Há algo de sinergia kármica no facto de “Modern Love” estrear por alturas do novo filme de Woody Allen, “Um Dia de Chuva em Nova Iorque”. É que dadas as temáticas e o ambiente impermeavelmente nova iorquino (ou mais concretamente: da Manhattan com fundos de maneio) da nova série da Amazon Prime, a antologia passa bem por placebo para quem se sente órfão de Allen no seu melhor — ou, simplesmente, para quem achou que estava na hora de deixar de seguir o trabalho do polémico realizador.
Baseada nas crónicas biográficas de uma coluna no New York Times, que também deram origem a um popular podcast, “Modern Love” na versão televisiva está longe de ser tão memorável como as suas encarnações anteriores. Porém, é o produto perfeito para consumir no sofá, sozinho ou acompanhado, com uma manta e uma tablete de chocolate do tamanho de um fémur. É uma espécie de boa aposta para uma colecção outono-inverno de sábado à tarde. E é saudável que exista espaço para produtos de ficção televisiva que tenham o efeito oposto a um “Black Mirror” ou a um “Years And Years” (dois ótimos portentos) — em vez do desespero e do desconforto, deixai vir a nós o quentinho e o comovente. Estar sempre irritado faz muito mal aos nervos, filhinhos.
[o trailer de “Modern Love”:]
Três advertências que devem ser feitas antes de se atirar de cabeça a estes oito episódios que reúnem nomes como os dos nomeados a óscares Jane Alexander (“Kramer Contra Kramer”), Dev Patel (“Quem Quer Ser Bilionário”), Catherine Keener (“Queres Ser John Malkovich?”) e Andy Garcia (“O Padrinho 3”), a já oscarizada Anne Hathaway (“Os Miseráveis”), a comediante Tina Fey (“30 Rock”) ou o novo ator fetiche Andrew Scott (o hot priest de “Fleabag”). Um: não é aconselhável a diabéticos. Dois: não é aconselhável a cínicos empedernidos. E três: apesar do seu título, a série é muito mais clássica do que moderna.
Mas vamos por partes. “Modern Love” é uma série doce, tão doce que chega a ser melosa, na vertigem de ser mesmo peganhenta. É uma antologia de finais felizes, um cardápio de contos muito redondinhos e fofinhos. Cada episódio é uma história, com o oitavo capítulo a retomar pontas soltas e a acrescentar-lhe detalhes sempre muito positivos. Há algo de “Love Actually”, seja nas temáticas seja no cast repleto de estrelas, com a benesse de estar vários furos acima de outras tentativas desengonçadas de reproduzir com sucesso esse modelo em cinema (recordemos a custo os esquecíveis “Ano Novo, Vida Nova!” de 2011 ou “Dia dos Namorados de 2010”, ambos muito sofríveis).
Por isso mesmo, não é para cínicos. Há boas personagens, excelentes representações, bons momentos, alguns sorrisos (não é bem uma série de gargalhadas, mesmo com Sharon Horgan a escrever um dos episódios ), mas muitos gatilhos para tentarem provocar choradeira. Com isso vem uma ou outra tirada a escorrer azeite, mas de algumas os criadores orgulham-se tanto que até as colocam no trailer. É o caso de quando, no segundo episódio, uma jornalista insiste em querer saber das dores da vida amorosa do criador de uma aplicação de encontros, saindo-se com um muy bimbo “eu não tenho de publicar a história que está escrita no teu rosto”. Desafio os meus colegas jornalistas do Observador a fazerem esta pergunta ao seu próximo entrevistado sem nenhum dos intervenientes revirar os olhos.
[detalhes sobre cada uma das histórias de “Modern Love”:]
O outro problema é que, de facto, há pouco de moderno neste “Modern Love” – é até bastante clássico nos temas e angústias que aborda. Não é uma ou outra referência a likes no Instagram ou o facto de ter um casal gay em 2019 que a torna vanguardista. Se calhar até é uma opção filosófica, uma reflexão em como aquilo que nos faz mexer é indiferente à passagem do tempo. Mas que não se vá ao engano e que não se procure aqui uma frescura que não existe. Há até muitos déjà vus, desde “Before Sunrise” ao já citado “Love Actually”, passando pela sensação de que a Meg Ryan dos anos 90 pode irromper a qualquer momento.
Ultrapassadas estas idiossincrasias, há alguns bombons nesta aposta da Amazon. Para começar, os fãs de “How I Met Your Mother” vão ver finalmente vingada a injustiça que foi cometida com a Mãe, a atriz Cristin Milioti, aqui com direito a um episódio de abertura que é dos melhores da temporada. Também Anne Hathaway tem um recreio onde mostrar os seus dotes de atriz, interpretando uma bipolar que oscila entre uma vida de musical e um quotidiano de trevas. Mas o melhor episódio é mesmo o quinto, sem atores particularmente famosos, passado numa urgência de hospital.
“Modern Love” chega à Amazon três anos depois da rival Netflix ter estreado “Easy”, que vai já na terceira temporada. “Easy” também é uma sucessão de curtas narrativas fechadas sobre relações, mas com mais sexo e desespero à mistura. Isso não a torna necessariamente melhor, já que “Easy” é muito mais inconstante na qualidade do que “Modern Love”, que nunca nos deixando de queixo caído também nunca nos deixa a chorar trinta minutos perdidos.
Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa