Título: Manual do Bom Fascista
Autor: Rui Zink
Editora: Ideias de Ler
Páginas: 175

Um livro de piadas é sempre, de certa forma, inimputável. Se dissermos que a imagem do fascista é exagerada – mesmo que o autor, volta e meia, acrescente um “sic — estas coisas não se inventam” às suas ridicularias – é claro que o autor estava a brincar; se certas ideias são tolas, são como as quer o humor, se a ideia é absurda, cumpre o seu propósito; e se, no fim de tudo, chegarmos à conclusão de que o livro não tem graça, somos nós o bobo da festa, aquele que não percebeu a piada.

Ora, para juntar à pândega, este é um livro humorístico sobre fascistas. A ideia é compreensível logo pelo título: um Manual do Bom Fascista, ao assumir, logicamente, que o fascista é mau, acaba por ser paradoxal. Um bom fascista é, na verdade, o pior dos fascistas. Podemos atrever-nos a não gostar da paródia feita aos rapaces fachos? Podemos, embora, se o dissermos publicamente, as mentes mais expeditas pintem logo o quadro todo: “serviu-lhe a carapuça, não foi?”, “começam a sair da toca, os bandidos!”.

Podemos aceitar, resignados, que nos descubram a careca; podemos até admitir, vencidos, que de nada serve dizer de uma piada se tem ou não tem graça. Quem acha graça acha graça, quem não acha graça não acha graça, tão simples quanto isto. No entanto, mesmo que não pensemos no fundamental de um livro cómico — se cumpre a sua função de fazer rir — há uma série de aspetos que podem ser criticáveis. Nenhum livro pode ser inteiramente absurdo; nenhum livro sobre “fascistas” pode fugir a expor uma tese sobre o que toma por fascista; Rui Zink, aliás, não se esquiva a isto. No meio da brincadeira, há umas explicações um bocadito mais sérias sobre as raízes humanas do fascismo, a sua natureza e o seu potencial. Paradoxalmente, é essa parte séria que nos parece a mais cómica do livro. Não nos interessa muito se o livro é engraçado ou não; mas o monstro que Rui Zink constrói, de tão boçal, maléfico, básico e manhoso é no mínimo risível.

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O fascista, no entender de Rui Zink, é tudo e o seu contrário, desde que esse tudo e esse contrário sejam maus. Só em caracterizações tiradas diretamente do texto, o fascista é fanfarrão, só lê e vê opiniões iguais à sua, é egoísta (“porque terá o dinheiro todo de ser esbanjado com os refugiados (…) e não connosco?”), “já fica consolado se vir os outros infelizes”, é “um preguiçoso existencial”, é um frustrado, rancoroso — “ele não esquece!” –, é dissimulado (“ainda não chegou o momento”), hipócrita, quer que os outros “tenham menos capacidade do que ele”, “alimenta-se de mentiras”, “acha graça ao azar dos outros”, é “manhoso”, ignorante (“como no 1974” diz, a falar do 1984), cobarde e hipócrita — “amar a pátria mais que a própria vida ou, enfim, pelo menos mais que a vida alheia” –, mesquinho, vaidoso (“o meu principal defeito é ser demasiado bom”), preguiçoso (“trabalho é bom é para o preto”, e vamos para já ignorar o racismo), tem a mania que sabe tudo, é ciumento, desconfiado, mal-disposto e, se mais o autor tivesse encontrado nos manuais de confissão, mais o fascista seria.

Há coisas extraordinárias, como o facto de ser ao mesmo tempo fanfarrão e calculista, simplório e manhoso, vaidoso e dissimulado. Há, ainda, prodígios de inventividade, que só a custo um cérebro pouco puritano terá conseguido classificar como defeitos: o fascista, por exemplo, diz muitos palavrões e “vê muita pornografia” — como diria o autor, “sic, estas coisas não se inventam!”.

