Com o pretexto de comemorar os 40 anos da sua primeira vitória na Fórmula 1 (F1), que aconteceu a 1 de Julho de 1979, a Renault reuniu, na semana passada, jornalistas de todo o mundo e alguns dos maiores símbolos da saga Turbo. Entre eles, os mais relevantes modelos sobrealimentados do museu da marca, incluindo várias máquinas de competição e dois dos maiores heróis desta página da história: Jean Pierre Jabouille e Jean Ragnotti, pilotos que se tornaram lendas da F1 e dos ralis, aos comandos dos Renault Turbo.

Esta foi a forma que a marca encontrou de ilustrar um caminho de inovação iniciado por Louis Renault em 1902, quando registou uma patente relativa aos “meios de aumentar a pressão de admissão dos gases nos cilindros [através] de um ventilador ou de um pequeno compressor”. Uma solução cuja eficácia a Renault só viria a demonstrar pela primeira vez em 1972, quando inscreveu um Alpine A110 de Gr. 5 com motor turbo na prova Critérium des Cévennes. Apesar do enorme tempo de resposta do turbo do Alpine, Jean-Luc Thérier venceu a prova e deu início a um verdadeiro épico do automobilismo.

O passado, mas não só

Alojados de véspera em Provins, uma pitoresca vila que mais parece um deslumbrante postal da França medieval, facilmente entrámos no espírito de uma viagem ao passado. No entanto, ao chegar ao circuito de La Ferté Gaucher, era impossível não notar a presença do novíssimo e agressivo Mégane RS Trophy R ao lado dos grandes ícones do passado. O actual detentor do recorde mundial do Nürburgring para veículos de série com tracção, passava assim uma mensagem subliminar de que haveria uma conclusão óbvia a tirar deste “banho de marca”.

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Tentando ignorar a subtileza, começo o dia ao volante dos imaculados clássicos da Renault Classic, o departamento responsável por preservar e promover o legado da marca, nomeadamente uma incrível colecção de mais de 700 exemplares.

Num curto espaço de tempo pude recordar a agilidade do 5 Alpine Turbo, a traseira temperamental do 5 Turbo 2, a irreverência controlada do Fuego Turbo, a eficácia feroz do 11 Turbo e a sofisticada maturidade do Safrane Biturbo.
Estes automóveis representam o resultado da transposição para a produção em série do conhecimento acumulado na competição e, apesar das idiossincrasias de cada um, é inegável que todos eram referência do seu tempo em vários parâmetros, desde o estilo à tecnologia e, sobretudo, na performance e no prazer de condução.

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De novo uma referência

Já lá vão muitos anos desde 1980, ano em que o 18 Turbo foi apresentado, tornando-se o primeiro modelo sobrealimentado de produção em massa. Longe vai, portanto, a era das árvores de cames laterais e do turbo lag, como pudemos comprovar ao volante da mais recente geração do Mégane RS Trophy. As diferenças desta versão face ao RS já conhecido são poucas, mas substanciais. O chassi Cup, faz agora parte do equipamento de série e inclui amortecedores e molas mais firmes, bem como barras estabilizadoras de maior diâmetro. Os discos de travão “bimatéria” são uma das novidades, e fazem uso de um combinado de aço e alumínio para aumentar a resistência à fadiga. Aguardada e aplaudida é a chegada do diferencial autoblocante mecânico, que substitui o artificial sistema electrónico do RS. A gestão electrónica do Trophy permite-lhe ganhar 20 cv face à versão de base. Com 300 cv e 400 Nm, este modelo é superior, sobretudo na disponibilidade e recuperações.

Renault exibe Mégane RS Trophy-R. Mas esconde algo

Um novo nível de eficácia

Não há como negar que o RS Trophy está perfeitamente ao nível dos mais ferozes rivais, nomeadamente o Civic Type R, o Focus RS ou o i30 N, mas devido ao currículo imaculado da Renault neste segmento, é justo esperarmos sempre mais. A ponto de sermos “picuinhas”.

No entanto, a eficácia do Trophy está a salvo de críticas e não desilude. Mesmo numa pista bastante molhada, a inserção em curva é muito precisa e a capacidade de tracção é surpreendente. O que requer mais habituação, como aliás em outros modelos que apresentam soluções semelhantes, é o funcionamento do eixo autodireccional, que parece uma espécie de “mão invisível” que nos conduz para o interior da curva e permite simultaneamente travar mais tarde e acelerar mais cedo. Ou seja, a típica mobilidade da traseira dos tradicionais “GTI” surge aqui amplificada por um sistema activo e inteligente que não só permite uma melhor relação com o cronómetro, como tem evidentes benefícios em termos de segurança, já que deixa de ser necessário quebrar a tracção do eixo traseiro para conseguir fechar a trajectória à entrada da curva. Uma vez mais, um triunfo técnico da Renault Sport.

