Ralph Lauren construiu um império, isso é inegável. Há um mês, completou 80 anos, já a marca homónima cruzou a marca dos 50, em 2017. O feito é grandioso, sobretudo quando sabemos que fazer uma carreira na moda nunca foi um objetivo e que chegou mesmo a detestar essa área. Da pequena oficina de gravatas a uma fortuna avaliada em 6.800 milhões de dólares, “Very Ralph” é o documentário que conta a história do criador e chega à plataforma de streaming da HBO na madrugada desta quarta-feira.
Ralph Lauren ocupa um dos grandes tronos da moda norte-americana. Ao longo de quase duas horas de filme, descobrem-se detalhes de uma jornada rumo ao sucesso, os trejeitos criativos daquele que é tido por muitos como um génio, mas também o lado mais pessoal do criador, com a mulher, Ricky, e os filhos Andrew, David e Dylan.
“O que eu faço tem a ver com a vida e o documentário da HBO, com a direção da Susan Lacy, captou isso através das lentes da memória e da observação — o meu lado, a minha família, todos os que me ajudaram a dar-lhe forma e os que assistiram a tudo ao longo das décadas. De certeza que será uma peça importante para contar a história de quem sou e do que fiz”, afirmou Ralph Lauren à CNN, a propósito da estreia do documentário.
Lauren foi o sobrenome que escolheu já na adolescência. Nasceu Ralph Rueben Lifshitz, a 14 de outubro de 1939, o mais novo de quatro filhos de um casal de imigrantes bielorrussos a viver no Bronx. Chegou a frequentar um curso de gestão, na Universidade de Nova Iorque, mas desistiu antes de concluí-lo. Serviu no exército entre 1962 e 1964, trabalhou depois na Brooks Brothers, emblemática alfaiataria nova-iorquina, como vendedor de gravatas.
Enquanto jovem, tinha uma aptidão nata para o negócio, mais do que qualquer intenção de se tornar designer de moda. O seu sentido de estilo precedia-o. Os fatos exuberantes, as peças inusitadas que comprava em lojas de segunda mão e as gravatas davam nas vistas. Na verdade, este acessório viria a ser o seu passaporte para um percurso como designer em nome próprio. Manualmente, com uma produção de pequena escala e com a ajuda da família, Ralph Lauren começou a fazer as suas próprias gravatas. “A minha mãe e uma prima dela também se sentavam a pregar etiquetas nas gravatas”, recorda Ricky Lauren, casada com o designer há 55 anos, durante o documentário.
Os primeiros anos foram difíceis, marcados pela insegurança e pela precariedade, segundo é relatado no filme. Ricky, atualmente com 76 anos, descreve o primeiro apartamento do casal como um lar humilde, ao lado de uma linha de comboio e onde os dois chegaram a dormir no chão.
Foi então que Lauren teve uma proposta da Bloomingdale’s. A grande cadeia de luxo quis comercializar as gravatas, mas colocando a sua própria etiqueta no produto e sugerindo algumas alterações no tamanho — como Ralph as desenhava, eram muito largas. A oportunidade de negócio era inegável, porém o nome Ralph Lauren desapareceria. Nessa reunião, o jovem Ralph fecharia a mala e abandonaria a sala, recusando a oferta.
A marca acabaria por ser fundada em 1967, com sede num pequeníssimo gabinete no Empire State Building e com o próprio criador a assegurar as entregas. Um ano depois, chegava a primeira linha masculina completa. As afinidades com o desporto eram flagrantes, porém modalidades como futebol ou basebol não encaixavam no lifestyle que este visionário tinha em mente. Polo Ralph Lauren foi, por isso, um nome mais ou menos imediato.
Surge uma nova proposta da Bloomingdale’s, desta vez para vender em exclusivo aquela primeira coleção. Pela primeira a cadeia dava a um designer o seu próprio espaço dentro de um dos seus armazéns. No arranque dos anos 70, Ralph propunha um novo guarda-roupa masculino — elegante e casual, é certo, mas também ousado ao ponto de quebrar com o cinzentismo da alfaiataria que até aí imperava. Em 1971, surgem as primeiras camisas para mulheres. O fato masculino ressurgiria então numa silhueta feminina, sofisticada e real.
