Neste sábado à noite, depois do Telejornal, arranca na RTP1 a quinta temporada de “Conta-me Como Foi”, uma das mais populares séries da televisão portuguesa, desta vez ambientada na década de 80, o que representa um salto de pelo menos uma década na história da família Lopes, que os espectadores acompanharam de 1968 a 1974 em temporadas emitidas entre 2007 e 2011. O regresso é “um dos maiores eventos televisivos do ano”, na opinião de José Fragoso, diretor de programas da estação pública.
O genérico da série é agora com o tema “Dunas”, dos GNR, em lugar do icónico “20 Anos”, de José Cid. No primeiro episódio vão escutar-se outras canções da época, como “Celebration”, de Kool & The Gang, “Patchouly”, do Grupo de Baile, e “Sonho Azul”, de Né Ladeiras.
Cada episódio semanal custa à estação pública entre 80 e 100 mil euros e a produção pertence à SP Televisão, que também assegurou anteriores temporadas de “Conta-me Como Foi”, um formato original espanhol (da Ganga Producciones e da TVE) intitulado “Cuéntame… Como Pasó”, ainda hoje no ar e já com 20 temporadas.
À conversa com responsáveis da SP, da figurinista ao chefe dos guionistas, passando por diretores criativos e de produção, o Observador recolheu curiosidades e detalhes sobre os bastidores da famosa série.
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Como tudo começou
O regresso da série foi ideia de José Fragoso, diretor de programas da RTP1, que há cerca de um ano decidiu voltar a apostar neste formato de culto. A SP Televisão, como produtora independente, foi contactada para reiniciar o projeto.
Primeiro, foi preciso pensar no texto. “Tudo depende de um bom guião, porque sem isso não há produto que resista no ecrã, por muito dinheiro que o sustente”, explicou Pedro Lopes, diretor de conteúdos da SP Televisão. “O que apaixona o espectador é uma boa história e boas personagens, para que ele se envolva e se preocupe com aquelas pessoas de ficção.” A seguir, escolheram-se o produtor, o realizador (Hugo Xavier, ao lado de Paulo Brito e Jorge Cardoso) e ainda os atores.
Mais de 100 pessoas estiveram envolvidas, muitas das quais contratadas temporariamente só para este projeto. O número é considerado alto para os padrões portugueses, segundo Francisco Barbosa, diretor de produção. Nas novelas, por exemplo, há menos profissionais envolvidos e as equipas são divididas em duas, o que permite gravar à mesma hora diversas cenas para o mesmo formato.
O que vamos ver agora
Se nas temporadas anteriores (a primeira das quais transmitida em 2007), surgia a recriação de um Portugal cinzento e pesado, no contexto do Estado Novo, do autoritarismo e da falta de liberdade, o país da quinta temporada é agora bem diferente. Os Lopes, família de classe média de Lisboa e núcleo central da história, são os mesmos de antigamente, mas claro que o casal Margarida e António envelheceu e os filhos cresceram. No primeiro episódio, vamos estar em inícios de 1984. Cada mês do período agora retratado, 1984 a 1987, corresponde mais ou menos a cada um dos 52 episódios.
A RTP tem divulgado alguns excertos da série e exibiu um vídeo de alguns minutos durante uma apresentação à imprensa na semana passada, mas os pormenores estão sob segredo até à estreia. A produtora adianta que ao longo das semanas serão abordados temas como a crise da heroína em Portugal, o aparecimento dos primeiros casos de sida, a morte de António Variações, a divulgação do pronto-a-vestir e das roupas coloridas, a medalha de ouro de Carlos Lopes nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, o escândalo financeiro de Dona Branca (conhecida como “banqueira do povo”), a adesão de Portugal à CEE, a maioria absoluta de Cavaco Silva nas eleições legislativas de 1987.
O miúdo de nove anos que narrava parte dos acontecimentos nas primeiras temporadas é agora um jovem adulto e trabalha como publicitário (Carlos Lopes, ator Luís Ganito). O olhar dele sobre o mundo tornou-se obviamente mais complexo.
“Não torcemos factos históricos, temos a responsabilidade de fazer um trabalho sério, até porque a série é emitida pela RTP, a estação pública”, explicou Pedro Lopes. “Mas não se trata de uma série histórica ou política, é uma série de época com um olhar sociológico. As personagens ficcionais cruzam-se com acontecimentos históricos e a ação desenrola-se com esse pano de fundo verídico.”
