Morreu o cantor e compositor brasileiro João Gilberto, confirmou o filho, João Marcelo Gilberto, nas redes sociais. Tinha 88 anos. Era considerado um dos pais da bossa nova graças a álbuns como Chega de saudade (1959), O amor, o sorriso e a flor (1960) e João Gilberto, de 1961. Em 2015, a Rolling Stone Brasil considerou-o o segundo melhor músico de todos os tempos — ultrapassado apenas por Tom Jobim.

Foi essencial na criação da bossa nova graças à forma de tocar violão, que juntava a harmonia e o ritmo de uma forma que na altura surgiu como uma revolução. Com a sua voz grave mas leve, por vezes de forma quase sussurrada, Gilberto criou um estilo interpretativo que juntava as referências ao samba-canção a outras tradições brasileiras e ao jazz. Nem sempre com o tempo com preocupação, a bossa nova (que significa algo como “nova moda”) foi rapidamente apropriada por uam geração de músicos que transformaram o género numa das maiores exportações brasileiras — e que acabou por contaminar muitos outros géneros, parte fundamental também do rótulo que surgiria como MPB, ou música popular brasileira.

Em declarações à RTP, Caetano Veloso, antes de embarcar no voo que o levou de Lisboa para os Açores, onde vai atuar, disse:

“Acabei de saber que o João morreu, para mim isso é importante de mais, toma conta da minha cabeça inteira. João é para mim o maior artista brasileiro, sob todos os pontos de vista, não só na música popular, para mim, na história da minha vida, é o maior artista do mundo. Ele foi muito mais que uma inspiração, foi uma revelação”

Na mensagem publicada no Facebook, Marcelo Gilberto escreve: “O meu pai morreu. A luta dele foi nobre, tentou manter a dignidade à luz da perda de sua soberania. Agradeço à minha família (meu lado da família) por estar lá para ele, e Gustavo por ser um amigo de verdade para nós, e cuidar dele como um de nós. Por fim, gostaria de agradecer a Maria do Céu por estar ao seu lado até o final. Ela era sua verdadeira amiga e companheira”.

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João Gilberto Pereira de Oliveira nasceu em Juazeiro, estado brasileiro da Bahia, mas vivia no Rio de Janeiro, onde agora morreu, desde 1950 quando começou a carreira musical na banda Garotos da Lua — de onde foi despedido por faltar constantemente aos compromissos. O sucesso que lhe é reconhecido só chegaria já no final da década quando acompanhou com violão — instrumento que viria a tornar-se num símbolo para o músico — a cantora Elizete nas canções “Chega de Saudade” e “Outra Vez”, que são consideradas das primeiras criações de bossa nova.

Em 1958, João Gilberto lança um álbum que incluía o tema “Chega de Saudade” (e que foi também o título do LP) e a bossa nova inaugura-se verdadeiramente como um género próprio da cultura brasileira. A forma de tocar e cantar de João Gilberto conquista os ouvidos do público mais jovem — em que se incluíam Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque ou Roberto Carlos, todos considerados atualmente dos músicos mais importantes do Brasil. Graças a esse sucesso, João Gilberto passou a ser reconhecido como um dos melhores músicos brasileiros de todos os tempos.

Ruy Castro: “O que define a bossa nova é o violão de João Gilberto”

Como lembrou Ruy Castro, autor de Chega de Saudade (a história definitiva da bossa nova), em entrevista ao Observador, “Tom Jobim escreveu na contracapa do LP ‘Chega de Saudade’, de João Gilberto, ‘um baiano bossa nova’. Era um adjetivo, não um substantivo. Aí o Ronaldo Bôscoli e um jornalista chamado Moisés Fuchs, que fazia parte do grupo universitário hebraico, perceberam o potencial promocional da coisa, uma maneira rápida de definir aquele tipo de música que não se parecia muito com o que se fazia antes. Embora fosse basicamente o samba, era um samba ritmicamente mais simplificado, embora segundo eles fosse harmonicamente mais complexo. Era uma bossa nova.”

Os álbuns mais icónicos de João Gilberto já não estão à venda desde 1987, ano em que a EMI, que tinha posse das obras da Odeon, lançou, sem autorização do músico, os álbuns “Chega de saudade”, “O amor, o sorriso e a flor” e “João Gilberto”. Além disso, a empresa também alterou a ordem de apresentação dos temas nos discos. João Gilberto abriu um processo por danos morais e materiais.

