ou os refrões fáceis de decorar e entoar às cavalitas de um amigo ou de uma amiga.
Com um alinhamento baseado sobretudo no seu segundo álbum, aquele que a afirmou como uma das grandes protagonistas das novas tendências da música mundial, Rosalía foi tradicional e moderna, humana e eletrónica, íntima quando se ancorou no silêncio e voz e expansiva quando seguiu pela via do ritmo rápido e festa. Ainda é preciso tempo para o confirmar, mas dificilmente não terá ficado na galeria de concertos decisivos da história do festival. Afinal, foi a jovem certa na edição certa do NOS Primavera Sound: uma edição que andou à procura, nem sempre com sucesso, de um ponto de equilíbrio entre mérito e popularidade.