Há pelo menos um ano que o fim das Galerias Lumière se avizinha, mas o processo foi acelerado nos últimos meses, para espanto e desilusão de muitos. O edifício construído na década de 70, projetado pelo arquiteto Magalhães Carneiro, já teve duas salas de cinema e até uma discoteca. Em 2014, o imóvel de dois andares, que liga a Rua das Oliveiras e a Rua de José Falcão, passou a funcionar como galeria comercial, albergando lojas, restaurantes e, mais recentemente, escritórios.
As Lumière eram propriedade da Imocpcis – Empreendimentos Imobiliários S.A, tendo sido vendidas recentemente ao IDS Grupo. Os poucos comerciantes que ainda restam nas Galerias queixam-se da pressão exercida para chegarem a um acordo para saírem, da falta de comunicação e dos erros relativamente aos contratos de arrendamento. O Observador tentou contactar o IDS Grupo, mas sem sucesso.
“Em maio houve uma pequena reunião informal a dar conhecimento desta venda”, conta ao Observador Francisco Garcia Reis, um dos responsáveis da Poetria, a única livraria especialista em poesia e teatro na cidade e uma das primeiras inquilinas das Lumière. Ocupou o edifício em 2003 e abandoná-lo não fazia, definitivamente, parte dos planos.
“Até pensávamos que haveria qualquer hipótese de continuarmos aqui, mas tal não se verificou e decidiram não renovar o contrato. Na verdade, quando tomámos conhecimento desta aquisição, o negócio já estava celebrado, existiu provavelmente um período de negociação entre estas duas empresas que nos ultrapassou completamente.”
Francisco Garcia Reis e Nuno Queirós Pereira estão há dois anos à frente da livraria fundada por Dina Ferreira, cujo o último contrato, assinado em março de 2015, foi sendo renovado de cinco em cinco anos. Quando regressaram de férias, perceberam que alguns negócios vizinhos estavam decididos a fechar as portas. “Surpreendeu-nos tremendamente, não era esta a situação que queríamos.” Francisco e Nuno solicitaram imediatamente uma reunião com a nova proprietária das Galerias.
“Nessa reunião disseram-nos que era para sair, que o nosso contrato terminava em março, mas que podíamos ficar até outubro de 2020. Pelo menos até agosto vamos ficar”, revela em entrevista ao Observador, acrescentando que a intenção do grupo imobiliário é “terraplanar para habitação”.
Segundo Francisco, existem até ao momento seis lojas que não tiveram “qualquer tipo de notificação formal para saírem” — além da Poetria, a florista, a loja de vestuário Out to Lunch, a papelaria Wise, o restaurante Tâmaras e a loja de decoração Cassio Home Gift Style – com as restantes, principalmente as que tinham “situações financeiras um pouco complicadas”, o grupo acabou por chegar a um acordo.
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Para o responsável, o edifício foi sendo “desvirtuado” nos últimos anos. “Esta forma de funcionamento está um bocadinho em desuso, mas temos exemplos aqui muito próximos, como o Centro Comercial Bombarda, que com algum investimento e apoio por parte de uma direção capaz isto poderia ter viabilidade”, justifica.
O futuro, diz, “ainda está por escrever”, mas a esperança de permanecer nas Lumière é, agora, “bastante reduzida”. Francisco assegura que a Poetria apoiará qualquer movimento cívico que possa surgir e garante que não quer deixar a zona da baixa. “Achamos que a livraria faz sentido onde nasceu. Vamos tentar manter-nos o mais próximo possível desta área, sabemos que pode ser complicado, mas queremos um projeto a longo prazo.”
Grupo Selina garante não ocupar as Galerias
A 8 de outubro, a papelaria Wise, que vende revisitas e jornais nacionais e internacionais nas Lumière há três anos, anunciou na sua página de Facebook que o negócio iria deixar esta morada. “Não nos foi comunicado nada por escrito”, começa por explicar Manuela Barbot.
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Tanto ela como a filha Carolina, ambas responsáveis pela loja, tiveram conhecimento que o proprietário era outro por acaso. “Há um ano ouvimos uma conversa aqui à porta que nem quisemos acreditar. Um vendedor estava a mostrar o espaço a alguém e disse: ‘não se preocupe que em 2020 já não vai estar cá ninguém, as lojas vão estar todas fechadas’.” Após o “choque” inicial, decidiram perguntar à administração o que se passava, mas o episódio foi desvalorizado e até o apelidaram de ser “um disparate”. Manuela recorda ainda uma reunião, no início deste ano, com todos os lojistas onde a antiga direção “prometeu fazer uma série de coisas”, entre dinamizar o projeto e comunicá-lo melhor, mas “não saiu nada dali”.