Na sua direção criativa, que dura até hoje, Ralph Lauren é apontado como um génio visionário, que sempre viu a própria marca como um universo singular de lifestyle e nunca apenas como uma etiqueta de moda. A influência das grandes produções de Hollywood — sobretudo dos anos 30 e 40 — estive sempre presente, bem como a incorporação da cultura americana, das cores da bandeira à imagem estereotipada de índios e cowboys. Os membros da sua equipa reconhecem-lhe uma visão anti-tendência e anti-moda, fórmula para uma silhueta intemporal e para as aguardadas campanhas, para muitos, imagens síntese do sonho americano.
“Não comecei propriamente com a ideia de uma conclusão. O que tento fazer, em todos os meus filmes, é ligar a vida à obra. Aqui, a conclusão é acreditares em ti próprio. Confia no teu interior e nos teus instintos”, indicou Susan Lacy, realizadora do documentário, à CNN. Ao longo do documentário, tem a palavra o próprio Ralph Lauren — que a realizadora já disse ser “o mais icónico dos designers americanos” –, mas também os designers Calvin Klein, Donna Karan, Diane von Furstenberg e Karl Lagerfeld, Naomi Campbell, Anna Wintour, Hillary Clinton, Kanye West e Woody Allen.
Lacy assina esta longa-metragem. Há décadas que acumula documentários biográficos no seu portefólio. O mais recente tinha sido “Jane Fonda in Five Acts”, mas conta-se ainda “Spielberg” e a série “American Masters”, sobre nomes como Charlie Chaplin, Andy Warhol e Billie Holiday. Na lista, faltava-lhe uma personalidade do mundo da moda. Propôs a Lauren, que já tinha recusado outros documentários e até arrumado na gaveta uma autobiografia inacabada, segundo revelou a revista Vogue.
“Pode dizer-se que nunca se tinha feito nada sobre ele sem que ele tivesse no controlo. Acho que ele confiou em mim. A primeira coisa que fez depois de ver o filme — e estava bastante emocionado — foi olhar para mim e dizer: ‘nunca teria conseguido fazer isto'”, contou Susan Lacy à Vogue.
Contar a história de Ralph Lauren é também falar de momentos de puro pioneirismo. Depois de explorar a alfaiataria masculina e feminina, foi o primeiro designer de moda a lançar uma linha para a casa. A Ralph Lauren Home chegou aos mercado em 1983 com mobiliário, acessórios de decoração e têxteis. Em 1996, outro marco. O criador juntou os manequins Tyson Beckford e Naomi Campbell numa das suas campanhas. “Foi um grande acontecimento ter duas pessoas de cor uma campanha mundial”, admite Campbell no documentário.
O final dos anos 90 ficou marcado pela entrada na bolsa. Para sempre presente na memória coletiva ficará também Annie Hall, personagem de Woody Allen, interpretada por Diane Keaton em 1977 e vestida por Ralph Lauren. O colete, a gravata e a camisa branca já na altura eram e continuam hoje a ser imagens de marca do designer norte-americano. Foi na Ralph Lauren que trabalhou Rachel Green, personagem de Jennifer Aniston em “Friends”. A ligação ficou e a marca até lançou uma coleção comemorativa dos 25 anos da série, em setembro deste ano.
Na esfera pessoal, Ralph manteve-se sempre ligado à família, alternando as suas aparições entre Nova Iorque, a sua casa de praia em Montauk, Long Island, e o rancho no Colorado. À paixão pelo desporto, Lauren sempre somou um interesse de colecionador de viaturas automóveis. Atualmente, o seu espólio pessoal ronda os 100 exemplares. Alguns deles já estiveram mesmo expostos no Museu de Artes Decorativas, em Paris.
“Very Ralph”, documentário sobre a vida e a obra de Ralph Lauren estreia esta terça-feira à noite, 12 de novembro, na HBO. Em Portugal, o filme deverá ficar disponível na madrugada de quarta-feira.