Durante décadas, em França, Gabriel Matzneff foi conhecido pelos vívidos relatos que fazia das relações sexuais que mantinha com raparigas e rapazes, sempre menores, de preferência adolescentes — tanto nos seus livros como em entrevistas ou saraus literários. Apesar de naquele país as relações sexuais com menores de 15 serem proibidas por lei, nem por isso foi investigado, muito menos acusado de qualquer tipo de crime de cariz sexual. Em vez disso, foi celebrado pelos pares, chegou a ser condecorado pelo Estado francês, com a medalha das Artes e das Letras, em 1995, e premiado, pela última vez em 2013, ano em que recebeu o Renaudot, um dos mais prestigiados galardões franceses.

Um estado de graça que agora, que uma das raparigas de que abusou escreveu um livro a contar tudo o que ele lhe fez, chegou ao fim. Bastou um dia nas livrarias para “Le Consentement” (“O Consentimento”), de Vanessa Springora, atualmente com 47 anos, começar a fazer estragos: o procurador da República de Paris, Remy Heitz, anunciou a abertura de uma investigação contra o autor, de 83 anos, por “violação cometida contra jovem” com menos de 15 anos de idade.

“Além dos factos descritos por Vanessa Springora as investigações procurarão identificar outras possíveis vítimas que possam ter sofrido infrações semelhantes em território nacional, ou no exterior”, acrescentou ainda Heitz aos jornalistas.

Entretanto, alguns dos seus livros começaram também a ser retirados do mercado pelas editoras que o publicam, com a gigante Gallimard à cabeça, seguida por La Table Ronde, Stock e edições Léo Scheer.

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Este domingo, numa coluna no Journal du Dimanche, Antoine Gallimard explicou o porquê da retirada das livrarias da obra de Matzneff — e do cancelamento do novo livro do escritor francês, que já estava no prelo.  “Quando ouvi falar de ‘Le Consentement’, antes de o livro chegar às livrarias, achei que não ia fazer nada. Mas, para além do debate sobre a qualidade literária do texto, fiquei muito sensibilizado com a leitura do livro de Vanessa Springora. Fez-me perceber os efeitos devastadores da manipulação de um adulto de uma rapariga muito nova. No Diário de Gabriel Matzneff faltava uma parte: a vítima”, escreveu Antoine Gallimard, numa alusão a “Mes amours decomposés” (“Os meus amores decompostos”), que o francês publicou em 1990, consiste no diário que manteve entre 1983 e 1984 (antes de ter conhecido Springora, portanto) e foi um dos títulos agora retirados das prateleiras.

“Senti que a ligação, a tensão entre os seus escritos e a vida real se tornava cada vez mais problemática e que o espírito de transgressão por si só não podia justificar a edição”, continuou. “Considero-o um escritor mas sempre me senti envergonhado por o Diário ser composto de factos reais que dizem respeito a pessoas vivas.”

Apesar de, em “Le Consentement”, Vanessa Springora, recentemente contratada para dirigir as edições Julliard, se referir ao famoso escritor apenas pelas iniciais, em entrevistas a autora não se tem coibido de chamar o seu abusador pelo nome. Quando se conheceram, Vanessa tinha apenas 13 anos, um ano depois começaram a relacionar-se sexualmente — ela tinha 14, Gabriel já tinha passado dos 50.

“Conheci-o em 1986. Ele era conhecido. Houve um colapso de todas as instituições: escolas, polícia, hospitais… É isso que é incrível num ativista pedófilo que publicou textos neste sentido e que se gaba disso”, disse ao Le Parisien Springora, que se considera vítima da “hipocrisia de toda uma época”.

Aos catorze anos, não é suposto seres esperada por um homem de cinquenta quando sais da escola, não é suposto viveres num hotel com ele, não é suposto estares na cama com ele e com o seu pénis na boca à hora do lanche. (…) A partir desta anormalidade, eu construí de alguma forma a minha nova identidade. Mesmo assim, quando ninguém se surpreende com a minha situação, ainda tenho a intuição de que o mundo à minha volta é que não está certo”, acusa a autora em “Le Consentement”, um livro-choque a que Gabriel Matzneff já reagiu, numa declaração enviada ao L’Express. “Não, este não sou eu, isto não foi aquilo que vivemos juntos e tu sabes”, escreveu o francês, interpelando diretamente Springora, que acusa de o retratar como “um pervertido, manipular e predador” — tudo coisas que garante não ser. Diz que viveu com a então adolescente, de apenas 14 anos, um “amor excecional” e que não “merece o retrato feio que ela pintou dele”.