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Um caminho nem sempre fácil

Houve momentos em que achei que não íamos conseguir. Éramos alvo de piadas fáceis no paddock, mas quando os resultados chegaram, a satisfação foi enorme e foi um dos momentos altos da minha carreira.”

Jean Pierre Jabouille recorda assim o caminho que o levou até ao dia da primeira vitória da Renault e a primeira de um motor turbo, na F1, forçando todos os rivais a seguir o rumo da sobrealimentação. Um sucesso no qual teve especial responsabilidade, com a formação académica em engenharia a permitir-lhe uma melhor interacção com a equipa.

Depois da nossa conversa, sempre com pose elegante, Jabouille vestiu o imaculado fato branco e amarelo e presenteou-os com algumas voltas de demonstração à pista, admitindo, no entanto, que o RS01 é demasiado exigente fisicamente para um traçado lento como este e para os 78 anos do piloto.

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Um marco nos ralis

Nos ralis, o feito da Renault foi ainda mais extraordinário, com o 5 Turbo de Gr. 4 a vencer logo na prova de estreia, o difícil Monte Carlo de 1981, repetindo o feito na Córsega, na época seguinte. A vitória à geral, numa prova do mundial, só voltaria a sorrir ao Renault 5 já na versão Maxi. Foi em 1985, na Córsega, pelas mãos do mesmo piloto, o extraordinário Jean Ragnotti.

Se em 1981 e 82, “Jeannot” beneficiou de alguns azares dos principais adversários, já em 1985 lutou “no braço”, contra toda a armada do Grupo B que, então, estava no auge. Pergunto-lhe se acreditava que podia ganhar aquela prova, ou se foi uma surpresa. Diante do Maxi Turbo que ainda ostenta as placas desse rali, com a simpatia e entusiasmo que o caracterizam, diz-me:

Eu sabia que podia ganhar. Este era um carro muito bom, muito eficaz e mais divertido de guiar. Complicado era o Gr. 4 de 1981, porque tínhamos um motor explosivo e muito pontudo.”

Assim que digo a Ragnotti que sou português, ele reage: “Fiz segundo lugar em Portugal com o 11 Turbo contra os modelos de quatro rodas motrizes! O carro era muito bom e tinha muita tracção. Foi um grande rali.”

Aos poucos, foi falando de todos os modelos Renault e Alpine da sua carreira e, quando questionado por um colega acerca do por quê nunca ter aceitado convites de outra marca, Ragnotti dá uma resposta surpreendente: “A Peugeot fez-me uma excelente proposta para competir com o 205 Turbo 16, mas a Renault dava-me a hipótese de experimentar várias modalidades e automóveis diferentes e essa era a minha prioridade. Queria retirar prazer da carreira e dar um bom espectáculo ao público.” Se dúvidas houvesse de que este é um homem extraordinário, ficariam aqui dissipadas.

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Emoções fortes

Para finalizar o dia em grande, fomos convidados a ocupar o lugar do lado num 5 Turbo do Troféu Renault Elf, nos 5 Maxi Turbo e o 11 Turbo Phase II de Grupo A usados por Ragnotti, e ainda no 5 Tour de Corse com que Alain Serpaggi se sagrou Campeão de Ralis de França em 1985, conduzido pelo próprio. Aos 80 anos de idade e, apesar de uma saída de pista durante o meu co-drive, o piloto demonstrou que a coragem e o talento não têm idade. Slides prolongados, labaredas a sair dos escapes e o sopro dos turbos transportaram todos os presentes para uma época dourada e irrepetível do automobilismo.

A mensagem de um legado

A exibição de todo este concentrado de história, feita de homens e automóveis extraordinários, passa uma mensagem clara acerca do arrojo da Renault e da capacidade de inovação que, pelo menos num determinado momento da história, lhe permitiram mudar o “estado da arte” e o rumo da indústria, como se pode comprovar pela actual generalização da utilização do turbo. Todas as aventuras desportivas tiveram uma consequência prática, o que justifica a posição actual do Grupo Renault como um dos líderes mundiais na produção de automóveis ligeiros.

por Hugo Reis