A menos de uma semana das eleições gerais britânicas de 12 de dezembro, o conservador e primeiro-ministro Boris Johnson e o trabalhista Jeremy Corbyn juntaram-se para um último debate que condensou numa hora todas as declarações decoradas e repetidas ad nauseam nos últimos anos no Reino Unido, sempre com o tom agressivo que se tornou norma.

Após um debate que dificilmente terá feito algum indeciso mudar de ideias e onde cada candidato se afundou nas próprias convicções, fica claro que entre a longa lista de provérbios utilizados no Reino Unido (e não só) tanto  Johnson como Corbyn ignoraram a máxima de “não ponhas os ovos todos no mesmo cesto” e apostaram tudo num só tema — no caso do conservador, a defesa do Brexit e do seu acordo com a UE; no caso do trabalhista, a crítica do atual acordo e a defesa dos serviços públicos.

Ou seja, e voltando aos provérbios anglo-saxónicos com ovos, cada um preferiu antes “não matar o ganso que põe os ovos de ouro”.

Boris e Corbyn, dois políticos em versão disco riscado

Dúvidas houvesse, basta reparar nas vezes que cada candidato falou no seu “ganso dos ovos de ouro” ao longo do discurso. Boris Johnson disse “Brexit” um total de 15 vezes e a palavra “acordo” (“deal”, em inglês) subiu às 26 — já descontando a vez em que o primeiro-ministro utilizou a palavra “deal” como forma verbal.

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Jeremy Corbyn falou do NHS (sigla para o serviço nacional de saúde do Reino Unido) um total de 15 vezes, procurando protegê-lo da “austeridade” (4 vezes) e de um acordo com os EUA que aproxime aquele sistema público de algum tipo de privatização. As menções ao país do Tio Sam foram 8.

Como é foi possível chegar-se a estes números? Fácil: tanto Boris Johnson como Jeremy Corbyn deram o seu melhor para, recorrendo a habilidosas piruetas retóricas, desviar qualquer pergunta do moderador ou do público em estúdio num tema central do seu… “ganso dos ovos de ouro”.

Os 15 “Brexit” e os 26 “acordo” de Boris Johson”

Quando o tema era o NHS, Boris Johnson garantiu que um governo de maioria conservadora iria “investir imensamente” no sistema de saúde pública, tal como noutras áreas como a educação e segurança — e depois veio o “mas”, em que o conservador disse “mas só podemos fazer isso se tivermos uma economia forte e a única maneira (você não vai gostar disto) é se deixarmos o país avançar e cumprir o Brexit”.

Aquele “você não vai gostar disto” foi para o moderador, algo exasperado pelas piruetas de Boris Johnson em direção Brexit. E teve mais por onde se exasperar, com o primeiro-ministro a insistir, ainda no dossier do NHS, que o investimento seria possível se fosse “quebrado o bloqueio parlamentar” e que a partir daí se pudesse, claro, “cumprir o Brexit”. E também quando um membro do público (que, após serem previamente escolhidos pela BBC com ajuda de empresas de sondagens, também colocaram perguntas aos debatentes) perguntou o que cada um estava disposto a fazer para “tirar o ódio da política”, Boris Johnson insistiu: “Sinto muito, mas o meu ponto principal para hoje à noite é que este agressividade na política, o tom amargo, a acrimónia, são tudo representações da nossa incapacidade de cumprir o Brexit”.

Mas, afinal, como é que se “cumpre o Brexit”? Para Boris Johnson, é com o seu “acordo”, repetido 26 vezes. E, numa frase que foi uma espécie de bingo johnsoniano, o primeiro-ministro britânico assegurou: “A grande beleza deste acordo é que ele cumpre o Brexit”. Esta frase, justiça seja feita, foi durante o segmento do debate para o Brexit — mas é possível que Boris Johnson não tenha reparado que quase não houve outros.

Os 15 “NHS” e os 8 “EUA” de Jeremy Corbyn

Depois, houve Jeremy Corbyn e as suas 15 menções ao NHS. Se é certo que algumas delas foram durante o bloco temporal apropriado para esse tema, o facto é que muitas também foram fora dele.

Foi assim, por exemplo, quando o tema era o Brexit, com Jeremy Corbyn a puxar do bolso um documento previamente divulgado pelo seu próprio partido e onde ficou demonstrado que o Governo de Boris Johnson chegou a discutir a possibilidade de incluir o NHS num acordo comercial com os EUA — o tal país por oito vezes mencionado por Jeremy Corbyn.

Eis o bingo corbyniano: “O senhor Johnson vai gastar pelo menos 7 anos a negociar com os EUA o accesso aos nosso serviços públicos, os preços dos medicamentos no Reino Unido, o acesso ao nosso NHS”.

A bronca do debate

Foi a propósito do debate sobre o Brexit que se deu, ainda no primeiro terço deste encontro a dois, aquele que foi o momento mais quente de todos. Erguendo de novo documentos divulgados pelo seu partido e exibindo-os como adereços (possivelmente levando alguns seguidores da política espanhola a indagar se Albert Rivera trabalha agora como consultor do Partido Trabalhista), Jeremy Corbyn acusou o governo de Boris Johnson de se preparar para, com o seu acordo para o Brexit, criar uma fronteira de facto entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido.