“Algumas lojas iam fechando e nunca mais foram alugadas, aí começámos a ver que não havia interesse em ocupar esses espaços. Tivemos, inclusive, conhecimento de pessoas que queriam mesmo vir e foi-lhes dificultado todo o processo. Penso que nessa altura as coisas já deveriam estar a ser cozinhadas.”
Depois do verão, não restavam dúvidas de que algo estava mesmo a mudar e “nem a senhora da limpeza era a mesma.” Segundo Manuela, cada um dos comerciantes foi chamado para reunir individualmente com o IDS Grupo, “sempre por telefone, pois nunca houve um email ou uma carta”.
No primeiro encontro, foi-lhe dito que poderia estar de portas abertas até outubro de 2020, mas alegaram que o seu contrato terminaria em março. “Aí percebemos que alguma coisa não batia certo. O nosso contrato não era até março, mas sim até janeiro de 2021. Para sair, já deveríamos ter sido avisadas decentemente e com antecedência, o que não aconteceu.”
Mãe e filha acharam tudo “muito estranho” e, por isso, não assinaram nada antes de falar com uma advogada, que acabou por confirmar o que já suspeitavam: tinham direito a ficar nas Galerias até janeiro de 2021. “Estávamos a ser levadas na história e na cantiguinha deles. Isto não é uma ação de despejo, não é o fim de um contrato, não é nada. Estão a sugerir irmos embora e isso não é legal.”
Manuela confessa que nos últimos meses os lojistas “desmotivaram completamente”, lamentando o efeito dominó e o poder de contágio. “A nossa vizinha do lado tinha uma loja de roupa e algumas rendas em atraso. Eles sugeriram que se saísse agora lhe seriam perdoados os meses em falta e ela foi embora. Daqui a pouco estamos aqui numa ilha, isolados”.
Em setembro, a responsável pela Wise revela ao Observador que o IDS Grupo exerceu uma “pressão extra”. “Pediram-nos para tapar as montras quando fechássemos a loja, disseram que uma das entradas, a que dá para a Rua José Falcão, seria fechada e que tudo isto iria desaparecer.”
A pagar uma renda mensal de 350€, Manuela Barbot não sabe qual é oficialmente a finalidade da compra, mas confessa ter ouvido dizer que seria o Grupo Selina a tomar conta da obra. Contacto pelo Observador, Manuel Carneiro, responsável pelo Selina Porto, garantiu que o grupo “não irá ficar com o imóvel”.
Os que concordaram sair estão entre a desilusão e o arrependimento
Sven Fiel é a cara e o talento por detrás da loja Chess & Hats, onde vende tabuleiros de xadrez e chapéus fabricados em Portugal. Há dois anos que ocupa a loja 6 das Galerias Lumière e foi em abril que soube da primeira de muitas mudanças, a venda da empresa até então proprietária. “Tiveram desde abril até finais de setembro para falar connosco e não o fizeram. Não gostei nada disso”, começa por dizer em entrevista ao Observador.
O designer natural de Leiria, afirma que no primeiro encontro que teve com os novos donos, disseram-lhe que a partir de outubro “iam começar as obras e isto tinha que ficar desocupado”, não adiantando qual seria o destino daquele espaço.
“Na segunda reunião garantiram-me que muita gente já ia sair e aí pensei que não queria ficar aqui sozinho. Disseram que quanto mais rápido saíssemos daqui melhor.”
O contrato de arrendamento de Sven termina em abril do próximo ano, mas já assinou os papéis para sair em janeiro, pois em contrapartida vão pagar-lhe mil euros, o valor correspondente a quatro meses de rendas. “Prefiro fechar em janeiro, é uma altura de balanços e de más vendas. Assinei contrato e no máximo até dia 10 tenho que tirar tudo daqui.”
Boa localização, segurança, “ótimo ambiente” e muita luz natural são algumas características das Galerias Lumière que vão deixar saudades a este homem multifacetado, responsável por inúmeras iniciativas artísticas no espaço, dos torneios de xadrez aos concertos, passando por exposições de pintura e palestras.
“O que me irrita é que esta galeria tem lojas diferentes e isso faz falta. Agora só se vê restaurante para turista e hotéis para turista”, critica. Sven Fiel está já a visitar alguns sítios alternativos na baixa e promete avançar com a venda online das suas peças no final de novembro. “Interessa-me continuar a ter um espaço físico, mas se não arranjar, tudo bem, estou tranquilo.”
