Título: A Morte é um Acto Solitário
Autor: Ray Bradbury
Editora: Cavalo de Ferro
Preço: 17,69€

A Morte é um Acto Solidário foi publicado no passado mês de maio pela Cavalo de Ferro

Num mundo onde a maior parte de nós apenas conhece o norte-americano Ray Bradbury pela sua obra distópica, Fahrenheit 451, ou pelos seus romances de ficção científica e fantasia, ler A Morte é um Acto Solitário ensina-nos uma coisa muito importante: as expectativas são boas até certo ponto.

É bom sentir aquele bichinho de antecipação antes de se ler um livro muito esperado, talvez de um autor acerca do qual já ouvimos tanto e do qual ainda não lemos nada. Tudo o que sabemos sobre ele e a sua obra está elencado na nossa mente ainda antes de abrirmos o livro. Mas damos por nós e estamos na página 20 e ainda não percebemos uma palavra do que está escrito. Nada do que esperávamos encontrar está lá. “Como assim este livro de Bradbury não é sobre ditaduras, opressão, liberdade de pensamento, sociedades futuristas?”, poderemos pensar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É neste momento que nos são apresentadas duas opções: ou mandamos o livro às urtigas, praguejando contra todos os que nos disseram para o ler, ou percebemos que temos de lhe dar espaço, pedir às expectativas para irem fazer algo de mais útil com a vida, e recomeçar com um olhar fresco. A Morte é um Acto Solitário precisa desse distanciamento, desse olhar fresco. Até porque, ao fazermos isso, vamos descobrir alguns dos elementos típicos de Bradbury disfarçados com nova roupagem.

Trata-se de um mistério policial, passado nos anos 40, contado do ponto de vista de um jovem escritor de contos de ficção científica. Este vai sobrevivendo graças aos míseros dólares que recebe da venda dos seus textos a jornais e revistas. Ao longo da narrativa, o autor sem nome vai assistindo a uma série de mortes que crê serem homicídios. Obcecado, toma a iniciativa de começar uma investigação, o que o leva a encontrar entre as vítimas um elo de ligação — ele próprio.

Na personagem do escritor temos uma figura que poderia ter sido retirada de um romance de Dostoiévski. É alguém que constantemente se refugia dentro da sua própria psique, perdendo-se no labirinto que é a sua mente atormentada pelas mortes. Muitas vezes o leitor fica sem saber o que é real e o que é sonho, ou paranoia ou alucinação.

Tal como Raskólnikov em Crime e Castigo, o escritor vai deambulando pela cidade, perdido nos seus devaneios, nas suas correntes incessantes de pensamentos e ligações. E assim como Raskólnikov se perde dentro de si próprio devido à morte de outra pessoa, uma morte causada por ele, também o escritor de Bradbury é atormentado pelo rol de cadáveres que se vão acumulando. Porém, poder-se-ia dizer que este personagem é, na verdade, um anti-Raskólnikov, pois o seu tormento surge tanto pela incapacidade em salvá-las, como por poder ser, ainda que acidentalmente, o causador destas mortes.

Para contrastar com esta personalidade altamente introspetiva e louca, temos Elmo Crumley, um detetive da polícia que sente uma ligação quase paternal para com o jovem escritor. Crumley é a âncora que o vai mantendo no âmbito do real, do concreto. O que interessa para Crumley são provas, factos, objetividade. A sua descrença para com a ideia de que foram perpetrados uma série de homicídios, impele o autor a investigar mais fundo, a tentar provar aquilo que a sua intuição lhe diz.

Não se trata, no entanto, de uma relação de mentor/pupilo. Tal como Crumley mantém o escritor no plano do real, o escritor ajuda Crumley a desenvolver o seu lado subjetivo e artístico, incentivando-o a escrever um romance. É por isso significativo que seja a junção destas duas formas de viver aquilo que, num dos momentos de maior tensão da narrativa, resolve o mistério das mortes — o detetive guia o escritor numa sessão de hipnotismo para que este possa recuperar a prova que lhe falta para descobrir o assassino.

Além destes dois, temos ainda um desfile de personagens que vão aparecendo ao longo do livro. Estas têm as mais variadas proveniências e vão desde um cabeleireiro a um galã de cinema. Todos merecem as suas páginas de atenção, pois cada um, talvez como o protagonista, é louco à sua maneira. Com todos eles fala o escritor, e todos se revelam essenciais para que ele possa encontrar uma resposta. Bradbury confere profundidade psicológica às diversas personagens, enriquecendo assim a leitura.

Como fundo de toda esta história está Venice, um bairro de Los Angeles, que nos seus tempos áureos foi um centro cultural e de entretenimento, com o seu pontão junto ao mar sempre cheio de visitantes, música, cinema e divertimento. Esta Venice borbulhando de atividade contrasta com a Venice do presente, uma sombra decrépita do seu passado glorioso, onde só habitam as memórias dos que insistem em permanecer, já sem vigor.

O próprio pontão, símbolo da antiga glória do bairro, vai sendo destruído pelas máquinas, arrastando todas as lembranças. As mortes que vão ocorrendo acompanham assim a sua lenta morte, que por sua vez acompanha a morte da Hollywood antiga, das estrelas do cinema mudo e das grandes vozes da ópera.

Não há redenção nem morte pacífica. Há apenas um reconhecimento daquilo que se foi, que já não se é, nem nunca mais se poderá voltar a ser. O pior é que a morte, como diz o título da obra, é um ato solitário. Apesar de estarmos no coração de Hollywood, não há mortes heroicas pois, ao desapareceram, os heróis tornam-se imortais. Aqui, a morte traz o esquecimento anunciado. Ao contrário do que acontece com outras obras de Bradbury, onde ele imagina possíveis futuros partindo de realidades presentes, nesta é concretizado um passado que se encontra prestes a implodir e a entrar no esquecimento.

Assim como Crumley e o escritor conseguem equilibrar as suas duas personalidades, também Bradbury equilibra dois estilos de escrita muito diferentes — o romance psicológico e introspetivo e o mistério policial. Um alimenta o outro, numa simbiose literária. A isto acrescenta uma imagética muito cinematográfica. Para quem gostava de ler um romance de Dostoiévski com uma estética de filme noir com direito a femme fatale, este é o livro.

É claro que é inevitável não ver neste romance um texto semi-autobiográfico. Bradbury viveu em Venice nos anos 40, exatamente antes de publicar O Mundo Marciano, o primeiro texto que lhe conferiu notoriedade no mundo da literatura. Como acontece com o protagonista, também Bradbury teve de viver durante muitos anos com a rejeição dos seus escritos, enquanto tentava viver da sua escrita. No final do livro, o jovem escritor sente-se positivo em relação ao futuro, imaginando uma vida em que escreve a tempo inteiro e é casado com a mulher que ama. Se for uma reflexão a posteriori de Bradbury, podemos dormir descansados sabendo que foi um homem feliz.