O leitor mais incauto, ainda virgem quanto à maldade do mundo, diria que só faltava ao fascista, que já se alimenta normalmente de mentiras, comer criancinhas ao pequeno-almoço. Desengane-se, que não faltam intenções semelhantes: além de só se rir com “imaginar alguém a ser pisado, maltratado, espezinhado”, de sonhar com “um mundo em que ninguém tivesse talento”, de lhe custar “a diferença, seja ela qual fora”, este monstro ainda anseia por um mundo em que os outros são “aniquilados sumariamente” e até quer descobrir a cura para o cancro “apenas para de seguida poder negar a cura àquela cambada de totós” [as pessoas].

E se um bem intencionado leitor quiser encontrar virtudes no comportamento desta diabólica figura, se modestamente pensar “bem, pelo menos é sincero e convicto”, desengane-se: é que a preguiça existencial não é bem existencial e o racismo é menos claro do que parece. O fascista, na verdade, não acredita em nada, quer é ser beneficiado. Parece que afinal estávamos a brincar, e o fascista não é bem isto: apenas achou que ser cobarde e arrogante era a melhor maneira de ser beneficiado.

Esta, no entanto, não é a parte mais engraçada na caracterização do fascista. É que o fascista, na aceção de Rui Zink, não tem só defeitos, tem também maus argumentos. Argumentos, aliás, que não sabe defender. Ele, aliás, nem tente defendê-los, porque a rede apertada de Rui Zink apanha logo as suas contradições. E o fascista, como já vimos na sua caracterização psicológica, é um poço de contradições. Nada do que ele diz é ofensivo, mas está sempre a queixar-se de ser ofendido. “Mesmo quando foge aos impostos, vocifera contra quem foge aos impostos”. Sente-se honesto, “mesmo quando acabou de endrominar uns estrangeiros”. Caso o leitor não perceba a contradição, Zink arranja uma mais clara: “è contra a diferença, mas escandaliza-se que não lhe reconheçam o direito à diferença” (já nós reconhecemos o direito à falta de gramática).

Num caso normal, diríamos que a má prática não invalida a teoria. Se o fascista clama pela honestidade mas não é honesto, não é a honestidade que passa a estar errada. Este, no entanto, não é um caso normal. Rui Zink escreveu um livro, se assim se pode dizer, de ficção. As personagens não são reais. Diríamos, assim, que seria um pouco absurdo desmascarar as contradições que ele próprio criou. Se o fascismo, no geral, é contra a diferença mas quer ser tratado como diferente, o caso passa (mesmo que a ideia do fascista seja denunciar a contradição de quem alardeia a diferença mas não a admite). Agora, as contradições de Rui Zink são incrivelmente específicas. Por que motivo não é “ele a tocar guitarra (a guitarra que ele nunca aprendeu a tocar, mas isso agora não interessa nada) no palco?”. Não gosta que o pisem. “Estranhamente, quando é ele a pisar, nunca lhe dói”. Poderíamos dizer que são apenas piadas, com o objetivo de mostrar a diferença entre a forma como o fascista trata os outros e a forma como acha que deve ser tratado. No entanto, há contradições mais esquisitas. “Se vier um camião desgovernado na sua direção com o sinal verde para os peões, o bom fascista erguerá alto e bom som a sua poderosa voz e dirá: “Ó chefe, calmex! Abrande aí, que é a minha vez de passar!” Perguntamo-nos: o que faria o mau fascista, ou mesmo o não fascista de todo? Teria de morrer em nome da coerência, para mostrar que não cedia no seu apoio aos sinais de trânsito? Ou perceberia que, por não querer ser atropelado, devia agora abraçar a causa da anarquia rodoviária? O fascista é contra o acordo ortográfico, mas escreve com erros e contra o aborto menos “no caso de a sua namorada, caso a tenha, lhe aparecer com a má notícia de que está de esperanças”. Claro que, neste caso, vemos que é apenas uma hipótese académica — o fascista nunca tem namorada, por isso é que vê muita pornografia.

