O recurso relacionado com a Operação Marquês que foi atribuído ao juiz Rui Rangel — que já tinha sido impedido pelo Supremo Tribunal de Justiça de tomar decisões neste caso — prende-se com um conjunto de e-mails apreendidos na Octapharma e outros que o seu presidente, Lalanda e Castro, entregou voluntariamente ao processo. Em causa está uma decisão do juiz Ivo Rosa, que mandava destruir estas provas no final da fase de instrução, e que foi contestada pelo Ministério Público.

No processo da Operação Marquês constam uma série emails apreendidos em inícios de 2016, relativos às caixas de correio eletrónico de três funcionários da Octapharma e do seu presidente, Paulo Lalanda e Castro. Lalanda e Castro chegou a ser constituído arguido no processo por suspeitas de falsificação de documentos e branqueamento de capitais, mas acabou por ver o processo arquivado no que lhe dizia respeito. Para tal contribuíram também alguns emails que entregou voluntariamente ao Ministério Público.

Apesar de, neste processo, Lalanda e Castro ter visto as suspeitas contra si serem arquivadas, continua a ser arguido num outro processo, o da Operação O Negativo, mais conhecido por “Máfia do Sangue”. Neste processo, investiga-se o monopólio da Octapharma na aquisição por contratos públicos de “plasma humano inativado e de uma posição de domínio no fornecimento de hemoderivados a diversas instituições e serviços que integram o Serviço Nacional de Saúde (SNS)”, como então explicou o Ministério Público.

Paulo Lalanda e Castro, presidente da Octapharma

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Foram os magistrados que têm este processo nas mãos que pediram ao juiz Ivo Rosa que lhes enviasse todos os e-mails apreendidos na Operação Marquês, porque podiam servir de provas naquele processo. Antes de decidir, e como dita a lei, o magistrado pediu a todas as partes que se pronunciassem. E Lalanda e Castro, representado pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, opôs-se a entregar a um novo processo os e-mails que tinha entregado voluntariamente ao caso Marquês. Justificação: segundo a defesa, esse material foi entregue pelo então arguido sob condição de que fosse expurgada toda a informação relativa ao sigilo profissional e comercial e ignorada toda a informação relativa à vida privada ou íntima, que em nada contribuía para a prova. Mais: os emails poderiam ser usados como prova apenas na Operação Marquês.

Nessa oposição, Lalanda e Castro fez ainda outro pedido: pediu a Ivo Rosa que destruísse o conjunto de e-mails que tinha entregado voluntariamente. Os procuradores que têm o processo Marquês, por seu turno, pediram para manter no processo o que tinha sido apreendido nas buscas, porque esta prova podia ser útil nos crimes imputados aos restantes arguidos.

Em novembro de 2018, no mesmo despacho que abria a instrução do processo, o juiz Ivo Rosa recusou entregar os documentos aos procuradores do processo Operação O Negativo. Motivo: a intimidade e a vida privada dos proprietários dos e-mails. Na ótica deste juiz, caso entregasse aquelas provas, e mesmo que os investigadores fizessem uma pesquisa pelo que pretendiam, podiam encontrar matéria privada — o que violaria os direitos fundamentais dos visados. Por este motivo, na visão do magistrado, aquele conjunto de provas devia ser guardado num envelope lacrado e destruído no final da fase de instrução do processo (a que está a decorrer, para decidir quem vai a julgamento).

Ministério Público pede afastamento de Rui Rangel de recurso da Operação Marquês

Os procuradores do processo Marquês, que investigaram José Sócrates, não levaram muitos dias para responderem ao juiz, em forma de recurso para o Tribunal da Relação. Nas palavras dos procuradores Vítor Pinto e Rosário Teixeira, eles nunca se opuseram à destruição dos e-mails, mas apenas aqueles a que Lalanda e Castro se referia: os tais que tinha entregue voluntariamente. O juiz Ivo Rosa, porém, tinha ido mais longe.

Argumentando que os e-mails em causa não foram indicados como prova do processo e que se referiam a pessoas que já não eram arguidas no processo, o juiz Ivo Rosa mandou destruir tudo. Não contentes, os procuradores do MP, num recurso em tom crítico, lembraram que a lei não diz que este tipo de prova tem que ser apenas recolhido aos arguidos. E que, pelo contrário, diz que a prova não deve ser destruída antes de o processo transitar em julgado, ou seja, ser definitivo. “A não ser assim, afigura-se que a fase de instrução se transforma numa forma de condicionar a produção de prova em posteriores fases do processo”.

As palavras dos procuradores chegaram a Ivo Rosa em janeiro de 2019, com um pedido de subida imediata para o Tribunal da Relação. Mas este recurso, a que o Observador teve acesso, assinado por Rosário Teixeira e Vítor Pinto, só em julho chegou à Relação. Exatamente no mês em que o juiz Rui Rangel — que tinha estado suspenso preventivamente durante nove meses por ser arguido na Operação Lex — regressava às suas funções. O magistrado acabaria por receber o processo já em setembro, depois das férias judiciais, ficando com a tarefa de decidir quem tem razão: se o Ministério Público, se Ivo Rosa. Se vencer o juiz de instrução, a consequência é clara: os emails relacionados com a Octapharma apreendidos na Operação Marquês serão destruídos.

Juiz Rui Rangel já decidiu quatro recursos desde que voltou. Alguns colegas não gostaram do regresso

O Ministério Público acaba de anunciar que vai tentar afastá-lo, “por considerar existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do magistrado judicial”. Se não fosse o MP, seria o próprio, como o juiz assumiu ao Observador. Desde que o Supremo Tribunal de Justiça o impediu de decidir sobre o caso que envolve o o ex-primeiro-ministro, sente “medo” de ter de o fazer.