A fábula da relação entre o procurador-geral da República e a rainha de Inglaterra foi criada por Pinto Monteiro em agosto de 2010. O então procurador-geral da República (PGR) estava sob fogo por alegadas interferências na gestão do processo Freeport — onde José Sócrates estava referenciado mas no qual nunca foi constituído arguido — quando lançou o desafio ao poder político para reforçar os poderes da hierarquia do Ministério Público (MP). Tudo porque, no seu entender, o procurador-geral “tem os poderes da rainha de Inglaterra” — ou seja, não mandava nada.
Nove anos depois, e com uma greve dos magistrados do MP a decorrer em protesto com as propostas do PS e do PSD de alteração do Estatuto do MP, Joana Marques Vidal recuperou a fábula da rainha de Inglaterra numa conferência organizada pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. A ex-procuradora-geral não tem dúvidas de que as duas propostas representam um ataque à autonomia do MP, pois ambas “diminuem as competências do PGR, ao nível das competências de fiscalização e de direção hierarquia de responsabilização, e transferem as mesmas para o Conselho Superior do Ministério Público, fazendo uma perigosa mistura entre aquilo que são as funções de avaliação de mérito e as funções de hierarquia.”
Isto além do mais transformaria finalmente… finalmente!… finalmente, transforma o procurador-geral na rainha de Inglaterra. Já não é no meu tempo”, afirmou Marques Vidal com um sorriso irónico, que foi correspondido pelo aplauso geral da sala da conferência, composta essencialmente por procuradores de todo o país que estão em greve.
A ex-procuradora-geral diz mesmo que, caso a proposta do PSD para transformar uma maioria de magistrados no CSMP em maioria de membros designados pelo poder político seja aprovada, será “uma desgraça”, já que “permite uma interferência política direta” na gestão do Conselho. “Há um equilíbrio no atual conselho entre os membros eleitos pelos seus pares e os membros designados pela Assembleia da República”, afirmou.
Marques Vidal recordou, aliás, que o Estatuto do MP foi historicamente construído no pressuposto de que não é possível uma interferência direta ou indireta (do poder político) na gestão de um processo concreto.
O Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) é o órgão de gestão e disciplinar da magistratura do MP. Trata-se de um órgão que, em nome do princípio de auto-governo das magistraturas, determina a movimentação anual dos magistrados, aprovando ou recusando pedidos de transferência. É também o CSMP, que é liderado por inerência pelo procurador-geral da República, que nomeia os procuradores para todos os cargos hierárquicos do MP, começando nos procuradores-distritais, passando pelo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal e pelos responsáveis dos departamentos de investigação e ação penal distritais e acabando nos coordenadores do MP nas diferentes comarcas e jurisdições.
Por outro lado, tem ainda a responsabilidade disciplinar, determinando as medidas disciplinares a aplicar, mediante proposta do corpo de inspetores judiciais que escrutinam a ação dos procuradores. O CSMP, contudo, pode modificar qualquer sanção ou arquivamento proposto por esses inspetores.
Na prática, é o CSMP quem manda no MP e é composto, neste momento, por uma maioria de magistrados (11 magistrados do MP (uns nomeados pela procuradora-geral e outros eleitos pelos seus pares) contra sete membros nomeados pelo poder político (cinco pela Assembleia da República e dois pela ministra da Justiça), para uma maioria de designados pelo poder político.
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Também Albano Pinto, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, criticou as propostas do PS e do PSD na mesma conferência. Pinto considera que as propostas de lei colocam em causa a autonomia financeira e enfatizou que, caso sejam aprovadas, as mesmas implicarão que o MP passa a depender de uma autorização do Governo em termos de despesa para, por exemplo, realizar perícias financeiras ou de outra índole. “O que a proposta de lei do [PS] significa é que todas as estas estruturas já não gozam de autonomia financeira e ficam dependentes do Executivo”, afirmou.