Estas contradições imaginárias não são o único problema dos argumentos fascistas. Há muito mais na paleta imaginária. Veja-se como o fascista defende que Salazar não era fascista. “Salazar era muito diferente de Hitler e de Mussolini. Para começar, Hitler falava Alemão e Hitler italiano. Ora, Salazar não falava Alemão nem Italiano.” Claro que o nosso cérebro boçalizado é que não percebe que esta é só uma maneira subtil de ridicularizar os académicos que salientam as diferenças entre o Regime de Salazar e os de Hitler ou Mussolini, particularmente aqueles que defendem o fascismo como especificamente italiano e o nazismo como especificamente Alemão. Mas mesmo neste caso, parece-nos desnecessário repetir a piada. “Para terminar, Mussolini era gordo e careca e Hitler tinha bigode à Charlot. Salazar, embora tivesse cabelo, não usava bigode”. E ainda “Salazar não comia tagliatelle nem sauerkraut”.

É costume dizer que cada um se mede com quem acha que consegue. Se isto for verdade, Rui Zink é um exemplo de modéstia. Nada de analisar os discursos de Salazar ou Mussolini, Schmitt, Evola, Manoilesco, José Antonio Primo de Rivera… Andaram esses peralvilhos a escrever para quê? O fascismo está naqueles que defendem Salazar nestes termos “Salazar não enriqueceu. A prova é que não deixou nada aos filhos nem pôs a empresa em nome da mulher”, ou que definem politicamente correto como “a gente não poder chamar maricas aos maricas”. Que se enredam nas suas histórias capciosas — “Que culpa tenho eu de ter amigos e o gajo que ia a fugir de nós (feito cobardolas) não ter? Ah, morreu? Não posso ter sido eu (…) Pois se eu nem sequer estava lá. Ah, fomos filmados? Ó senhor doutor juiz, isso é uma inegalidade” — que dizem das condições dos escravos “As condições talvez não fossem as melhores, mas os lugares na Ryanair e na Easyjet também são apertados” e isto quando não ficam simplesmente assombrados e emudecidos diante da oposição. Aí recorrem à tautologia — “O bem do povo é…”; “o bem do povo é…”; “o bem do povo é o bem do povo” — , engasgados, e à afirmação dogmática: “A nossa colonização era boa.” Porque? “Porque era portuguesa”, e nós “somos os melhores do mundo porque sim”. As teses são verdade “porque ele o diz”.

O fascista de Rui Zink não justifica nada, não tem argumentos para nada. No entanto, isto não é sinónimo de uma simples má-fé. Rui Zink não está interessado em discutir ideias porque, para ele, o fascismo está para lá das ideias. Na versão erudita, é “a versão exacerbada desse movimento de encolhimento social” e, na versão para burros, isto é, fascistas, “o mal”. Zink defende que o fascismo sempre existiu, não como doutrina, mas como o conjunto de motivações primárias e maléficas que está dentro de cada um. “O ressentimento, o sentimento de frustração, até mesmo o ódio, são humanos”, explica-nos ele. Mais, são fascistas, é isso que é o fascismo. De cada vez que um empregado de mesa exaspera com uma rapariguinha indecisa, o fascismo vive. E é esta equiparação entre o fascismo e o mal que dá a esta obra uma encantadora aura piedosa. Em certos momentos, o Manual do Bom Fascista torna-se um livro de teologia.