Regressando ao início, e de acordo com o Globo, depois do fracasso no Rio de Janeiro, João Gilberto procurou sucesso em Porto Alegre, Diamantina e novamente na cidade natal. Regressaria ao Rio de Janeiro depois disso, para ficar com a irmã. Durante os seis meses em que viveu com ela, conta o Globo, “não saiu de casa, pouco falou, dia e noite abraçado ao violão” à procura de um estilo que o pudesse lançar no mercado. Foi assim que encontrou a bossa nova.

Tudo aconteceu quando João Gilberto tinha 26 anos e começou a influenciar “toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”, descreveu Tom Jobim. A bossa nova não era apenas mais um traço da identidade brasileira: foi também um escancarar de portas da cultura brasileira para o mundo. João Gilberto trabalha no Brasil, mas também concretiza projetos nos Estados Unidos, um pouco por toda a Europa, México, Canadá, Alemanha e Japão, enumera o Globo.

Os projetos nos Estados Unidos eram muito vincados — tanto que chegou a morar por lá. Aliás, o filho que anunciou a morte do músico este sábado, vive nos Estados Unidos e confessa, através do Facebook, que fala em português mas não se atreve em escrever na língua do pai. João Gilberto tem mais dois filhos além de Marcelo Gilberto: Bebel e Luísa. Mas estava judicialmente interditado pela filha Bebel (também cantora) desde 2017 devido aos problemas financeiros do artista.

A partir do final dos anos 60, a bossa nova passou a ser vista de forma negativa por muitos que a associavam ao regime que em meados da década tinha instalado uma ditadura militar no Brasil. A bossa nova ficava de alguma forma associada a um establishment que não era bem visto, a um acomodar que não era bem recebido. De tal maneira que muitos músicos começaram a negar a associação à bossa nova, João Gilberto incluído. Como recorda Ruy Castro, na mesma entrevista:

“Na altura a palavra bossa era veneno e era para ser evitada. Sendo que nesse período a maioria dos grandes nomes da bossa nova, excepto um, tinham negado a bossa nova. A Nara Leão negou a bossa nova, o João Gilberto negou a bossa nova, o João Gilberto disse que não fazia bossa nova, ‘eu faço samba’, vários. Menos um. Houve um que sempre usou a expressão e até a forma de a usar demonstrava um carinho enorme. Foi o Tom Jobim.”

O reencontro popular com o legado da bossa nova acabaria por surgir de corpo cheio a partir da segunda metade da década de 80. João Gilberto voltaria a ser recuperado como nome fundamental da história da canção e novas gerações encontraram no mestre inspiração para incorporar essa tradição em novos pontos de vista.

Desde então, Gilberto continuaria a dar concertos, cada vez menos, sempre que possível sozinho em palco com o violão, uma espécie de espelho em relação à forma como lidava com a vida pessoal, atribulada, entre dilemas familiares e problemas financeiros que o deixaram com dificuldades de auto-suficiência.

Nos últimos tempos, João Gilberto estava afastado dos holofotes. A 10 de junho, dia em que completou 88 anos, a nora do músico, Adriana, mulher de Marcelo Gilberto, publicou uma selfie em que João Gilberto aparece na companhia da neta de três anos, Sofia, e da filha que Adriana teve num relacionamento anterior. A fotografia surgiu com a legenda: “Ontem, em sua casa, falou para mim, para Alice e para Sofia: ‘Uma sorte a gente ter-se encontrado nesses universos todos’“.

De resto, pouca gente pode visitar João Gilberto, explica a Folha de São Paulo. O processo de interdição que Bebel moveu, alegadamente por causa da idade avançada do músico e da situação precária em que vivia, levou a que fosse despejado do apartamento em que vivia no Leblon, Rio de Janeiro — não pagava a renda há vários meses. Agora vivia num apartamento emprestado na Gávea. Entretanto, esse processo prosseguiu no sentido de impedir que Cláudia Faissol, ex-companheira do artista, tivesse controlo sobre a vida de João Gilberto. O caso está em segredo de justiça.