“Les moins de seize ans” (“Os menores de 16 anos”), de 1974, e “La prunelle de mes yeux” (“A maçã dos meus olhos”), de 1993, são apenas dois exemplos da obra literária de Gabriel Matzneff, desde o lançamento de “Le Consentement” unanimemente considerada pedófila. O já referido “Mes amours decomposés”, o seu diário, é outro. E foi a propósito dele que Matzneff foi convidado do “Apostrophes”, o famoso programa de entrevistas semanais da France 2 que Bernard Pivot apresentou durante 15 anos e que, coincidentemente, acabou escassos meses depois.

O apresentador, hoje presidente da Académie Goncourt, responsável pelo mais prestigiado prémio de literatura atribuído no país, já reagiu à polémica no Twitter. “Nos anos 70 e 80, a literatura vinha antes da moralidade; hoje, a moralidade vem antes da literatura. Moralmente, é um progresso. Somos mais ou menos os produtos intelectuais e morais de um país e, acima de tudo, de uma época”, escreveu o jornalista, de 84 anos.

Há exatamente três décadas, em 1990, Bernard Pivot limitou-se a ler. Melhor, a citar: “(…) A conquista em três dias consecutivos de três desconhecidas, duas das quais são virgens, Marie-Agnès, Aude e esta Brigitte S., com quem fiz amor de todas as formas e quase sem interrupção” declamou, instantes depois de gabar, entre sorrisos, o gosto do convidado por “miúdas”.

Perante o público e restantes convidados, que despudoradamente riem à gargalhada da descrição, a escritora, jornalista e documentarista canadiana Denise Bombardier foi a única a insurgir-se. “Acho que vivo noutro planeta, porque venho de um continente onde não acreditamos numa série de coisas. Para mim, o senhor Matzneff é lamentável. Aquilo que não compreendo é como é que neste país — e não o compreendo porque a literatura tem uma certa aura aqui — a literatura, entre aspas, serve de álibi a este tipo de confidências. Porque aquilo que o senhor Matzneff nos conta no seu livro, que é muito aborrecido, porque a repetição é extremamente aborrecida, o livro acaba por nos cair das mãos…”, começou por dizer Bombardier, que nestes dias tem sido celebrada nos media canadianos por ter sido a primeira a ousar chamar “pedófilo” ao aclamado escritor francês.

Visivelmente incomodada, nem quando ele tentou educadamente e em voz pausada interrompê-la — “Cara senhora, não seja agressiva, porque essa agressividade…” —, Denise Bombardier refreou o discurso. “O senhor Matzneff conta-nos que sodomiza meninas de 14 ou 15 anos, que essas meninas são loucas por ele. Todos sabemos que as miúdas podem ficar loucas por um homem, um senhor, que tem uma aura literária; além disso sabemos que os velhos senhores atraem as crianças com chocolates. O senhor Matzneff atrai-las com a sua reputação. Aquilo que não sabemos é como é que estas meninas de 14 ou 15 anos, que foram não apenas seduzidas mas que sofreram aquilo a que chamamos nas relações entre adultos e crianças um abuso de poder, ficaram depois disto. Para mim, estas meninas murcharam, e a maior parte delas terá murchado para o resto dos seus dias”, concluiu a escritora canadiana, então com anos 49 anos, hoje com 78.

No fim, foi Matzneff, que minutos antes já tinha explicado, de forma jocosa, o porquê de preferir as raparigas mais jovens — “Prefiro ter na minha vida pessoas que ainda não endureceram, que são mais simpáticas. Uma rapariga muito nova é muito mais gentil, mesmo que também se torne muito, muito rapidamente histérica e igualmente louca quando for mais velha” —, quem teve, a última palavra. Mas apenas no programa: “Felizmente para si sou um homem cortês, porque acho verdadeiramente insensata a forma como está a falar. Você não leu o meu livro, folheou-o. No livro há encontros amorosos, de sedução recíproca, sou o oposto do macho que força quem quer que seja à sua vontade. Não há uma rapariga de 14 anos, há raparigas de dois ou três anos mais que já estão na idade de viver o amor. Elas apaixonam-se por um homem que não é um monstro de feio, que é relativamente letrado, que é bem educado, que é gentil e que possivelmente as faz muito felizes. E eu proíbo-a de fazer esse tipo de julgamento”.

Agora, 30 anos depois, Matzneff, que sempre fez questão de se auto-intitular um “philopède“, nunca um pedófilo, viu alguns dos seus principais livros retirados do mercado e recebeu a notícia de que o seu mais recente manuscrito não vai chegar a ser publicado, pelo menos não pela Gallimard.

Não será ainda esta a última palavra: para além da investigação criminal em curso — que no caso de Vanessa Springora, prescrito, sabe-se já que não resultará em qualquer condenação, mas que noutros poderá não ser bem assim —, Gabriel Matzneff poderá perder já o subsídio mensal que o ministério da Cultura francês lhe atribui todos os meses, como a outros escritores, idosos ou doentes.

(Artigo atualizado segunda-feira, 13 de janeiro, com a informação sobre a retirada dos livros do escritor do mercado)