A história da portuguesa Patrícia Morais, agora com 26 anos, parece digna de um enredo cinematográfico. Em 2016, finda a licenciatura em Londres, em Tradução e Desenvolvimento Internacional, e concluída uma viagem pela América do Sul, sentiu-se impelida a concretizar um sonho que muitos achariam estranho: estudar Kung-Fu a tempo inteiro numa espécie de colégio interno numa aldeia remota da China. “Foi a minha mãe que me ajudou a ir para a China. Disse-lhe que estava decidida a trabalhar e a poupar dinheiro para ir nesta viagem, dois dias depois ligou-me a avisar que me ia emprestar o dinheiro”, conta ao Observador, agora retornada a Portugal. “Foi ela que me empurrou para poder realizar o meu sonho. Os outros chamaram-me maluca.”
A experiência de Patrícia, que foi agora transposta para o livro “Crónicas de Shaolin” (Coolbooks) é inusitada. Depois de se perder em Pequim, acabada de chegar à China, apanhou o comboio para Yantai, cidade no norte da província de Shandong, uma viagem de cinco horas à qual se somou mais uma hora e meia de carro. Do que se lembra, a pequena aldeia onde haveria de ficar a viver durante 12 meses tinha uma loja de conveniência ao fundo de uma rua e um restaurante, pouco mais existia além do parque natural e do templo taoista que eram motivo de alguma atração turística.
Comecei por pesquisar artes marciais na China. Como tinha estudado tradução e tinha aprendido um pouco de Mandarim, achei que seria uma boa oportunidade para aprender um pouco mais a língua ao mesmo tempo que fazia algo de que gostava. Desde pequena que faço karaté. As artes marciais era um desporto, um hobby, mas nunca tinha praticado a tempo inteiro”, diz em entrevista ao Observador.
Mas porquê, porquê deixar tudo para trás e rumar a um destino longínquo para uma finalidade incomum? Ao Observador, Patrícia conta que estava a fugir de algo — à semelhança das muitas pessoas que conheceu e dos muitos amigos que fez naquela escola, a Kunyu Mountain Shaolin Martial Arts Academy. No caso dela foi uma forma de lidar com a depressão, mas reconhece que deu de caras com histórias bem mais pesadas do que a sua: “Havia pessoas que tinham sofrido abusos físicos ou emocionais, que perderam familiares, que estiveram envolvidas com drogas no passado… Uma delas matou alguém involuntariamente em autodefesa”.
Em termos físicos era muito doloroso porque estávamos constantemente a treinar. O nosso corpo ficava cansado e só tínhamos o fim de semana para descansar. O horário era muito rígido e as aulas ocupavam o dia todo”, conta ao Observador.
Durante todo o tempo que ali esteve, Patrícia Morais foi a única portuguesa. Antes dela só outro conterrâneo. Pelo que conta ao Observador, não há registo de mais portugueses inscritos naquela escola de artes marciais que, a par dos turistas que vai recebendo e que ficam temporadas curtas, acolhe alunos de estadia prolongada oriundos dos vários cantos do mundo, a maioria deles ocidentais. Ali, um dia normal começava às 06h e terminava pelas 17h. Havia aulas de Mandarim, um dos motivos porque Patrícia escolheu aquela escola, mas também muitas horas dedicadas às artes marciais, as quais envolviam constante esforço físico, tanto que as nódoas negras eram recorrentes, ainda que dependendo da pessoa com quem treinasse. Volta e meia havia lábios inchados e joelhos lesionados.
O maior choque cultural que Patrícia enfrentou não foi necessariamente as regras restritas impostas na escola — o recolher obrigatório estava marcado para as 21h30, hora a partir da qual as interações sociais estavam limitadas às pessoas com quem se partilhava o quarto. O que custou mais foi a língua, diz, o facto de ser muito difícil os locais conseguirem falar inglês. “Depois uma pessoa até começa a saber interagir com outras formas de comunicação, com gestos, mas no início a língua foi um pouco difícil. E, em termos de privacidade, diria que a cultura chinesa diferencia um pouco da europeia. Eles tinham um certo de tipo de curiosidade por nós que nos faz descobrir que não temos assim tanto espaço pessoal. A constante invasão custou-me mais.”
Regressar a Portugal não foi fácil. Para trás ficaram amizades para a vida — incluindo uma relação amorosa com um dos colegas. “Ali estava rodeada de pessoas iguais a mim, éramos todos iguais de certa forma, com as mesmas paixões, e havia um horário delineado.” A habituação pode ter sido difícil, mas hoje Patrícia Morais garante que a academia deu-lhe os instrumentos necessários para poder continuar cá fora, de certa forma, o trabalho físico e emocional. A portuguesa de 26 anos continua a praticar artes marciais. De momento está a tirar um mestrado na área dos Direitos Humanos, mas gostava de associar artes marciais a programas sócio-educativos. A ideia já a tem. O resto fica entregue ao futuro.