Título: Frentes de Fogo
Autor: A.M. Pires Cabral
Editora: Tinta da China
Páginas: 90

É de saudar que um autor com o peso e a verve de A.M.Pires Cabral, ele que nos habitou em todos os géneros a valorizar a sátira e o riso, publique agora um volume de poemas feito de engenho e graça, quase sempre cruzada de desgraça — a da passagem do tempo. Livro que, logo nos poemas iniciais, a propósito do sempre condenado (porquê?) uso de adjetivos, sente necessidade de semear uma ironia: “Espero que não pesem, senhores, demasiado/ na melindrosa balança de vossas senhorias”.

Frentes de Fogo, depois de anunciar o fecho da “roda”, observa com timbre melancólico: “para que fui agora mexer nisso”. “Nisso” quer dizer “coisas que estavam sossegadas/ em caixas de arquivo morto,/tirando partido do silêncio”.  É um gesto de arrependimento, sim, a beneficiar o leitor, que assim pode tirar proveito estético e humano desta partilha contrariada. Pode recordar com Pires Cabral personagens (francesas) da sua infância,  combater com ele fantasmas através das armas dos manguitos e das carantonhas, acompanhá-lo numa auto-derisão e numa lucidez inclementes (“Não tem nada que saber, amigos:/os dias não são nossos/e temos de pagar para estar neles (…)”), segui-lo na recusa de lamentos prescindíveis “(…) Nada de pieguices./ Sigamos as estrelas”), assistir aos seus ajustes de contas com o divino (de rasgo o poema “Deus Mudou-se Há Tempos”).

Entre um ocasional uso desnecessário de formulações roçadas como “meter a viola no saco” e a frequência batida de temas como o da inutilidade da poesia, o leitor encontra um poema maior, deslocado aqui, neste projeto de revisitação privada, pela sua abstração: “As Crianças Doentes”. Uma sequência de versos com remates potentes:

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“(…) Na verdade, as crianças doentes
não estão ao colo das mães.
Estão no rosto das mães, vincadas nele
como mascaras de zarcão no rosto
de um palhaço (…)”

Abandonada a revisitação do histórico pessoal, o poeta percorre um trilho no qual se cruza com castanheiros, salgueiros, tílias, oliveiras, ciprestes, nogueiras. Algumas árvores são evocadas como telhados das primeiras aventuras da juventude, hoje transformadas pelo pragmatismo dos homens, outras são trazidas para serem catalogadas, com felicidade, por um verbo particular.  E há as árvores mortas, a aguardar o beijo das motosseras. E os eucaliptos, que são nomeados apenas para, de uma forma assumidamente inesperada e violenta, criticar a arrogância da Europa perante a lavoura, pulsante atividade do seu povo.

A terceira parte do livro, “Mister P”, é a punch line perfeita para o testamento: tem tanto de brutalidade e de crueza humanas como de divertido. Apesar da gravidade dos temas, em grande parte do livro sente-se senão um intuito humorístico um certo “espírito”, uma sabedora vocação para construir a poesia sem solenidade, um pouco à maneira de um Vasco Graça Moura, para lembrar um poeta da mesma geração, e com um mesmo conhecimento alargado dos laboratórios do género poético. Um tom raro na poesia nacional. Mesmo com uma seleção com um plantel que inclui nomes tão distintos e distantes como Nicolau Tolentino, Alexandre O’Neill ou mesmo um Assis Pacheco, e mesmo com a boa jocosidade de vários escribas de gerações recentes, o “cânone” da poesia portuguesa valoriza muito mais a solenidade do que o sentido da leveza, ainda visto como condimento que menoriza. O’Neill brincava com o assunto, chamando-se de “jongleur” para não ofender as almas doutorais das artes literárias. As praticantes, as leitoras, as académicas, as tertulianas, outras.

Permitam-me a referência televisiva a vossas senhorias. “Mister P” é como se a personagem Norman de “O Método Kominsky” resolvesse escrever um livro de poemas no seu habitual tom desagradável sobre o seu envelhecimento e o do seu amigo Sandy. Há aqui poemas chamados “Quedas, Querem-se Quedas”, “Quando Nada Me Dói”, “No Dia em que a Sanita se Tornar” e “Súplica às Meias, etc.” (em “Gaveta do Fundo”, de 2013, A.M. Pires Cabral dirigiu-se aos óculos). O recado às meias, aos sapatos e aos atacadores é um mimo burlesco que começa assim:

“Meias, não me dificulteis o acto de calçar-vos.
Aceitai com benevolência em vós os meus pés
precisados de calor e refúgio (…)”.

Bem negro este chiste. Para arrancá-lo é preciso valentia e capacidade de,  num género sacralizado, saber apontar a contingência de tudo.

Nuno Costa Santos é escritor e argumentista. É autor de livros como “Céu Nublado com Boas Abertas”, “Morrer é Não Ter Nada nas Mãos” e “A Mais Absurda das Religiões” e de peças de teatro como “Mundo Distante” e “Em Mudanças”. Criou uma personagem chamada melancómico (atualmente na Antena 3). É diretor da revista literária Grotta e do Encontro Arquipélago de Escritores.