Mais esperançosa está Madalena Correia, dona da Tête à Croissant, uma das duas últimas casas de restauração que ainda sobrevivem. Está nas Galerias há cinco anos e meio e a experiência “foi boa” nos três primeiros. “A partir do momento em que administração deixou de investir e de apoiar na comunicação e na dinamização do espaço, as coisas foram piorando.”
Há um ano, ao mesmo tempo que começavam as obras na Rua das Oliveira para “mais um hotel”, o ruído começou a afastar alguns clientes. Em abril, Madalena e a filha Diana, também responsável pelo restaurante, reuniram-se com a antiga administração que lhes prometera investir em publicidade e na criação de eventos, “mas tudo com as mesmas lojas”. “Disseram-nos que iam melhorar isto, colocar umas setas no chão e plantas no exterior”, recorda, lamentando que “nada foi feito”.
“Quando houve a mudança de proprietários ninguém falou connosco, sentimo-nos abandonados. Não houve um email, nada. Vimos o antigo administrador, que até nos cumprimentava a passar por aqui com os olhos no chão, sentindo-se, certamente, envergonhado.”
No primeiro contacto com os novos donos das Lumière, Madalena soube que tudo poderia funcionar até outubro do próximo ano, “embora sem grande assistência”, ao nível de limpeza, segurança ou iluminação. Ao contrário do que a empresa alegou, o contrato de arredamento da Tête à Croissant não termina em maio, mas é valido pelo menos por mais três anos.
“Agora estamos a descobrir as alterações da lei, não tínhamos informação suficiente, as coisas aconteceram muito rapidamente, no espaço de uma ou duas semanas, não conseguimos ir ver esses pormenores”, explica Madalena Correia.
Mãe e filha concordaram sair em janeiro das Lumière e até lá estão isentadas de pagar a renda de 500 euros mensais. “Começaram a pressionar muito, ligavam à minha filha de manhã, à tarde e à noite a insistir para marcar uma nova reunião. Foram até ao local de trabalho dela, na Maia, e acabou por assinar os papéis.”
Sabendo agora, pela boca de um advogado, que “o que prevalece é a lei e não o contrato anterior”, Madalena espera que a situação seja invertida. “Na próxima semana o advogado saberá se é possível voltar atrás. Se conseguirmos provar que houve alterações na lei e que a informação que nos deram não foi correta, acho que sim. É essa a minha esperança.”
Paulo já encontrou um espaço alternativo na rua
Paulo Cássio está há cinco anos nas Lumière com uma loja de decoração homónima e uma renda mensal de mil euros. O espaço foi aumentando, assim como a oferta, e hoje ocupa a montra principal virada para a Rua José Falcão. “Só começámos a dar lucro há quatros anos. Se não tivesse a montra já tinha desistido”, desabafa em entrevista ao Observador.
Tal como os donos da Livraria Poetria e da Wise, Paulo não foi “ainda notificado formalmente nem por escrito” para encerrar o seu negócio. “Pediram-me para reunir com eles e apresentar uma proposta, mas não vou apresentar nenhuma alternativa enquanto não receber uma carta formal“, garante.
Apesar de ainda continuar com as portas abertas, Paulo inaugurou no início deste mês uma nova loja na Rua de Cedofeita. Ao Observador, confessou ter tomado esta decisão por já recear o fecho das Galerias. “Soube disto quando tinha acabado de colocar mais uma funcionária a trabalhar em a contrato, tinha que arranjar uma solução.” Cássio critica a antiga administração “que nunca teve visão” para dinamizar um espaço “tão bem localizado”. “Deixei de ir às reuniões, havia pessoas que não queriam trabalhar, não cumpriam os horários de funcionamento do estabelecimento.”
Na Câmara Municipal do Porto deu entrada um “Pedido de Informação Prévia, sobre a viabilidade de realizar obras de alteração com vista à instalação de um empreendimento turístico”, confirmou o gabinete de comunicação ao Observador. A autarquia ainda não deu “informação favorável” e aguarda neste momento o parecer solicitado à Direção Regional de Cultura do Norte.
Ao Público, esta entidade confirmou que deu entrada na Direção de Serviços dos Bens Culturais, na passada segunda-feira, dia 14 de outubro, um “projeto de arquitetura para o edifício em causa”, mas “ainda não foi analisado”, havendo novidades até 13 de novembro. Até lá, o futuro das históricas Galerias Lumière continua a ser uma incógnita.