A proposta de Orçamento do Estado para 2020 introduz a possibilidade de dissolução dos conselhos de administração de empresas públicas por agravamento dos pagamentos em atraso. Caso os critérios definidos no documento ocorram, cabe aos órgãos de fiscalização das empresas verificar e reportar a situação ao Ministério das Finanças a quem cabe tomar decisão final sobre o que acontece aos administradores.
Esta situação não estava prevista no estatuto do gestor público que elenca as razões que podem sustentar do ponto de vista jurídico o afastamento de gestores e/ou de conselhos de administração em empresas do Estado. E surge no quadro anúncio de um reforço de meios financeiros para o setor da saúde onde se concentram as empresas — hospitais empresas — com maior atrasos aos fornecedores. Até agora, a administração de uma empresa do Estado podia ser dissolvida nos seguintes casos.
- Grave violação, por ação ou omissão, da lei ou dos estatutos da empresa;
- Não observância, nos orçamentos de exploração e investimento, dos objetivos fixados pelo acionista
- Desvio substancial entre os orçamentos e a respetiva execução;
- Grave deterioração dos resultados do exercício ou da situação patrimonial, quando não provocada por razões alheias ao exercício das funções pelos gestores.
O tema dos pagamentos em atraso aparece na proposta orçamental num artigo sobre a atribuição de incentivos (bónus) à gestão das empresas públicas. O artigo começa referir que este indicador pode servir de exceção ao pagamento de prémios de desempenho aos gestores em 2021, referentes aos objetivos alcançados durante a gestão do próximo ano. Para além da derrapagem nos pagamentos em atraso, também a não aprovação do plano de atividades e orçamento durante o primeiro semestre de 2020, é motivo para travar eventuais pagamentos de prémios relativos ao desempenho desse ano.
A proposta estabelece que há um agravamento dos pagamentos em atraso nos casos em que o saldo em dívida no final de 2020 há mais de 90 dias, acrescido das dotações orçamentais adicionais face ao orçamento inicial aprovado, ultrapassar o saldo dos pagamentos em atraso verificado no final deste ano.
O mesmo artigo determina que nas situações em que se registem agravamentos de pagamentos em atraso, nos termos acima descritos, e após a verificação pelos órgãos de fiscalização das empresas a quem compete fazê-lo, isso resulta na “dissolução dos respetivos órgãos de administração”. Este desfecho pode não acontecer se houver uma decisão contrária por parte do membro responsável pela área das Finanças, e que deve ocorrer até dois meses após a emissão da certificação legal sobre as contas do ano de 2020. Está ainda previsto que o órgão de administração tem direito a pronunciar-se em sede contraditório no prazo de 20 dias.
Na proposta da OE não é referida a intervenção do ministério do setor ao qual a empresa pertence. Por regra, e com exceção do setor financeiro e da Parpública, as empresas do Estado tem duas tutelas: as Finanças e a tutela setorial.
O Observador questionou o Ministério das Finanças sobre as razões que levaram à introdução desta disposição na proposta de Orçamento do Estado, sem resposta até agora. No entanto, a iniciativa aconteceu pouco depois do anúncio de reforço de meios financeiros para o setor da saúde e para os hospitais empresas que são empresas públicas e que cujos administradores se regem pelas regras do setor público.
A saúde é também a área do setor empresarial do Estado onde existem tradicionalmente maiores atrasos nos prazos de pagamento a fornecedores. Os dados mais recentes de monitorização deste quadro revelam que até outubro existiam 966 milhões de euros de pagamentos em atraso no Estado, cerca de 76% deste valor correspondia a faturas dos hospitais. Na lista de empresas públicas com maiores pagamentos em atraso, todas 36 entidades reportadas são hospitais. Com mais de 300 dias de prazo médio de pagamento estavam o Centro Hospitalar de Setúbal, Centro Hospitalar Lisboa Norte, Centro Hospitalar Lisboa Central, Centro Hospitalar do Vouga e Centro Hospitalar Lisboa Zona Ocidental.
O elevado nível de pagamentos em atraso tem sido atribuído à crónica suborçamentação (atribuição inicial de verbas insuficiente face à despesa que obriga a novas transferências ao longo do ano) na saúde. Ora foi precisamente para atacar este problema que o Governo anunciou um reforço das verbas a transferir que, em 2020, deverá ser da ordem dos 900 milhões de euro face ao orçamentado para este ano. E o ministro das Finanças já avisou que com mais dinheiro atribuído também se exige mais responsabilidade.
“Os serviços públicos não são num depositário de recursos públicos,” sublinhou Mário Centeno na conferência de imprensa de apresentação da proposta de Orçamento. “A responsabilização que se exige a todos os que trabalham no SNS, e em todas as outras áreas dos serviços públicos, é responderem pelos recursos crescentes que todos colocamos ao seu dispor”. Para Mário Centeno, “ninguém pode ficar sem responder pela utilização dos serviços públicos”.