Quando um concerto praticamente começa com a plateia a cantar os parabéns à cabeça de cartaz, sabemos de antemão que os índices de devoção estão altos, que o público está com os músicos e a noite está ganha à partida. No caso de Angel Olsen, sabemos mais uma coisa: que tamanha paixão é inteiramente merecida.
Que me perdoem os amantes da folk lacrimosa, das guitarras acústicas choninhas, das letras sensíveis e das emoções frágeis, mas o que Olsen fez no último par de discos, quando abandonou a folk em detrimento de canções explosivas, épicas, repletas de drama, curvas e contra-curvas, quando começou a usar a sua voz não apenas para chorar amores perdidos mas também para berrar, insultar e vociferar – o que Angel Olsen fez no último par de discos, dizia, é merecedor de todo o amor que tenhamos para dar.
All Mirrors, o mais recente tomo dessa magnífica aventura sónica que constitui a discografia de Olsen, foi o cerne do concerto de ontem e com justiça: lançado no ano passado, All Mirrors confundiu ainda mais quem já se tinha sentido confundido com My Woman – este marcava o momento em que Olsen soltou definitivamente a franga e se atirou ao rock ruidoso à anos 70 e, inclusivamente, à pop, como o êxito de “Shut up, kiss me” demonstrou. A guitarra era a rainha, o ruído e a libertação os ases de trunfo – mas All Mirrors é uma guinada ainda mais radical, um terço épico de cordas e sintetizadores, um terço canção de charme onírica (mas com as cordas em fundo) e o resto a meio entre estes dois extremos.
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As cordas – um violino e um violoncelo – estiveram lá na noite de quarta-feira (no Capitólio, em Lisboa, onde o concerto se repete esta quinta, antes de chegar ao Porto, na sexta-feira, no Hard Club), bem como o sintetizador, numa primeira parte ocupada exclusivamente por All Mirrors, uma sequência admirável que começou em “New love cassete”, passou pela beleza etérea de “Spring”, pela explosividade de “Lark” e terminou na extrema delicadeza de “Tonight” (em que Olsen mostrou mais uma vez ter um espanto de voz, onde cabem todas as emoções humanas).
“Lark” e “All mirrors” (a canção) foram os primeiros singles de All Mirrors (o disco) e, na sua explosividade, prenunciavam um disco diferente, sempre com o pé no acelerador, o tipo de disco indicado para atirar cadeiras pela janela do hotel (sem a abrir, atenção); ao vivo cumprem o que prometem e comportam-se como duas granadas ansiosas por explodir mas que sabem conter-se até ao momento exato.
Mas talvez a enormíssima vitória de All Mirrors resida na forma como insidiosamente e com o tempo as canções mais lentas largaram o lugar secundário que lhes atribuímos numa primeira escuta e revelaram a sua imensa e madura beleza; “Spring”, por exemplo, é um espanto ao vivo e essa força da natureza que é a voz de Olsen aguenta tudo, nunca se perde no maralhal de instrumentos (o piano, o baixo, a guitarra, as cordas). É admirável como numa canção como “Tonight”, feita de gaze, nenúfares e dentes-de-leão, Olsen consegue conjurar toda a atenção da plateia.
É só depois de “Tonight” que Olsen, que leva uma carreira inteira a olhar exclusivamente para a frente, parou para olhar para trás, indo buscar um tema a cada edição anterior – e aqui começou a grande injustiça da noite, porque neste momento Olsen já tem obra suficiente para ficar três horas em palco (inclusivé ela brincou com a ideia de que na Europa se espera que os músicos façam sempre concertos de três horas).
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A esta hora ainda muito boa gente, honesta, higiénica, bem cheirosa, que paga os seus impostos e educa bem os seus filhos, poderá estar a perguntar-se porque raio não houve lugar a “Forgiven/forgotten”, só para dar um exemplo. Mas não foi essa a opção de Olsen: de Half way home tocou “Acrobat” (talvez a canção menos conseguida da noite, porque a transposição para modo banda não funcionou bem), a Phases repescou a ótima “Sweet dreams”, de My Woman trouxe a inevitável (e extremamente bem recebida) “Shut up kiss me” e de Burn Your Fire For No Witness escolheu a lindíssima “Windows” (que, aliás, se atentarmos bem no uso que faz de sintetizadores já prenuncia o que viria a ser o futuro).
Não é certo se a opção de dividir o concerto em duas partes seja a melhor – talvez Olsen tenha achado que era difícil criar um alinhamento em que as canções anteriores a All Mirrors se fundissem de forma harmoniosa com as do disco mais recente, muito marcadas pela presença dos sintetizadores e das cordas. Ou então quis apenas isolar All Mirrors para lhe dar o devido destaque. E nisso terá razão: All Mirrors é um disco extraordinário, possuído por uma espécie de gigantismo emocional que casa admiravelmente com a sua imensa paleta sónica. É um disco de rainha no topo do jogo.
De modo que por mim era assim, Angelinha: para o ano à mesma hora cantamos-te os parabéns outra vez – e desta vez tocas “Forgiven/forgotten”.