O termómetro marcava mais de 30 graus. Milão já abraçou o verão que, em Portugal, se faz esperar. A dois dias das apresentações portuguesas na capital da moda italiana, a fila de manequins estende-se ao longo de vários metros. Além de um solário natural, é aqui (e assim) que se espera para entrar no casting para os desfiles de Miguel Vieira e David Catalán, marcados para segunda-feira, 17 de junho. Em semana da moda, esta dedicada ao pronto-a-vestir masculino, o cenário repete-se um pouco por toda a cidade. No total, mais de 400 rapazes passaram por aqui. À mercê do crivo de designers e produtores, a seleção afunilou-se até restarem menos de 40.
À semelhança do que aconteceu com Alexandra Moura, na estação passada, foi a vez de Miguel Vieira se estrear no calendário oficial de desfiles da Semana da Moda de Milão. O convite chegou numa altura em que o criador português já era praticamente um habitué, só não partilhava as atenções com as grandes marcas. Armani, Versace, Dolce & Gabbana e Fendi, entre outras, fazem parte do programa de festas. Agora, há um novo nome que, timidamente, reclama um lugar dentro da constelação. “Sempre me senti muito acarinhado aqui. Consigo ter uma química com toda a gente — manequins, aderecistas, maquilhadores, cabeleireiros, jornalistas”, refere o designer, em conversa com o Observador, após o desfile desta segunda-feira.
Antes demais, interessa explicar a amplitude do salto. Num calendário dividido entre apresentações, eventos e desfiles, Miguel Vieira dividiu-se, nas últimas estações entre os dois primeiros separadores, precisamente porque a terceira categoria está reservada aos grandes. Entrar é complicado, garante Miguel Vieira. “É complicado porque é um convite feito pela Camera Nazionale della Moda Italiana, uma mesa onde se sentam outros designers que dizem sim ou não. Dizem sim aos italianos, mas raramente dizem sim aos estrangeiros”, continua Miguel Vieira. Agora, o alcance é outro e o impacto do upgrade fez-se sentir logo com o anúncio do calendário. Dos buyers aos jornalistas, dos influenciadores aos , de repente, choveram pedidos de convites e acreditações. Sobre a exposição e com ela a responsabilidade. “Quando soube, já tinha a coleção preparada. Ainda assim, fiquei estupidamente nervoso, parecia que ia fazer o meu primeiro desfile”, conta.
O homem que, outrora, pintou sucessivamente a passerelle de preto e branco, é hoje um autêntico colorista. Para Milão, levou o verde esmeralda, o bege, o azul, o bordeaux, o rosa e o verde menta. Sem abrir mão do fato, explora outras variantes do guarda-roupa masculino com subtileza. “Acho que tenho um corte muito bom no fato, fui aperfeiçoando-o ao longo dos anos. Não quero fugir daí, tenho um mercado para isso e há muita gente que me procura por causa disso”, esclarece o criador de 53 anos. Descontraída, a alfaiataria de Miguel Vieira surge intercalada com algo mais — calções fluidos com pinças, blusas de traçar, cavas, bum bags, sandálias e bolsas com correntes douradas. Uma nova linguagem que, quando comparada com o registo puramente clássico do passado, prova que o homem de Miguel Vieira é hoje uma versão 2.0 de si próprio.
“Temos uma longa relação com a moda portuguesa. É um país com uma visão muito interessante do que a moda é e com designers com pontos de vista bastante pessoais e isso é muito importante. A verdade é que uma semana da moda se torna mais rica quando mostra visões e ângulos diferentes. Este vem de Portugal, onde também existe uma produção em muita atenção dada a esta indústria”, afirma Carlo Capasa, presidente da Camera Nazionale della Moda Italiana, ao Observador. Por detrás das escolhas recentes — Miguel Vieira como novo residente do calendário de desfiles e David Catalán como novo talento — está o desejo de tornar a Semana da Moda de Milão mais fluida e global. No fundo, pô-la “em sintonia com a nova geração”, defende Capasa.
