Não há memória de algo assim na história da política britânica, pelo menos nas últimas décadas. No que se refere às convenções  sociais que norteiam as relações amorosas dos líderes de Governo e chefes de Estado do Reino Unido, haverá daqui em diante um antes de Boris Johnson e um depois de Boris Johnson: até aqui, não há registo de um líder de Governo ter assumido funções tendo como parceiro ou parceira atual apenas um namorado ou namorada, em detrimento de um marido ou de uma mulher.

A situação até é mais complexa do que parece à primeira vista: não só o novo primeiro-ministro do país não é casado com a nova primeira-dama, algo sublinhado por exemplo por meios como a estação norte-americana CNN e o jornal espanhol El Mundo —que lhe chama “a primeira-namorada da política britânica —, como é casado com outra mulher, Marina Wheeler, de quem ainda não se divorciou oficialmente após mais de 20 anos de matrimónio. O casamento de Boris com Marina, que deverá resultar oficialmente em divórcio até ao final do ano (os dois estão separados desde o ano passado), durava desde 1993 — e começou 12 dias depois do primeiro divórcio do agora primeiro-ministro britânico, que teve como primeira mulher Allegra Mostyn-Owen, com quem teve quatro filhos.

O estado civil do novo líder do Governo britânico, ainda casado, e o da sua namorada Carrie Symonds, ainda solteira, deverão ser mais uma fonte de notícias e debate para a imprensa britânica, em especial para a imprensa tablóide. Isto depois de a relação dos dois já ter gerado discussão e burburinho devido à diferença de idades que têm — Boris é 24 anos mais velho do que Carrie Symonds — e devido a uma discussão que tiveram no apartamento que Symonds possui no sul de Londres, que levou inclusivamente alguns vizinhos a chamarem a polícia. As autoridades abandonaram  o apartamento depois de falarem “com todos os ocupantes, que estavam bem e em segurança”. Boris Johnson, por sua vez, recusou comentar o incidente e entrar em detalhes: “Não acho que as pessoas queiram ouvir-me falar sobre esse tipo de coisas. Acho que querem ouvir que planos tenho para o país e para o partido”, apontou, em resposta a uma pergunta da CNN.

Não é só o modelo de relação amorosa — não matrimonial — entre o líder do Governo britânico e a sua companheira atual que constitui uma novidade na história da política britânica, embora só isso seja já quer revolucionário no país quer um reflexo do modo como o casamento perdeu a hegemonia enquanto modelo único para as relações, no Reino Unido e na Europa. Também a intervenção de Carrie Symonds no espaço público tem sido mais discreta do que aquilo que tem sido tradição entre os parceiros e parceiras de chefes de Estado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

(@ Yiannis Alexopoulos/SOPA Images/LightRocket via Getty Images)

A CNN faz a comparação entre a atual namorada de Boris Johnson e o marido da anterior primeira-ministra Theresa May, Philip, que tendo um “low profile”, ou perfil discreto, “manteve-se a seu lado até enquanto [May] fazia o seu último discurso enquanto primeira-ministra”. Já a namorada de Boris Johnson, nota a estação americana, tem feito “um bom trabalho em ficar longe dos holofotes dos media — raramente foi vista na campanha [de Boris, à liderança do partido e liderança do Governo] e evitou momentos históricos como conhecer a Rainha de Inglaterra”.

Embora a discrição máxima não seja comum, também não é inédita: a mulher de Tony Blair, Cherie, continuou a carreia de advogada após o marido assumir funções governativas e “era, em grande parte, uma pessoa que se mantinha independente, quase sem nada a ver” com as funções do marido, recordou o professor britânico e diretor do Instituto de Assuntos Públicos da Faculdade de Economia de Londres, Tony Travers, à CNN. O especialista universitário recordou ainda que, ao contrário do que acontece com a primeira-dama dos EUA, não há regras restritas para a atuação da primeira-dama britânica: “É muito dependente da personalidade da pessoa em particular”, explicou.

A especulação cresce agora sobre qual será a intervenção futura de Carrie Symonds. Neste momento, discute-se sobretudo se a “primeira-namorada” britânica vai mudar-se para Downing Street — o The Telegraph avança que não, mas não há ainda confirmação oficial —, a histórica residência oficial do primeiro-ministro que servirá de morada a Boris Johnson, e se participará ativamente e notoriamente na sua governação, por exemplo através de envolvimento em viagens diplomáticas ao exterior e comemorações de Estado.

