Título: Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos
Autor: Olga Tokarczuk
Editora: Cavalo de Ferro
Ano da Edição: outubro de 2019
Páginas: 288
Preço: 17,69€

Publicado originalmente em 2009, o romance da polaca Olga Tokarczuk foi publicado este ano em Portugal, pela Cavalo de Ferro 

Em 2006, Al Gore assusta o mundo com o documentário “Uma Verdade Inconveniente”. Aparentemente, a nossa estadia no planeta Terra não era tão duradoura como achávamos, e a culpa era nossa. Andámos a usar e abusar dos recursos finitos. De repente, todos ganhámos consciência ambiental e nos apercebemos do mal que, enquanto sociedade, tínhamos andado a fazer à Natureza e de como ela, mais cedo do que tarde, se “vingaria” através do aumento gradual da temperatura, do nível do mar e de uma miríade de outros problemas ligados ao clima.

Dois anos depois, em 2008, estreia “O Acontecimento, The Happening”, realizado por M. Night Shayamalan e protagonizado por Mark Wahlberg, filme rapidamente considerado como mais um falhanço do realizador que, desde Signs, tem vindo a desiludir a crítica. É uma tentativa de reflexão ecologista sobre como o abuso da Natureza por parte do ser humano pode ter consequências muito drásticas para nós. Neste caso, as plantas desenvolvem um mecanismo de defesa que afeta a mente dos humanos, fazendo-os cometer suicídio em massa. Não fosse o facto de o filme estar tão mal escrito, atuado e realizado, poderia ter sido um contributo muito válido para a conversa sobre as alterações climáticas e a nossa obrigação para com a Natureza.

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No ano seguinte, 2009, Olga Tokarczuk, vencedora do Prémio Nobel da Literatura de 2018, publica em polaco o livro Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos, que permanecerá praticamente desconhecido a oeste da Polónia durante os nove anos seguintes, até ser traduzido para inglês, mas que lhe valerá, em 2019, uma nomeação para o Man Booker International Prize. Tokarczuk também vai buscar esta ideia da Natureza como ser que sente, que reage contra a ação humana desrespeitadora, mas numa dimensão muito mais pequena e pessoal. A ameaça já não é global, onde tanto sofre o justo como o pecador, mas sim individual, pensada especificamente para aqueles que, através das suas ações, quebram o eterno equilíbrio natural.

É com esta suspeita de ataque personalizado que começa a obra. O cenário não podia ser mais propício: uma povoação rural remota, junto à fronteira da Polónia com a República Checa, ladeada por montanhas e por uma floresta cerrada, onde a neve e o gelo reinam durante a maior parte do ano. Perante este ambiente altamente hostil, Janina Duszejko, a idosa narradora e protagonista da história, lembra ao leitor que “o mundo não fora criado para o Homem”. Com esta frase fica implícita a conclusão de que, ainda assim, o Homem tenta impor-se como regente do mundo, colhendo depois maus resultados para si. Vemos esse resultado poucos parágrafos a seguir, quando Janina e o seu vizinho Papão (Papão é a alcunha que ela lhe dá), encontram o seu outro vizinho, Pé Grande, morto em casa.

À primeira vista, não há nada que nos leve a crer que esta morte tenha algo de especial. Pé Grande morre engasgado com um osso de veado. Mas Janina, com uma sensibilidade especial no que toca à Natureza, especialmente para com os animais, apercebe-se da presença de umas corças à volta da casa, que se comportam de forma estranha. Parecem atentas, como que à espera de algo. Janina formula então a teoria de que, de alguma forma, as corças são as responsáveis pela morte de Pé Grande. Este homem era caçador furtivo, e usava os próprios recursos da Natureza para caçar os animais da floresta. Seria então de esperar que, mais tarde ou mais cedo, a Natureza se vingasse.

Esta é apenas a primeira vítima. Ao longo do livro, vamos assistindo a uma série de mortes, aparentemente inexplicáveis, de homens que vão aparecendo sem vida no meio da floresta. Todos eles partilhavam a paixão pela caça, mas Janina parece ser a única a perceber esta ligação, sendo também a única a suspeitar da “mão” animal por trás das mortes.  As evidências são óbvias: as pegadas de animais à volta dos corpos, em padrões de movimento não usuais, o seu estranho comportamento, como que se já não se assustassem com presença humana, e uma motivação forte: o ataque destes homens ao seu habitat.

Apesar de parecer horrorizada pelos assassinatos, Janina consegue perceber a razão pela qual a Natureza se viraria contra estes homens. A sua sensibilidade no que toca a questões ecológicas e de defesa da Natureza faz dela uma força incómoda numa sociedade rural com uma forte cultura de caça. Mesmo a caça legal é, para ela, um ato criminoso e desumano, uma quebra na ordem natural, e por isso vemo-la muitas vezes a tomar ações concretas contra grupos de caçadores. Parte do seu dia é dedicado a desmantelar armadilhas ou a afugentar animais de zonas perigosas. Numa vila onde a igreja é dedicada a S. Huberto, padroeiro dos caçadores, Janina transforma-se assim numa força protetora da floresta e dos que lá habitam.

No meio deste ambiente de contos de fada de terror, onde os animais em vez de falarem, matam, vamos tendo momentos de normalidade, repletos de descrições sobre o quotidiano. A ida aos correios ou à mercearia acontece paralelamente à descoberta de um corpo bolorento, morto há semanas. O horóscopo é usado para tentar dar sentido a uma série de mortes bizarras. O excecional e o banal andam de mãos dadas, intercalando entre si.

O mesmo acontece com a escrita de Tokarczuk, que vai intercalando entre dois estilos muito diferentes. Por vezes temos um texto carregado de simbolismos. Isto acontece, por exemplo, quando Janina é visitada, mais do que uma vez, pela sua falecida mãe, com quem fala, ou com a referência às suas duas cadelas, que nunca vemos, mas que estão sempre presentes, ainda que não fisicamente. Por oposição, a escrita é, por vezes, muito concreta e desprovida de qualquer segundo significado, o que ocorre quando Janina está a ser interventiva, num discurso de manifesto que acontece sempre quando se insurge contra os caçadores.

A narrativa é enriquecida pelas personagens que orbitam à volta de Janina, desde Papão, um vizinho com quem pouco fala, mas de quem se aproxima depois de descoberto o primeiro corpo, a Dizzy, um ex-aluno com quem traduz as obras de William Blake, passando ainda por Boa Nova, a lojista fã de livros de terror. É interessante verificar que as personagens às quais poderíamos chamar de vilões, por estarem em direto confronto com a protagonista, são os mesmos que vão morrendo ao longo do livro.

Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos talvez não nos esfregue na cara as suas preocupações ecologistas como “Uma Verdade Inconveniente” ou “O Acontecimento” o fazem, mas não deixa de colocar o dedo na ferida, com a arte e engenho de uma sensibilidade literária.