O avião fazia o trajeto Melbourne-Paris, era 2007 e Jérôme Bel, mais 20 bailarinos que consigo trabalham, tinham ido à Austrália fazer o espectáculo “The show must go on”. O jornal que a companhia aérea ofereceu continha um artigo sensibilizador, um pedido para a redução da pegada de carbono. Nesse momento, o coreógrafo francês teve a sua primeira medida ecológica: decidiu que daí em diante em vez de viajarem 21 pessoas, fá-lo-iam apenas dois dançarinos, que reconstruiriam o espectáculo com artistas locais, naturais do lugar onde este fosse apresentado.
Em 2014, uma programadora de um importante teatro parisiense comentava com Bel o entusiasmo do coreógrafo com uma performance que pensava a questão ecológica. Bel perguntou-lhe sobre a origem da companhia e a resposta acertou-lhe na nuca da contradição: Austrália.
Mais recentemente, em fevereiro de 2019, Bel está no seu apartamento em Paris, a ajustar o aquecimento para que possa poupar o máximo de energia, quando se apercebe que tem dois assistentes em trânsito para Lima e outros dois a regressar de Hong Kong. “Disse a mim mesmo que era um hipócrita, que me mentia, que a minha vida é completamente vaidosa. Depois disto, fiquei algumas semanas numa profunda depressão. Até que decidi que o meu trabalho não pode continuar a destruir o planeta e portanto nem eu, nem ninguém da companhia ia mais usar aviões”, explica Jérôme.
Esta é apenas uma pequena demonstração de como Jérôme Bel, 55 anos e um dos mais importantes coreógrafos franceses dos últimos anos, está no mundo. E já está há tempo suficiente para agora, à boleia do Doclisboa (festival no qual faz parte do júri), nos possibilitar uma incursão no seu passado. “Rétrospective” – inserido na secção Heart Beat e para ver sábado, às 19h, no Grande Auditório da Culturgest – é um filme que recupera excertos de seis espectáculos do francês, e que tenta desvendar o seu pensamento cronologicamente. A seguir à exibição do filme existirá uma conversa com Bel que, claro, chega a Lisboa, a partir de Paris, de comboio.
Parece existir um peso qualquer, uma culpa que formou a personalidade e o incómodo interno que Jérôme Bel sentia. Em criança, viveu em inúmeros países africanos e do Médio Oriente, seguiam a profissão de hidrogeologista do seu pai, ele e a sua família “de classe média, que não se importava com artes, mas antes com ténis, caça, bridge e compras”, admite antes de acrescentar que “foi uma infância e adolescência muito aborrecidas”, cuja única hipótese era viajar e observar outras formas de vida que não as da sua família.
É nessa oposição que Bel cresce, em protesto, por isso tudo tentou, do piano à dança e nesta última acertou. Era-lhe fácil. Apanhava em menos de nada aquilo que o professor pedia e assim era também fácil virar o preferido do professor. Confrontou-se com Trisha Brown, Pina Bausch, Anne Teresa de Keersmaeker, Merce Cunningham e John Cage, deixou-se influenciar e já não voltou atrás, sabia que era ali, em palco, que tinha que estar.
“E mais do que a dança em particular, a grande descoberta foi o campo artístico, a potencialidade de uma outra vida. Uma vida cheia de extravagância, liberdade e invenção de si mesmos”, diz.
E assim foi. Bel voou em todos os grandes palcos, a convite dos melhores festivais, programadores, curadores, fez dança, performance, fez arte, esteve em todo o lado. Começou a meio da década de 90 e em 1995 já fazia aquela que é uma das peças que utiliza neste “Rétrospective”. Jérôme Bel é uma redução do corpo, ou seja, tendo o corpo como instrumento do ator e do bailarino que procura a dança e a coreografia no seu mínimo. Em “Shirtology” (1997), um intérprete passa o tempo todo a tirar T-shirts do corpo, um corpo ao serviço do capitalismo e de frases e marcas marcantes. “The show must go on” (2001) joga com a vulnerabilidade, isto é, um grupo de intérpretes que desilude, propositadamente, o público, que esperaria ver artistas mestres na sua arte. “Véronique Doisneau”, de 2004, abre a ferida da instituição ballet e o que provoca nos seus agentes, sobretudo aqueles que se dedicam à sua concretização clássica e constante. Em “Disabled Theater”, criado em 2011, Bel trabalha com pessoas com deficiências motoras para falar de como só por essa condição a noção de espectacular nos seus corpos é aceite. E por fim, “Gala”, 2016, que aglomera todas estas questões e que coloca ao mesmo nível as mais diversas danças e indivíduos, todos coexistem e portanto o papel do coreógrafo é repensado em cada corpo, é-lhes dada autoridade pessoal que, depois, forma um todo desconexo, diferente, vivo.
