Há uma semana, num artigo de opinião no Diário de Notícias, Nuno Artur Silva considerou que a anunciada compra da Média Capital (dona da TVI) pelo grupo Cofina (do “Correio da Manhã”) “pode vir a ser no futuro próximo a maior ameaça à democracia portuguesa”, se conjugada com “o nível elevado de abstenção, com a reconfiguração da direita portuguesa e, sobretudo, com a eleição do deputado do Chega.”
Mesmo que o governo não tenha qualquer palavra a dizer sobre a concretização ou o andamento do negócio, esta opinião ganhou redobrada atenção mediática numa altura em que Nuno Artur Silva se prepara para entrar no Governo – será secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media, na dependência da ministra da Cultura, Graça Fonseca, foi anunciado nesta segunda-feira.
Nuno Artur Silva passará a tutelar a RTP e o setor da comunicação social. Um vez em funções – e a tomada de posse do Governo pode acontecer até ao fim desta semana – manterá opinião desfavorável sobre a compra da dona da TVI?
Com idêntico potencial de polémica está a posição de Nuno Artur Silva como empresário: é sócio maioritário da produtora Produções Fictícias e da estação privada de televisão Canal Q, o que além da leitura política pode também ser analisado à luz da nova lei das incompatibilidades.
“No momento em que tomar posse como secretário de Estado, já não serei acionista das Produções Fictícias e consequentemente do Canal Q”, disse Nuno Artur Silva ao jornal Público, nesta segunda-feira. Ao Observador, fonte do Governo referiu, em abstrato, que se houver incompatibilidades, e estas não forem entretanto resolvidas, é normal que haja impedimento para o exercício do cargo.
O novo secretário de Estado foi administrador da RTP entre janeiro de 2015 e janeiro de 2018, numa fase em que, pela primeira vez, a televisão pública ficou sob a tutela do Ministério da Cultura e teve uma administração nomeada não pelo Governo mas por um órgão interno da empresa. Saiu sob a acusação de conflito de interesses por parte da Comissão de Trabalhadores e do Conselho Geral Independente da RTP. Esse alegado conflito de interesses voltará agora a colocar-se?
António Feijó, presidente do Conselho Geral Independente, considerou esta segunda-feira que Nuno Artur Silva “é uma excelente escolha” para secretário de Estado com a tutela dos média, por ser “uma pessoa muito sensata, com uma perceção muito clara do panorama audiovisual e do papel do serviço público”. Ao Observador, e ressalvando falar em nome pessoal, António Feijó acrescentou que “parece não haver qualquer conflito de interesses em relação à RTP”, porque Nuno Artur Silva “não terá nenhuma palavra a dizer sobre a gestão direta” da estação pública. “A gestão compete ao conselho de administração e o próximo secretário de Estado está completamente removido da gestão direta”, sublinhou.
O embaixador Francisco Seixas da Costa, um dos membros do Conselho Geral Independente, disse ao Observador que não se pronuncia sobre o tema, mas mostrou-se de acordo com a opinião do presidente.
Sobre a opinião que Nuno Artur Silva expressou quanto ao negócio Cofina-Media Capital, o presidente do Conselho Geral Independente da RTP referiu que se trata de um “debate político” sobre o qual “devem pronunciar-se” a Autoridade da Concorrência a Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
Em janeiro de 2018, Nuno Artur Silva foi afastado de vogal do conselho de administração da RTP, responsável pelos conteúdos, depois de a Comissão de Trabalhadores da empresa pública ter considerado existir um conflito de interesses. Ao mesmo tempo que estava na estação pública, Nuno Artur Silva mantinha-se ligado à Produções Fictícias e ao Canal Q.
A decisão de o afastar foi tomada pelo Conselho Geral Independente – um dos quatro órgãos sociais da RTP, além do Conselho de Opinião, do Conselho Fiscal e do Conselho de Administração. Em comunicado, aquele organismo começou por elogiar a “reconfiguração estratégica da política de conteúdos” da RTP levada a cabo por Nuno Artur Silva “de modo altamente meritório”, durante os três anos de mandato. No entanto, a sua continuidade na RTP foi considerada “incompatível com a irresolução do conflito de interesses entre a sua posição na empresa e os seus interesses patrimoniais privados, cuja manutenção não é aceitável”.
Quando se tornou administrador da RTP, em 2015, a Comissão de Trabalhadores até saudou a sua chegada, por ser “uma pessoa de referência” no meio televisivo, e Nuno Artur Silva prometeu retirar-se da Produções Fictícias, o que acabou por não acontecer.
Zangado com o afastamento, que, em rigor, correspondeu a uma não recondução, Nuno Artur Silva acabaria por desabafar no Facebook: “Fui alvo de uma campanha difamatória reles, miserável, sem escrúpulos, lançada precisamente neste momento com o intuito de impedir a minha continuidade na administração da RTP”, escreveu em fevereiro do ano passado.
https://www.facebook.com/nunoartur/posts/10215164647620425
A RTP não fez negócios com a produtora durante o mandato de Nuno Artur Silva. De resto, segundo o próprio afirmou ao Expresso em novembro do ano passado, quando o convidaram para administrador a Produções Fictícias já não vendia quaisquer serviços ou conteúdos à RTP. “A administração anterior à minha tinha cortado com as Produções Fictícias. Questões políticas, seguramente. Aconteceu no Governo de Passos Coelho e não se percebia exatamente porquê. Mas tivemos a certeza de que era uma medida política contra nós, quando o próprio Herman José me disse que, também pela primeira vez em 20 anos, lhe tinham imposto como condição para continuar no programa deixar de trabalhar connosco”, sustentou Nuno Artur Silva.
A Produções Fictícias surgiu há cerca de 25 anos e tem no portfólio a criação de textos para Herman José, programas de grande popularidade, como “Contra-Informação” da RTP, ou o suplemento humorístico “Inimigo Público”, do jornal Público.
Em maio de 2014, passou a ter Nuno Artur Silva como administrador único para o triénio seguinte, de acordo com a base de dados do Ministério da Justiça para atos societários, consultada nesta segunda-feira pelo Observador. Em janeiro de 2015, Nuno Artur Silva renunciou a essas funções, o que confere com o que o próprio declarou ao Expresso há cerca de um ano. “Quando aceitei [ser administrador da RTP, em 2015], como é obvio, foi-me exigido que deixasse de ser administrador das minhas empresas e de trabalhar em conteúdos. Coisa que fiz.”
Mas nunca deixou de ser proprietário da produtora. À data de 29 de dezembro de 2014, Nuno Artur Silva tinha uma quota de 150 mil euros, sendo o capital total da empresa de 180 mil. Os restantes 30 mil pertenciam à Seems SGPS, uma unipessoal de que Nuno Artur Silva também era gerente. A Seems SGPS foi criada em 2010, por mudança do nome original, que era precisamente Produções Fictícias. A gerência da Seems passou em 2015 para Ulla Madsen, casada com Nuno Artur Silva. Até hoje, indica a base de dados do Ministério da Justiça, Nuno Artur Silva e a mulher continuam donos da Produções Fictícias.
Em 2015, quando Nuno Artur Silva cessou funções como gerente, a empresa passou a ter sede oficial na Rua Joaquim António de Aguiar, em Lisboa, de acordo com a base de dados do Ministério da Justiça para atos societários. Até àquela data, a sede era no distrito de Évora, no Parque Industrial de Vendas Novas, e, antes disso, tinha-se situado em Castro Marim, na Urbanização Praia Verde. O Canal Q, uma sociedade anónima, tem sede social na mesma morada da Produções Fictícias.