 (@ Chris J Ratcliffe/Getty Images)

A ligação à política e a história traumática com um violador

Ao contrário do que aconteceu com a maioria das “primeiras-damas” do país até hoje, Carrie Symonds teve uma carreira sólida exatamente na mesma área do primeiro-ministro, embora nos bastidores: a política. Filha de um dos fundadores do jornal britânico The Independent, Matthew Symonds, e de uma advogada do mesmo órgão de comunicação, Josephine McCaffee, teve uma “educação privilegiada” enquanto crescia, aponta a CNN. A sua formação inclui passagens por um liceu privado exclusivamente feminino, localizado no sudoeste de Londres, e posteriormente pela Universidade de Warwick, onde lecionou História de Arte e Estudos Teatrais.

Apesar do curso que frequentou não estar diretamente relacionado com a atividade política, Carrie começou a trabalhar no Partido Conservador há cerca de uma década, como assessora para a imprensa. O protagonismo cresceu rapidamente no interior da máquina tories: dois anos depois, em 2012 fez parte da equipa de campanha da recandidatura de Boris Johnson a “mayor” (presidente da câmara municipal) de Londres; mais tarde, tornou-se mesmo a mais nova diretora de comunicação do partido de sempre. Teve ainda os cargos de assessora política do antigo ministro da Cultura britânico John Whittingdale e de assessora antigo ministro do Interior britânico (e recém-nomeado ministro da Economia), Sajid Javis — como recorda o El Mundo.

A vida política já foi abandonada, embora se acredite que os seus conhecimentos na área da comunicação política ajudaram Boris Johnson a afirmar-se como líder político nacional. Atualmente, Symonds dedica-se a trabalhar como “consultora sénior” para a organização sem fins lucrativos Oceana, que tenta consciencializar os decisores políticos “nacionais”, isto é britânicos, da necessidade de “preservar e restaurar os oceanos mundiais”.

No seu perfil na rede social Twitter, a nova “primeira-namorada” britânica apresenta alguns dos traços que a definem: “Conservadora. Oceanos. Luta contra a poluição pelo plástico”. São regulares as suas publicações ou partilhas de publicações críticas do desperdício de plástico — por multinacionais como a Nestlé —, caça desportiva de animais selvagens, violação das quotas pesqueiras,

A vertente ambientalista de Carrie Symonds está a ser tida em conta por alguns analistas políticos britânicos, que preveem que possa influenciar Boris Johnson em matérias como a crise climática e a defesa da preservação e bem-estar dos animais. À CNN, o radialista e comentador político Iain Dale afirmou mesmo estar certo de que Symonds “vai influenciar as políticas seguidas, particularmente em relação ao ambiente”, algo indiciado já na forma como Boris Johnson tem aproveitado recentemente o tema para os seus discursos.

A nova “primeira-namorada” do Reino Unido viveu, contudo, um episódio traumático que já contou publicamente: o seu encontro com John Worboys, britânico conhecido como “taxista violador” que foi condenado por agredir sexualmente 12 mulheres. Symonds foi transportada por Worboys, numa viagem de táxi para casa, quando tinha 19 anos. As memórias com que ficou foram poucas e aterrorizadoras: Carrie lembra-se apenas de que o taxista lhe ofereceu álcool que teria droga diluída, uma estratégia que fazia parte do seu modus operandi com clientes e vítimas. Depois, a atual namorada de Boris Johnson não sabe o que aconteceu.

Foi preciso coragem para revelar o caso e relatar o trauma à imprensa, mas Carrie Symonds fê-lo por mais de uma vez. Fê-lo ainda recentemente, para alertar para a importância de uma revisão de uma decisão judicial que considerava que Woorboys já não era uma ameaça e deveria ser libertado da prisão — algo que acabou por não acontecer, depois da decisão ser revertida, como anunciado em novembro.

Uma curiosidade é que Carrie Symonds não será a primeira na sua família a viver em Downing Street, caso mude mesmo a sua morada — algo ainda não confirmado — para a residência oficial do primeiro-ministro. Isto porque o seu bisavô foi Herbert Asquith, que foi primeiro-ministro do Reino Unido entre 1908 e 1916.

Nota – O artigo foi editado às 12h45 com uma correção necessária: Boris Johnson não é, claro, como por lapso inicialmente apontado, chefe de Estado, mas sim líder de Governo. O chefe de Estado britânico é, face à monarquia constitucional em vigor, a rainha Isabel II. Pelo lapso, as nossas desculpas