O escritor e bibliófilo argentino Alberto Manguel, autor de “Monstros Fabulosos”, afirma que a literatura transforma as pessoas e lamenta que a evolução tecnológica tenha retirado importância aos livros, conduzindo a uma valorização do “rápido e fácil”.
Alberto Manguel falava na sessão de lançamento de “Monstros Fabulosos”, editado pela Tinta-da-China, que decorreu na noite de sexta-feira, livro para o qual o autor recuperou as personagens imaginárias que conheceu nas suas leituras de infância e as apresenta aos leitores, com ilustrações feitas por si mesmo.
Numa sessão que contou com a presença do poeta e crítico literário Pedro Mexia e do humorista e comentador Ricardo Araújo Pereira, que fizeram uma elogiosa introdução à obra, Alberto Manguel começou por agradecer aos dois por terem inventado um livro que ele não escreveu, e explicou que o seu livro “é um livro de leitor”, que espelha um vicio de infância com que quer “contagiar os outros”.
A história de Alice no País das Maravilhas, segundo Alberto Manguel
Desta forma respondia a uma brincadeira de Ricardo Araújo Pereira, que aludiu ao facto de a cerimónia de lançamento decorrer no Museu da Farmácia, por ser o lugar indicado para alguém que é um viciado e também um “traficante”, que tenta passar a sua droga a outros.
Para Alberto Manguel, o livro interpela o leitor, instigando-o a acreditar nele, na história que conta, acabando por se refletir na infância e no crescimento de quem lê, como foi o seu caso.
“A literatura transforma-nos porque somos animais que contam histórias (…) Eu encontro-me na desobediência civil do Capuchinho Vermelho. A minha visão da Alice [no País das Maravilhas] mudou quando entrei na juventude. O efeito da Alice em mim reflete a minha posição política”, afirmou.
Por outro lado, diz sentir que se identifica com a personagem do Frankenstein, na medida em que não sabe por que é perseguido, sabe que é vítima, mas não sabe porquê, e nas estratégias de Capuchinho Vermelho encontra os perigos e os males que existem.
“Fui uma criança muito solitária e invejava o Noddy [personagem de Enid Blyton] porque tinha muitos amigos”, confessa o escritor, para quem os “companheiros de brincadeiras” da sua geração foram a Pipi das Meias Altas e o Pinóquio, o pirata Sandokan e o mágico Mandrake.
O bibliófilo lamenta que o desenvolvimento da tecnologia tenha conduzido a uma certa perda do poder do livro, porque “ler é difícil e trabalhoso e lento”, ao passo que “o que é valorizado é o que é rápido e fácil”.
E deu como exemplo: “Um ensaio de Eduardo Lourenço tem menos peso do que um ‘Tweet’ de um qualquer homem maligno”.
Com o subtítulo “Drácula, Alice, Super-Homem e outros amigos literários”, “Monstros Fabulosos” está escrito com erudição e humor, apresentando mais de 30 das personagens literárias favoritas de Alberto Manguel, entre as quais se incluem duas de língua portuguesa: o Mandarim, de Eça de Queirós, e a boneca de pano Emília, de “O Sítio do Pica-Pau Amarelo”.
Outros “monstros” apresentados aos leitores através da visão do autor, conduzindo-os assim até à sua intimidade – como assinalou Pedro Mexia -, são Jim, de Huckleberry Finn, a inteligente Phoebe, de “À Espera no Centeio”, Queequeg, personagem de “Moby-Dick”, Tirano Banderas, personagem criada por Ramón María del Valle-Inclán, Long John Silver, de “A Ilha do Tesouro”, mas também criaturas lendárias como o Hipogrifo, fruto do cruzamento de uma égua com um grifo, ou o Wendigo, criatura do folclore algonquiano, devoradora de homens.
Há depois aquelas personagens mais conhecidas como Fausto, Super-Homem, Bela Adormecida, Robinson Crusoe, Quasímodo, Satanás e o Avô da Heidi, ou as “surpreendentes” – na designação de Pedro Mexia -, como Monsieur Bovary, de Flaubert, aquele que fica em segundo plano e que se resigna a um anonimato decente, Gertrudes, a mãe de Hamlet, e Dom Juan, apresentado mais como “um fazedor de catálogos do que como conquistador de mulheres”.
Na opinião de Ricardo Araújo Pereira, ler estes ‘monstros’ através da visão de Manguel abre ao leitor toda uma nova perspetiva sobre as personagens e compara esta experiência com a que teve ao ler o ensaio “North by Northwest”, de Stanley Cavell.
Nesse ensaio, o autor demonstra como o filme “North by Northwest”, realizado por Alfred Hitchocock, foi decalcado de “Hamlet”, tornando impossível, a partir daí, para o leitor voltar a ver o filme da mesma maneira, sem se perceber sempre a figura de Hamlet por trás.
Para o escritor argentino, estes “amigos literários” começam a fazer parte da vida de quem gosta de ler desde a infância, e lá ficam para sempre, acompanhando o leitor no crescimento, fazendo companhia a outras personagens que entretanto surgem e ganhando significado para lá dos livros de onde saíram, como amigos de longa data com quem se partilha experiências, aprendizagens e emoções.
No final da apresentação, questionado por uma pessoa do público sobre qual o livro que gostaria de ter escrito, se pudesse escolher, Alberto Manguel nem hesitou: “Alice no País das Maravilhas”.