Ao fim do oitavo dia de julgamento, o processo de impeachment de Donald Trump continua centrado numa única questão: irá o ex-conselheiro de segurança nacional John Bolton ser chamado a testemunhar (juntamente, provavelmente, com outras novas testemunhas), arrastando o julgamento por tempo indefinido, ou irá Donald Trump ser absolvido pela maioria republicana no Senado já nesta sexta-feira?
A questão tem dominado de tal forma o processo ao ponto de ofuscar o que se tem passado durante as várias horas diárias que os senadores passam no interior da sala do Senado a ouvir os argumentos da acusação e da defesa. Depois de cada lado ter tido três dias para expor os seus argumentos iniciais, a sessão desta quarta-feira foi a primeira de duas dedicadas às perguntas dos senadores, tendo-se prolongado até às 23h de Washington (4h da manhã em Lisboa) com a questão das testemunhas a marcar o dia — e com um dos advogados de Donald Trump a desvalorizar as alegadas pressões sobre a Ucrânia, sublinhando que Trump considerou que tinha de garantir que era reeleito em nome do “interesse público”.
Porém, com o Senado profundamente dividido nesta matéria entre republicanos e democratas, as perguntas foram feitas por cada bancada quase sempre com o único objetivo de dar oportunidade a cada equipa de continuar os argumentos que têm vindo a ser apresentados ao longo dos últimos dias — e poucas foram as questões colocadas para pedir efetivamente esclarecimentos da parte dos congressistas democratas e dos advogados de Trump.
Sobre toda a sessão pairou sempre a dúvida sobre o testemunho de Bolton — numa semana em que ficou provado que se há depoimento capaz de alterar a mais que provável absolvição de Donald Trump é precisamente o de John Bolton. A possibilidade de testemunho do ex-conselheiro de Trump já está inclusivamente a fazer vacilar alguns republicanos, que ponderam votar ao lado dos democratas e chamar Bolton a testemunhar perante o Senado.
Bolton está no centro do processo desde o último domingo, dia em que o The New York Times publicou o conteúdo de um manuscrito de um livro que Bolton pretende publicar em breve e no qual o ex-conselheiro de Trump revela que o Presidente dos EUA bloqueou o financiamento da ajuda militar prestada pelos norte-americanos à Ucrânia e decidiu só descongelar o apoio, no valor de 391 milhões de dólares, quando a Ucrânia anunciasse investigações aos negócios de Hunter Biden, filho de Joe Biden, naquele país. Este é o caso que levou os democratas na Câmara dos Representantes a acusar Trump de abuso de poder e de obstrução do Congresso.
Impeachment. Ex-conselheiro confirma em livro que Trump tentou pressionar Ucrânia a investigar Biden
John Bolton tem sido uma testemunha desejada pelos democratas desde o início, mas nunca foi ouvido porque Donald Trump proibiu os funcionários e ex-funcionários da Casa Branca de participar no inquérito de impeachment com o argumento de evitar que informação confidencial fosse revelada.
Desde o início da fase de julgamento no Senado, os democratas têm tentado que o Senado chame novas testemunhas — incluindo John Bolton — para depor perante os senadores, mas a maioria republicana bloqueou os esforços nesse sentido. Porém, depois da publicação da notícia do The New York Times, vários senadores republicanos passaram a ponderar votar a favor de chamar John Bolton a depor — ao ponto de, na terça-feira, o líder da bancada republicana, Mitch McConnell, reconhecer que não tem os votos suficientes garantidos para bloquear definitivamente a convocatória de novas testemunhas e votar de imediato a absolvição de Donald Trump na sexta-feira.
Na sessão desta quarta-feira, a primeira pergunta levantada pela bancada democrata foi precisamente neste sentido, com o líder da minoria, Chuck Schumer, a perguntar à acusação se fazia sentido levar a cabo um julgamento justo sem ouvir o testemunho de John Bolton. “A resposta curta é não“, respondeu Adam Schiff, o congressista democrata que lidera a acusação.
Ao longo do dia, nos corredores do Senado, os republicanos mostravam não perder a esperança na rápida absolvição de Donald Trump. Mas, já antecipando que o voto de sexta-feira poderá não correr como o Partido Republicano espera, vários senadores e membros da defesa de Trump deixavam o aviso: se os democratas chamarem testemunhas (nomeadamente John Bolton), os republicanos também o vão fazer — provavelmente chamando Joe Biden ou Hunter Biden.
No interior da sala do Senado, a possibilidade de chamar novas testemunhas surgiu em várias das perguntas submetidas por escrito pelos senadores aos dois lados.
Patrick Philbin, um dos advogados de Trump, argumentou que chamar mais testemunhas poderia abrir um precedente perigoso, uma vez que se corria o risco de transformar o Senado num órgão de investigação criminal. Antevendo, a partir do que já foi divulgdo pelo The New York Times, que o testemunho de John Bolton será prejudicial à causa de Donald Trump, a defesa do Presidente tem utilizado todos os argumentos de que dispõe para evitar que o ex-conselheiro seja chamado.
O principal argumento é o de que chamar novas testemunhas iria fazer arrastar o julgamento por vários meses. Jay Sekulow, advogado de Trump, disse esta quarta-feira que o objetivo das sessões no Senado não é discutir a convocatória de testemunhas.”Eu quero Adam Schiff, quero Hunter Biden, quero Joe Biden, quero o denunciante [que deu origem à investigação]. Se tivermos toda a gente que queremos, vamos estar aqui muito tempo.”