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As gravações
A rodagem da nova temporada começou em agosto e deve terminar daqui a dois meses. Há poucos dias em Lisboa, junto ao Largo do Figueiredo, na zona da Ajuda, o Observador assistiu à gravação de duas cenas dos episódios 22 e 35. As personagens Margarida Lopes (Rita Blanco) e Amparo (Mafalda Vilhena) conversavam à porta de uma boutique e António Lopes (Miguel Guilherme) aparecia no seu Renault 5 para lhes dar um recado.
O aparato era acompanhado à distância por alguns curiosos e a equipa da produção pedia-lhes que se deslocassem de um lado para o outro, para que não aparecessem no enquadramento das câmaras. À porta dos prédios em redor, folhas com um aviso tinham sido afixadas de véspera: “A produtora SP Televisão estará a filmar uma série de época na Travessa do Figueiredo no próximo dia 29 de novembro. Tudo faremos para que a nossa atividade perturbe o menos possível.” Algumas moradoras saíam de casa naquela manhã e baixavam a cabeça, como que a recearem aparecer na imagem.
No mesmo set encontravam-se carros do início dos anos 80 e as paredes tinha sido sido adornadas com cartazes políticos verídicos (num deles, a fotografia de Mário Soares e a mensagem “Comigo, convosco contra a crise”, a remeter para a intervenção do Fundo Monetário Internacional em 1983, quando Soares era primeiro-ministro). Frente à boutique Guida, loja de rua adaptada para ser o local de trabalho da personagem de Rita Blanco, situava-se a Mercearia do Caetano, outro local imaginário com interiores decorados com garrafas de refrigerantes, sabonetes e detergentes de meados de 80.
Para além dos exteriores, onde geralmente operam apenas duas câmaras, a série tem sido gravada nos estúdios da SP em Vialonga (Vila Franca de Xira, perto de Lisboa). Aí, geralmente são utilizadas três câmaras.
A acompanhar parte das filmagens e dos ensaios tem estado o líder da equipa de guionistas, Miguel Simal, o que não é comum. “Quisemos funcionar de maneira diferente, porque este é um projeto muito próximo dos atores”, disse o diretor de conteúdos, Pedro Lopes.
O guarda-roupa
Quase todas as roupas das personagens vieram de armazéns e lojas de segunda mão espalhados pelo país, contou a figurinista da série, Rute Correia. Ainda estão disponíveis muitas peças daquela época ou adaptáveis e o que não se encontrou foi criado por uma costureira que trabalha para a SP.
Segundo Rute Correia, depois do guião escrito, dois assistentes fizeram a pesquisa do vestuário português de meados de 80 e ela própria definiu a linha que cada personagem deveria seguir. Não pesquisaram em vídeos ou gravações antigas, mas em fotos que as pessoas guardam em casa. “É nessas fotos que se conta a verdade sobre o que se vestia, porque nas imagens de televisão está uma versão idealizada da aparência”, comentou a figurinista.
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O guião
Durante os meses que durou a escrita, entre dezembro de 2018 e agosto de 2019, Miguel Simal viveu uma realidade paralela. “Sabia mais sobre os anos 80 do que sobre 2019, porque todos os dias lia os jornais antigos, como se estivesse a viver diariamente naquele tempo”, contou ao Observador. “Sabia de cor os ministros dos governos da altura, passei a ouvir música dos anos 80, vi muito a RTP Memória, estava sempre a consultar os arquivos online do Diário de Lisboa e a trocar informações com a nossa especialista.” Referia-se à historiadora Helena Matos, consultora das quatro temporadas anteriores, com quem manteve contacto permanente por telefone e e-mail.
Miguel Simal – o mesmo autor da série “Bem-Vindos a Beirais” e de telenovelas da SIC como “Mar Salgado” e “Vidas Opostas” – escreveu e também coordenou os restantes guionistas. A saber: Pedro Lopes, Mário Cunha, Mariana Preguiça, Catarina Bizarro, Catarina Dias, Sandra Machado e Joana Borges. “Na escrita para TV há definitivamente muito mais mulheres do que homens”, fez notar.
Cada episódio tem uma média de 45 a 50 páginas de texto e mais ou menos oito mil palavras, incluindo diálogos e notas. “Todos sentimos que este era um projeto especial”, classificou. “Não posso dizer que se escreva uma novela com leveza, mas aí o espírito é mais fabril e a escrita por vezes é a possível. Uma série como esta tinha de ter não a escrita possível, mas a escrita boa.”