É a partir destes seis espectáculos que Bel montou “Rétrospective”. Mas antes de continuarmos, qual o motivo disto? Uma aparente obrigatoriedade de resumir, a certa altura da vida e em determinada idade, o que se fez até aqui? O artista sabia, admite, que desde fez o espectáculo “Véronique Doisneau”, onde parte da dançarina da Ópera de Paris, que teria de embater, de olhar de frente o solo autobiográfico. O brilhante encenador Milo Rau convidou-o para fazer da sua recente criação “Theater’s History”, que começou em Gent, na Bélgica, e que quer fazer esse mergulho na memória de gente que importa não esquecer.
“Disse-lhe que dificilmente conseguiria fazer ‘a história do meu teatro’. Ao mesmo tempo, um produtor audiovisual ofereceu-se para fazer algo para televisão sobre o meu trabalho. Comecei a escrever a minha autobiografia enquanto mergulhava nos arquivos da companhia. Contar a história da minha vida enquanto coreógrafo aborreceu-me logo, mas comecei a imaginar uma edição de excertos de várias peças para o projeto televisivo. Depois apercebi-me que o que tinha na cabeça nunca podia passar na televisão, que é tão formatada, portanto decidi fazer uma peça nova, que seria um filme visto em teatros. Que é uma péssima ideia, acho eu. Mas este filme não pode ir a mais lado nenhum, não tem ambição cinematográfica, são arquivos, gravações de espectáculos, algumas das imagens têm muito pouca qualidade”, explica.
Considerou colocar “Rétrospective” no YouTube, mas que a nudez presente no filme não o permitiu. Sobrou-lhe o espaço do teatro, o palco, que é a sua casa, o seu retiro de liberdade onde sente que tudo pode fazer.
Mas voltando à inevitabilidade do resumo, da ideia de retrospectiva, tão existente, por exemplo, no espaço museológico que sempre quer olhar, em profundidade e perspetiva, para o trabalho de um certo artista. Bel admite que é frequentador desses conceitos, mesmo de gente que pode não lhe interessar ou simplesmente não conhecer. “Não é sobre adorar o trabalho ou não, é sobre ver o pensamento do artista, como é que o seu trabalho evoluiu e isso é sempre fascinante para mim. No entanto, acho que é praticamente impossível fazer essa retrospetiva no campo da ‘live performance’ pela simples razão que, primeiro, seria demasiado caro, neste filme estão 60 dançarinos diferentes, depois porque as pessoas para quem os espectáculos foram feitos também mudaram. Mas o que me parece mesmo importante é o nó da dança e da política, o que tentei fazer foi demonstrar como as representações do corpo nos meus espectáculos mudam por razões que não posso descrever como nada mais do que: política”, afirma.
Está claro como água que a obra que vai passar pelo Doclisboa é uma oportunidade rara de estar dentro da mente de alguém tão especial como Jêróme Bel, alguém para quem o virtuosismo será sempre elemento secundário, alguém que não está aqui para ver e ser visto, está aqui para dizer, está aqui para pensar, para associar a sua forma de estar às suas ações e que, portanto, chegará provavelmente a Santa Apolónia, onde talvez devêssemos estar logo, para o aplaudir, para agradecer aquilo que faz (ou aquilo que deixou de fazer) pela ideia de um mundo mais comprido.
Além de criticar o conceito de dança contemporânea – que vê como um academismo redutor; e é por isso que prefere trabalhar com pessoas com deficiência ou com amadores – o francês não tira o pé na hora de criticar os artistas, os diretores de festivais, os programadores ou mesmo os artistas:
“As pessoas que têm posições de domínio no campo coreográfico e que têm a minha idade (estão nos seus cinquentas) não vão mudar nada. São prisioneiros de um sistema que não querem questionar. É, aliás, bastante irritante porque todos têm discursos ecológicos e assinam petições porque são conhecidos, mas não produzem nenhuma ação. Não são diferentes dos políticos. Sabemos que o poder corrompe e ninguém está preparado para perder os seus privilégios ainda que a catástrofe esteja iminente”.
Mas a esperança vive. Bel assume-se um miúdo, a vontade que tinha quando tinha 25 anos parece ter voltado, a forma de trabalho altera-se e isso só pode ser desafiante, há que utilizar o Skype, há que fazer teleconferências e ensaios à distância, reuniões por telefone, trabalhar com a comunidade do território onde se vai apresentar. E consegue de facto viver a sua obra desta forma, até porque já existe um festival na Dinamarca que só convida ensembles ou músicos que aceitem ir de comboio. Dica de Jêróme Bel. “Como a Greta Thunberg, que começou uma greve à escola, eu faço greve perante espectáculos de companhias que voam. Como é que posso confiar num coreógrafo, numa companhia de dança ou num espectáculo que participa no aquecimento global? Não, não posso mais”. Jêróme Bel não pode mais viver assim.
“Rétrospective” passa no Doclisboa este sábado, dia 19 de outubro, às 19h00, no Grande Auditório da Culturgest