Ao longo de dezenas de perguntas e respostas, a possibilidade de chamar novas testemunhas foi o assunto mais recorrente, sem que democratas e republicanos cheguem a um consenso. Nas declarações aos jornalistas nos intervalos, multiplicavam-se os apelos dos democratas para que Bolton seja chamado e as críticas dos republicanos à tentativa de prolongar o julgamento.
Foi também durante a sessão de quarta-feira que se conheceu o conteúdo de uma carta enviada pela Casa Branca — num último esforço institucional de desacreditar o testemunho de John Bolton—, ao advogado do ex-conselheiro de Trump com o objetivo de impedir a publicação do conteúdo do livro. Bolton enviou uma cópia do manuscrito à Casa Branca como parte de um processo habitual de revisão de livros escritos por funcionários e ex-funcionários do governo — uma vez que é necessário confirmar que não existe informação classificada e confidencial no livro.
WH LETTER to Bolton lawyer claims his book as information classified at Top Secret level. Bolton and lawyer had maintained they didn't believe the draft contained any classified info. pic.twitter.com/TM395h7GHe
— Zeke Miller (@ZekeJMiller) January 29, 2020
“Com base na nossa avaliação preliminar, o manuscrito parece conter uma quantidade significativa de informação classificada. Também parece que alguma desta informação classificada é de nível ‘TOP SECRET'”, o que significa que a sua divulgação “pode causar danos excecionalmente graves à segurança nacional“. “Ao abrigo da lei federal e dos acordos de não-divulgação assinados pelo seu cliente como condição para obter acesso a informação classificada, o manuscrito não pode ser publicado ou divulgado sem que a informação classificada seja apagada”, lê-se na carta enviada pela Casa Branca ao advogado de Bolton.
A Casa Branca diz ainda que o manuscrito continua a ser revisto para que todos os pedaços de informação classificada sejam identificados. “Faremos o nosso melhor para trabalhar consigo e garantir que o seu cliente [John Bolton] consegue contar a sua história de uma forma que proteja a segurança nacional dos Estados Unidos”, diz a carta.
Quid pro quo pode levar à destituição? Só se o quo for ilegal, diz a defesa de Trump
Paralelamente à discussão sobre se John Bolton vai ou não testemunhar, dentro do Senado os senadores usaram nesta quarta-feira a sua possibilidade de fazer perguntas à acusação e à defesa para, mais do que pedir esclarecimentos, criar oportunidades para a repetição dos argumentos que já conheciam.
Um conjunto de senadores republicanos perguntou aos advogados do Presidente se o Senado “pode condenar o Presidente dos EUA por obstrução do Congresso por exercer as suas autoridades e direitos constitucionais” — dando oportunidade à defesa de Trump de repetir um argumento que tem usado no julgamento: o Presidente não obstruiu o Congresso quando impediu funcionários e ex-funcionários da Casa Branca de testemunhar; antes, protegeu a segurança nacional.
Do lado democrata, a estratégia era a mesma. “Um abuso de poder punível com a destituição implica que o plano do Presidente tenha resultado?“, perguntou um senador democrata à acusação, para ouvir a resposta que já conhecia: de acordo com os democratas, o que é punível com a destituição é a intenção de Trump em pressionar a Ucrânia, mesmo que o plano não tenha funcionado.
Uma das intervenções que mais olhares fizeram levantar na sala do Senado seria, no fim da longa sessão, a de Alan Dershowitz, advogado do Presidente, em resposta a uma pergunta do senador republicano Ted Cruz sobre se, mesmo que fique provada a relação entre o desbloqueio da ajuda militar e a investigação ucraniana aos Bidens, as ações de Trump seriam puníveis com a destituição. Para Dershowitz, a existência de um quid pro quo, ou troca por troca, só poderá resultar em impeachment se o “quo” for ilegal.
“Se um Presidente faz alguma coisa que acredita que o vai ajudar a ser eleito pelo interesse público, isso não pode ser o tipo de quid pro quo que resulta em destituição”, argumentou Dershowitz, que novamente foi confrontado pelos democratas com a sua mudança de pensamento no que toca às ações que podem ser punidas com o impeachment — na década de 90, por altura do julgamento de Bill Clinton, Dershowitz defendeu que não era necessário que o Presidente tivesse cometido um crime para ser destituído, bastando ficar provado que a sua conduta havia sido errada; agora, porém, defende que o Presidente só poderá ser destituído se ficar provado que cometeu um crime punido por lei.
Os senadores têm um período de 16 horas, divididas por dois dias, para fazer perguntas e ouvirem as respostas de ambos os lados. Depois de terem gasto mais de oito horas nesta quarta-feira, a sessão de quinta-feira deverá ser mais curta. Depois de esgotado este tempo, a sessão de sexta-feira será dedicada a votar moções destinadas a acrescentar mais provas, se os senadores considerarem necessário chamar novas testemunhas ou requisitar mais documentos da Casa Branca. Será aí que se vai decidir se o julgamento continua ou acaba por aí, uma vez que os republicanos pretendem impedir que sejam chamadas novas testemunhas e propor de imediato uma moção para absolver Donald Trump.