David Catalán, Kurt Cobain e a ganga dos anos 90
Nem de propósito. Uma semana depois de Courtney Love ter dito que o fantasma de Kurt Cobain andava em tentativas de comunicação — bem sucedidas, segundo os relatos da própria –, o ícone do grunge voltou a ser evocado, mas desta vez com contornos bem menos místicos. É que a moda, melhor do que qualquer jogo do copo, tem esse poder. David Catalán mostrou que sabe usá-lo e que, através de uma única silhueta, é sempre possível trazer à vida um ídolo morto. Na passerelle de Milão, o criador de 29 anos fez da ganga o que quis, envolveu o vestuário urbano masculino num embrulho rebelde e inconsequente, vestiu rapazes de fato de treino e fez sobressair o xadrez.
Em vez de fontes de inspiração inusitadas, Catalán é o espanhol portuense que se cinge às evidências do quotidiano e às suas próprias referências e gostos. “É o que me rodeia. Inspiro-me no que vejo na rua, nas pessoas que estão à minha volta. Os meus amigos são um bocado as minhas musas e eles têm estado a trazer muito dos anos 90 ao de cima. Vejo muito isso no Porto”, recorda o jovem designer que, há sete anos cruzou, a fronteira e sem bilhete de regresso. O que propõe para o verão de 2020 é um guarda-roupa para a rua, inspirado a rua. À coleção deu o nome de “Not Finished”, ou seja, “Não Acabada”, tal como a vida de Cobain.
Com os óculos do ídolo, os manequins alternaram coordenados puramente desportivos com apontamentos tão tradicionais como as velhas camisas às riscas. No equilíbrio de clássico e urbano, pode dizer-se que David Catalán dá com uma mão e tira com a outra — o fato escuro com encaixes de tecido nas mangas seguido de um rapaz vestido em full denim verde. Curiosamente, as imagens, à partida opostas, coabitaram em harmonia. O designer soube colá-las com eficácia, quer através do seu sportswear colegial, quer através de subtilezas como os dois momentos em que, de repente, tínhamos aquela espécie de pijama acetinado a passar-nos diante dos olhos.
Catalán não teve escolha, já que o futuro da sua marca neste grande palco que é a Milano Moda Uomo sempre esteve dependente desta estreia. Na mala, trouxe 40 coordenados e um ritmo capaz de fechar a participação portuguesa nesta semana da moda com pujança. O casting foi na muche. Há um mês, a notícia de que havia sido escolhido para integrar a plataforma na qualidade de novo talento apanhou-o desprevenido. Ele que nunca tinha, sequer, desfilado na grande capital italiana da moda e que, em última análise, partiria sempre em desvantagem em relação a uma fila de veteranos em buscar de um lugar ao sol da Lombárdia.
Para trás, ficou aquela sexta-feira cansada em que recebeu a notícia por telefone. Ao contrário de Miguel Vieira, nada fazia prever a manobra. “Comecei a trabalhar no dia seguinte. Ia fazer o showroom em Paris, por isso, já tinha a maioria dos esboços e os tecidos também já estavam escolhidos”, explica, ainda à conversa com o Observador. Desse lado, David Catalán tem o apoio e patrocinadores, entre os quais estão a Riopele e a Troficolor. “A coleção é muito grande e foi toda feita num mês, mas a equipa também está a crescer”, continua. Quem diz a equipa diz a próprio nome enquanto marca. Por causa do desfile desta segunda-feira quente, em Milão, houve compradores dispostos a fazer as primeiras encomendas, alguns pediram mesmo para ver a coleção anterior, por mais que o outono, falando do lado operacional e logístico da moda, esteja já ao virar da esquina.
Será que a orientação vem do além? Não parece. A capacidade de execução, o radar sintonizado nas tendências (e/ou na rua) e a aparente facilidade com que já construiu um registo identitário valeram a David Catalán uma estreia num dos grandes palcos da moda mundial. A próxima estação não está garantida, em todo o caso, este é uma partida que se vence em mais do que uma jogada. A próxima é em Paris.
Na fotogaleria, veja todos os looks dos desfiles de Miguel Vieira e David Catalán, em Milão.
O Observador viajou até Milão a convite do Portugal Fashion.