Há um momento interessante, “à Stephen King”, como lhe chama o autor, em que nos é explicado que o mal, enquanto mal, apanha os maus, os mais fracos. E que, por isso, o fascismo pode crescer, mas está sempre condenado à derrota e às maiores velhacarias. Os fascistas serão sempre, mesmo antes de abraçarem o fascismo, os mais fracos e os piores da sociedade (embora seja difícil, neste contexto, explicar como eram maus antes de serem fascistas). Noutros momentos, porém, a subtileza escolástica é ainda maior. O fascismo não pode ter qualidades, mas se souber que as tem torna-se humilde, o que já seria uma qualidade. Daí que surja esta prodigiosa formulação: o fascista “gostaria que lhe reconhecessem as qualidades que ele sabe não ter, mas que é uma injustiça ele não ter”. Ou, para mostrar que o fascista é racista e dissimulado: “Não que haja mal em ser racista. Mas se o racismo for mau, então de certeza que: eles é que são racistas!”. Consegue, assim, ser racista e chamar racistas aos outros, numa prodigiosa manobra conciliatória, que faria os Jansenistas e o Papa roerem-se de inveja.

Não é, aliás, só neste aspeto que a vocação sintética de Zink se manifesta. Além de um livro religioso, este também é um livro científico, que veste a bata de frenólogo e analisa a mente e o mundo do fascista. A pergunta fundadora é clássica: “O bom fascista tem um sério problema sexual?”, e a resposta mais clássica é: na verdade, os fascistas são traídos pelas mulheres, têm mães possessivas, vivem num mundo inóspito já que o riso os irrita “solenemente”, e até têm certas tendências pedófilas. É demasiado? Não, a prova está na boca de um fascista imaginário: “conheço algumas que até mais novas” — nota, estamos a falar de raparigas de onze anos — “já dão a volta à cabeça a um Homem”. Podíamos dizer que também são inseguros, sobretudo a respeito das mulheres (a ponto de dar “porrada ou assédio”), já que o fascismo vive do medo; mas se o fascista já é um pedófilo no armário, nada do que acumularmos acrescenta alguma coisa.

Não fique o leitor assustado. Há alguma luz no mundo negro dos fascistas. Tememos que não, quando Rui Zink nos avisa que também há fascistas de esquerda. Nós, que julgávamos que pedofilia, racismo ou visualização de pornografia não eram programas ideológicos, começámos por ficar baralhados; doutrinados, esclarecidos sobre as diferenças entre esquerda e direita, foi o espanto que nos assaltou: também a esquerda quer negar a cura do cancro aos doentes? Nada disso, afinal o fascista de esquerda é um simples chato. Um recta-pronúncias a quem a ideologia imuniza de grandes males. Claro que a ideologia traz responsabilidades, e o esquerdista que se quer muito puro e acusa os outros de desvios também se torna fascista; mas apenas porque nos panos alvos a nódoa é mais notória. Zink, aliás, dá uma boa definição daquilo que querem os adversários do fascismo: “melhores salários, mais trabalho, condições de vida condigna”. O mundo não está, portanto, conquistado pelos que querem piores salários, mais desemprego e condições de vida miseráveis; há outra classe, a classe que o fascista mais odeia, que nos pode trazer luz. Para o fascista “talvez seja altura de cortar o mal pela raiz e acabar com as Ciências Humanas, a Bem da Humanidade”. A raiz do mal – ou seja, do Bem — está nas Humanidades. O fascista, aliás, “nunca leu um livro”. A suprema humilhação para ele é que uma mulher não o escolha como namorado, mas sim “outro idiota qualquer, só por contar lérias ou fazê-la rir. Ou pior ainda, “tiver estudos”. Esta valorização dos escritores e do humor, que o fascista odeia “mas apenas porque odeia as coisas que não percebe”, poderia soar um bocadinho snob. “Insulte um escritor” é uma recomendação feita a quem quer ser fascista, a rapariga que lê irrita o fascista e ele anda à procura de totós “com ar intelectual em quem arrear”. Riso e letras. Diz-nos o humorista e professor de letras que “O que tira realmente do sério o bom fascista é a malta letrada. Os intelectuais”. Seria snob, se não fosse heroico. É que acabamos por descobrir que o que irrita verdadeiramente o fascismo é Rui Zink.