Um jogo dos oitavos de final de um Campeonato do Mundo tem sempre a sua quota parte de emoção e nervos à flor da pele. O facto de ser já na fase do “mata-mata”, como lhe chamava Luiz Felipe Scolari, acrescenta às partidas para lá da fase de grupos uma componente de tudo ou nada em que um erro pode ser fatal para as aspirações de uma equipa. O confronto entre Inglaterra e Camarões deste domingo, a contar para o Campeonato do Mundo de futebol feminino, teve tudo isto: emoção, nervos à flor da pele, sensação de tudo ou nada. Mas teve tudo isto a multiplicar por infinito.

Olhando para o resultado final da partida dos oitavos de final do Mundial que decorre em França, a verdade é que a história do jogo parece bastante simples. Inglaterra venceu por 3-0, eliminou os Camarões e está apurada para os quartos de final da competição. Mas o Stade du Hainaut, em Valenciennes, assistiu a muito mais do que isso: na verdade, assistiu a um dos jogos de futebol mais surreais dos últimos tempos. Cedo se percebeu que os níveis de tensão estavam muito acima da média, primeiro com a cotovelada da camaronesa Yvonne Leuko à avançada Nikita Parris e depois com o golo de Steph Houghton ainda durante o quarto de hora inicial, que deu uma vantagem precoce à seleção inglesa.

Os problemas a sério começaram a chegar já perto do intervalo. No quarto minuto de descontos da primeira parte, Ellen White marcou o quarto golo da conta pessoal no Mundial e engrossou a vantagem inglesa — a equipa de arbitragem anulou o golo numa fase inicial, por alegado fora de jogo da avançada do Manchester City, mas o VAR acabou por considerar o lance legal. A seleção dos Camarões reagiu de uma forma surpreendente à validação do golo, com lágrimas e muitos protestos junto da árbitra da partida, e a dada altura pareceu recusar-se a jogar: as jogadoras juntaram-se numa espécie de reunião junto à linha do meio-campo, ao invés de reiniciarem o encontro, e só a mediação feita pela equipa de arbitragem e a capitã camaronesa permitiu recomeçar a partida. Ao intervalo, as jogadoras dos Camarões recolheram ao túnel a chorar compulsivamente.

Só depois de uma conversa entre a capitã camaronesa e a árbitra da partida é que as jogadoras aceitaram recomeçar o jogo

O ambiente ficou ainda mais tenso já na segunda parte, quando o VAR anulou o golo de Ajara Nchout por fora de jogo, e as reuniões de equipa à revelia da árbitra tornaram-se recorrentes até ao apito final. As lágrimas que iam aparecendo na cara das jogadoras dos Camarões intensificaram-se com o aproximar do apito final e o terceiro golo das inglesas, por intermédio de Alex Greenwood, e a falta de discernimento deu origem a entradas perigosas como a de Alexandra Takounda sobre Steph Houghton que colocou a central em dúvida para o jogo dos quartos de final.

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Já após o final do jogo, o selecionador inglês Phil Neville — antigo jogador do Manchester United e irmão de Gary Neville — garantiu-se “envergonhado” pelo comportamento da seleção adversária. “Estou completamente e totalmente envergonhado. Nunca vi uma coisa destas num campo de futebol e acho que este tipo de comportamento é muito triste. Pensem em todas as raparigas e rapazes que estavam a assistir”, disse Neville, que se mostrou ainda “orgulhoso” com a reação das inglesas e recomendou à equipa dos Camarões que “coloque o navio em ordem”. “Pareciam crianças quando perdem e agarram na bola para ir para casa a chorar. Foi triste. Tenho de dizer a verdade. Nós vimos pessoas dos Camarões a lutar na zona VIP. Vimos pessoas dos Camarões a lutar no nosso hotel. A seleção tem de colocar o navio em ordem. Nem sequer vou falar sobre o que vi no hotel”, concluiu o selecionador inglês. O assunto é mesmo capa de vários jornais ingleses esta segunda-feira, com a palavra “vergonha” a ser comum a quase todas as manchetes.

Já Alain Djeumfa, o treinador dos Camarões, rejeitou a ideia de que as jogadoras se recusaram a recomeçar a partida e falou num “aborto da justiça”. “Acho que nunca parámos e recusámos jogar. Ocasionalmente, quando se está neste estado de choque, podemos perder a calma, mas não acho que as jogadoras tenham recusado jogar. Sim, tivemos um momento em que pensámos em abandonar o campo, mas graças a Deus fui capaz de permanecer calmo. Era muita paixão. Às vezes os árbitros cometem erros mas esta equipa de arbitragem cometeu muitos erros”, explicou o selecionador camaronês.

Pré-anúncios de greve, lágrimas e conferências de imprensa quase surreais à parte, a verdade é que Inglaterra está mesmo nos quartos de final do Mundial de futebol feminino e vai defrontar a Noruega, que bateu a Austrália nas grandes penalidades, já na próxima quinta-feira. Também nos quartos de final estão a Alemanha, que eliminou a Nigéria (3-0), e a França, que afastou o Brasil (2-1). Ainda esta segunda-feira, Espanha defronta os Estados Unidos e a Suécia encontra o Canadá e esta terça-feira Itália e China e Holanda e Japão discutem os últimos lugares dos quartos de final.