O Estado português foi condenado a pagar uma indemnização de 13 mil euros à família de um dos estudantes que morreram na sequência de uma praxe na praia do Meco, em dezembro de 2013.

A decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) foi divulgada esta terça-feira através de um comunicado.

O TEDH analisou a queixa de José Soares Campos, o pai de Tiago Campos, um dos estudantes da Universidade Lusófona que morreram depois de serem levados pelas ondas do mar durante uma ação de praxe na praia do Meco.

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José Soares Campos alegou que “a morte do seu filho tinha sido causada pela falta de um enquadramento legal que regule as atividades de praxe nas universidades portuguesas e queixou-se de que a investigação às circunstâncias da morte do seu filho não tinha sido eficaz”.

O TEDH concluiu que, com efeito, a investigação não satisfez os requisitos da legislação europeia e que “uma série de medidas urgentes podiam ter sido tomadas imediatamente após a tragédia”.

Porém, o tribunal europeu não considerou que exista um vazio legal relativamente à praxe, uma vez que a legislação portuguesa inclui “provisões criminais, civis e disciplinares desenhadas para evitar, suprimir e punir ofensas que coloquem em risco as vidas das pessoas ou a sua integridade física ou psicológica”.

“Reconhecendo a inegável natureza trágica do presente caso, o Tribunal não concluiu que o Estado tenha falhado as suas obrigações positivas à luz do Artigo 2 e por isso pudesse ser responsabilizado pela morte do filho do Sr. Soares Campos”, lê-se na nota divulgada pelo tribunal.

O caso remonta a dezembro de 2013, altura em que Tiago Campos e outros seis estudantes da Universidade Lusófona se dirigiram à praia do Meco para uma praxe. Entre eles estava João Gouveia, o “dux” (líder da praxe), que acabaria por ser o único sobrevivente daquela noite.

Na madrugada de 15 de dezembro de 2013, os seis estudantes que estavam a ser submetidos à praxe foram arrastados pelas ondas do mar, acabando por morrer. Os cadáveres foram encontrados nos dias seguintes.

Logo a 16 de dezembro, após a descoberta do corpo de Tiago Campos, foi aberto um inquérito às circunstâncias da morte dos jovens, que viria a ser arquivado em julho de 2014.

O caso seria reaberto em outubro de 2014, com o “dux” João Gouveia a ser constituído arguido, mas em março de 2015 o tribunal decidiu não enviar o caso para julgamento. O tribunal da Relação de Évora concordou: as vítimas eram adultas e não haviam sido privados da sua liberdade durante a praxe, pelo que não havia responsabilidade criminal sobre João Gouveia.

Em 27 de maio de 2016, o pai de Tiago Campos apresentou uma queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem com a alegação de que Portugal tinha violado o Artigo 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem — o artigo que prevê o direito à vida.

“Tive de apresentar queixa contra o Estado para que alguém independente me desse razão”

O pai de Tiago Campos e autor da queixa apresentada ao TEDH, José Soares Campos, disse à Rádio Observador estar contente por finalmente ver o seu lado reconhecido por uma instância de justiça.

“Fiquei contente, porque alguma instância deu-nos razão a nós. Em primeiro lugar, tenho de dizer que isto é um processo de todos nós, não é só meu. Está o meu nome, mas é dos seis pais dos seis jovens que morreram. Estou feliz, mas triste ao mesmo tempo, porque tive de recorrer ao Tribunal Europeu, apresentar uma queixa contra o Estado, para que alguém independente me desse razão. Estava a olhos nus tudo o que se passou”, afirmou José Soares Campos.

“Nós, pais, estamos há três anos à espera dos processos cíveis. Sempre disse que as pessoas estavam à espera deste veredicto. Porque os processos cíveis nunca demoram tanto tempo assim, três anos, mas é mais uma acha para a fogueira”, acrescentou.

Ainda assim, é pouco para as famílias. “Tudo o que está em causa, a morte de seis jovens, é muito pouco. Dá-nos algum alento para continuarmos, mas estamos há seis anos em sofrimento, e todas as provas que estavam evidentes no processo, todas elas foram destruídas. Só tenho de esperar pelos processos cíveis, para ver o que é que nos vai dizer o juiz.”

Investigação foi ineficaz, conclui TEDH

Na nota de imprensa divulgada esta terça-feira, o tribunal sublinha que, “para uma investigação ser eficaz, as autoridades tiveram de dar todos os passos razoáveis ao seu alcance no momento para proteger as provas relacionadas com o incidente”.

Depois de sublinhar que a investigação foi iniciada no dia seguinte à morte de Tiago Campos, o tribunal destaca que o Ministério Público devia ter tomado imediatamente pelo menos seis medidas urgentes:

  • “A casa onde as vítimas estavam podia ter sido protegida e ter tido o acesso barrado a todas as pessoas não relacionadas com a investigação, de modo a evitar interferências com as provas e perda das provas e para evitar a limpeza do apartamento no dia 9 de janeiro de 2014. O tribunal ficou particularmente chocado com o facto de J. G. [referência a João Gouveia] e os seus familiares, as famílias das vítimas e terceiros terem tido acesso ilimitado à casa”;
  • “Apesar de a inspeção do local de um incidente dever ser, normalmente, levada a cabo assim que possível, os exames forenses da casa não tinham sido feitos até 11 de fevereiro de 2014. Contudo, os itens na casa e na praia do Meco tinham potencialmente informação importante e sensível relacionada com as pessoas em causa. Apreender esses itens e colocá-los sob custódia para serem investigados teria evitado qualquer interferência por uma série de indivíduos e evitado que a polícia tivesse de os reclamar depois”;
  • “As roupas usadas por J. G. na noite da tragédia, e o seu computador, poderiam ter sido apreendidos imediatamente e sujeitos a exames forenses. Não foram apreendidos até 7 de março de 2014”;
  • “Podia ter sido feita uma reconstituição dos acontecimentos na praia com o envolvimento de J. G. assim que possível após os acontecimentos. Porém, tal não aconteceu até 14 de fevereiro de 2014”;
  • “Não houve nenhuma explicação para o facto de as autoridades não terem imediatamente tomado nota de declarações testemunhais de pessoas presentes nas proximidades, incluindo os vizinhos e as pessoas responsáveis pela casa onde as famílias tinham ficado alojadas. Estas pesoas não prestaram declarações até aos dias 8 e 10 de fevereiro de 2014, ou seja, um mês e meio depois dos acontecimentos”;
  • “A investigação não começou a sério até ter sido assumida pelo Ministério Público de Almada, mais de um mês depois dos acontecimentos”.

Consequentemente, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem concluiu que a investigação criminal à morte das vítimas não respeitou os requisitos procedimentais associados ao cumprimento do Artigo 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Relativamente à outra parte da queixa de José Soares Campos — sobre o eventual “vazio legal” em relação às atividades de praxe —, o TEDH concluiu que a legislação portuguesa atual é suficiente para enquadrar crimes praticados contra a integridade física ou contra a vida, tenham ou não sido cometidos em contexto da praxe académica.

O Estado português ficou agora condenado a pagar 13 mil euros de indemnização a José Soares Campos e ainda 7.188,51 euros relativos aos custos com o processo.