“[Estes documentos] demonstram claramente que vai haver alterações, vai haver controlo de fronteiras, vai haver restrições ao comércio entre o Reino Unido e a Irlanda do Norte”, atirou o trabalhista.

Boris Johnson negou essa acusação, pelo caminho disse “acordo” duas vezes (“o nosso acordo é um grande acordo”) e depois disparou contra o trabalhista: “O que é no mínimo curioso, para não dizer outra coisa, é eu receber um sermão sobre a união entre o Reino Unido e a Irlanda do Norte de um homem cuja vida política foi passada a fazer campanha pelo desmantelamento da união e que apoiou durante quatro décadas o IRA”. Foi aqui que alguns dos espectadores no estúdio irromperam em aplausos.

Jeremy Corbyn primeiro fez que não ouviu e voltou a apontar para os seus documentos — “então e se o primeiro-ministro desse uma prova mínima de honestidade sobre os acordos que ele fez para a Irlanda do Norte?”, perguntou — mas depois contra-atacou já sobre o tema do IRA e da violência na Irlanda Norte. “O que eu sempre defendi foi um processo de paz na Irlanda do Norte e foi exatamente o que aconteceu, graças ao Partido Trabalhista que o negociou”, disse, referindo-se ao Acordo de Belfast ou Acordo de Sexta-Feira Santa, assinado em 1998 durante o primeiro mandato de Tony Blair.

O teu racismo é pior do que o meu

Antisemitismo de um lado, islamofobia do outro. Ao longo dos últimos anos, o Partido Trabalhista tem sido palco de vários episódios de antisemitismo por parte de alguns dos seus membros e deputados, com alguns dos casos a valerem críticas a Jeremy Corbyn pela sua brandura na altura de disciplinar aqueles atos de racismo. E também desde que Boris Johnson lidera o Partido Conservador, a islamofobia de alguns deputados daquele partido é razão de escândalo e desagrado.

Quando os dois problemas foram colocados numa só pergunta, cada candidato fez por falar o mínimo possível da metade que lhe dizia respeito e, por outro lado, apontou com dedicação para os males do seu adversário.

Boris Johnson, que sem surpresa começou a sua resposta a dizer que era preciso “cumprir o Brexit”, acabou por responder que os casos verificados no seu partido foram de pessoas que “ou pediram desculpa ou estão sob investigação” e logo puxou para as declarações do rabino-chefe da Comunidade Judaica Ortodoxa Britânica, que disse haver “um novo veneno” que “assentou no Partido Trabalhista”.

Jeremy Corbyn não foi tão evasivo quanto Boris Johnson e falou do seu partido. “O antisemitismo é algo errado e totalmente inaceitável na nossa sociedade, nos nossos partidos, na nossa vida política e este tipo de racismo e linguagem leva-nos, como a História demonstrou, a tudo o que o povo judeu sofreu no século XIX na Alemanha”, disse Jeremy Corbyn, falhando, por lapso, o Holocausto por um século.

Boris Johnson disse que Jeremy Corbyn era “certamente bem intencionado”, mas que geriu mal o caso. E voltou ao Brexit, logo na frase seguinte, dizendo que, tal como quanto à saída do Reino Unido da UE, “também não se pode ser neutro em assuntos como este”. “Isso é uma falha de liderança”.

Jeremy Corbyn respondeu: “Falha de liderança é fazer afirmações racistas para descrever pessoas que vêm de outros países e de outras cidades”.

Os 30 segundos finais: baralha e dá o mesmo até ao dia do tira-teimas

No final, cada candidato teve meio minuto para se dirigir olhos nos olhos aos britânicos. E aqui, sem surpresa, cada candidato baralhou para voltar a dar o mesmo: Brexit em barda para Boris Johnosn, NHS a rodos para Jeremy Corbyn.

O primeiro foi Jeremy Corbyn, que sublinhou que, ao contrário do que algumas pessoas dizem, não é verdade que “a política não consegue mudar nada”. “Consegue!”, acrescentou. “Foi um governo radical do Partido Trabalhista que criou o NHS e reconstruiu o Reino Unido. Hoje, temos de ter uma ambição à mesma escala. Cabe-nos mesmo a nós fazer o nosso futuro, todos juntos. Podemos atacar as alterações climáticas, pôr um fim à pobreza infantil e financiar adequadamente  o nosso NHS”, disse.

E depois Boris Johnson. Para o conservador, quinta-feira é uma escolha entre o caos ou… o Brexit, claro. “Esta quinta-feira podemos escolher entre ter outro parlamento suspenso sob o senhor Corbyn e Nicola Sturgeon com dois referendos caóticos. Ou, então, podemos cumprir o Brexit, sairmos do ponto morto e conseguir um parlamento que funciona para si e para as suas prioridades”, sugeriu.

Assim, o debate terminou como começou: com cada candidato entrincheirado no seu lado, sem concessões ou alterações de discurso, convicto da sua via. É como termina também este texto, regressando aos provérbios, mais propriamente àquele que diz que “um teimoso nunca teima sozinho”. Na quinta-feira, dia de eleições, cabe aos britânicos tirar essas teimas.