Era o último dia que os advogados de Donald Trump tinham para apresentar os seus argumentos aos senadores norte-americanos e para os convencer de que o Presidente dos EUA não deve ser destituído por causa das acusações de abuso de poder e de obstrução do Congresso de que é alvo. Ao início da tarde de terça-feira, o presidente do Supremo Tribunal dos EUA, John Roberts, que preside ao julgamento de impeachment que decorre por estes dias no Senado norte-americano, mostrou o relógio: a defesa de Trump tinha 15 horas e 33 minutos para usar, do total de 24 horas a que tinha direito.

Os advogados do Presidente, porém, usaram apenas duas horas, para repetir alguns dos argumentos que já tinham apresentado no sábado e na segunda-feira. Como era expectável, as atenções concentraram-se prticamente de forma exclusiva nos corredores do Senado, e não no que acontecia lá dentro, depois de no domingo o The New York Times ter divulgado um conjunto de excertos de um livro do ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, John Bolton, na qual é revelado que Trump terá efetivamente usado o seu cargo de Presidente dos EUA para pressionar a Ucrânia a investigar Joe Biden, prejudicando a imagem do ex-vice-presidente norte-americano e notável candidato democrata à Presidência nas próximas eleições.

No início do processo, tudo apontava para que os republicanos, que têm uma maioria de 53 contra 47 no Senado, bloqueassem qualquer tentativa dos democratas de chamar novas testemunhas para depor no julgamento — especialmente John Bolton, cujo testemunho em primeira mão se antevê incriminatório contra Donald Trump.

Impeachment. Ex-conselheiro confirma em livro que Trump tentou pressionar Ucrânia a investigar Biden

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A publicação da notícia do The New York Times fez inverter essas possibilidades e, esta terça-feira, depois da curta apresentação dos advogados de Trump, os senadores republicanos juntaram-se numa reunião de emergência, à porta fechada. Desse encontro, segundo revelaram alguns senadores aos jornais norte-americanos, saiu uma certeza: o líder da bancada republicana, Mitch McConnell, não tem assegurados os 51 votos necessários para bloquear a convocatória de novas testemunhas, uma vez que há vários senadores republicanos que, após terem conhecimento do livro de Bolton, estão a equacionar votar ao lado dos democratas no sentido de o chamar a testemunhar.

A confirmar-se — só se saberá ao certo na sexta-feira, quando os senadores votarem —, esta será a primeira grande derrota para os republicanos e a defesa de Trump num processo que parecia à partida decidido a favor do Presidente dos EUA.

Em causa no processo de impeachment de Donald Trump estão duas acusações relacionadas com os contactos da administração norte-americana com a Ucrânia. Os democratas, que têm maioria na Câmara dos Representantes, acusam Trump de ter pressionado a Ucrânia a anunciar publicamente investigações criminais aos negócios de Hunter Biden (filho de Joe Biden) no país, nomeadamente na empresa energética Burisma. Para pressionar o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelenski, Trump terá usado duas vantagens: congelou o apoio militar atribuído pelos EUA à Ucrânia, fazendo depender o seu desbloqueio do anúncio da investigação; e aceitou reunir-se na Casa Branca com Zelenski (uma reunião que era importante para o recém-eleito Presidente ucraniano consolidar a sua posição a nível interno) se as autoridades ucranianas dessem início à investigação.

Os advogados de Donald Trump têm focado a sua defesa do Presidente num conjunto de argumentos: consideram que não existiu nenhum quid pro quo, ou seja, que o desbloqueio dos fundos e a reunião na Casa Branca não estiveram relacionados com as investigações; que as ações do Presidente não constituíram crime, pelo que Trump não poderá ser destituído por causa delas; e que a empresa Burisma estava efetivamente rodeada de suspeitas de corrupção, pelo que devia ser investigada, no âmbito dos esforços de combate à corrupção na Ucrânia.

Impeachment. Republicanos ponderam chamar novas testemunhas e julgamento de Trump pode prolongar-se

O livro de John Bolton vem contradizer a defesa de Donald Trump, uma vez que o ex-conselheiro de segurança nacional do Presidente norte-americano afirma ter ouvido da boca do próprio Trump que os fundos atribuídos à Ucrânia só seriam desbloqueados quando o país anunciasse as investigações aos Bidens.

Se na sessão de segunda-feira o livro foi um tema praticamente evitado pelos advogados de Donald Trump, esta terça-feira o advogado Jay Sekulow referiu-se com ênfase à publicação, afirmando que o julgamento de impeachmentnão é um jogo de fugas de informação e de manuscritos sem fonte identificada“. Isso, considerou Sekulow, “é política”, mas o impeachment é um julgamento que tem de estar acima dessa polémica. Durante a sua intervenção, Sekulow nunca negou o conteúdo da notícia do The New York Times ou do livro de John Bolton, focando-se em rejeitar a sua admissibilidade enquanto prova no julgamento.

Nos corredores do Senado, porém, a visão de democratas e republicanos era outra, com vários senadores a mostrarem-se favoráveis a que pelo menos o manuscrito de John Bolton cujo conteúdo foi noticiado pelo The New York Times seja disponibilizado ao Senado e incorporado no conjunto de provas a ser analisadas no julgamento.

Em declarações aos jornalistas fora da sala do Senado, a senadora democrata e candidata presidencial Elizabeth Warren considerou que se estava a acumular “pressão sobre os republicanos para que decidam o que vão fazer relativamente a John Bolton”. Para Warren, Bolton “deixou claro que tem as provas que os republicanos dizem faltar”. Se assim é, concluiu a democrata, “então chamemo-lo a testemunhar”.

Assim que o advogado Pat Cippollone, que lidera a defesa de Trump, terminou os seus argumentos com um apelo a que os senadores defendam a Constituição americana (“a eleição é dentro de poucos meses e os americanos têm o direito de escolher o seu Presidente”, afirmou mesmo Cippollone), os senadores republicanos refugiaram-se numa reunião à porta fechada em que o líder da bancada, Mitch McConnell, fez as contas para perceber o que poderá acontecer na sexta-feira, quando o Senado votar se vai ou não chamar novas testemunhas a depor no julgamento. O desejo de McConnell é que esta possibilidade seja chumbada e que Trump seja absolvido no próprio dia. Mas o livro de Bolton veio mudar tudo e, no final da longa reunião, todos os relatos apontavam no mesmo sentido: não estão garantidos os votos para que a convocatória de novas testemunhas seja chumbada.

Pat Cipollone e Jay Sekulow, os dois principais advogados à frente da defesa de Donald Trump no julgamento de impeachment

Neste momento, segundo contas da CNN, há pelo menos dois senadores republicanos (Mitt Romney e Susan Collins) que devem votar ao lado dos democratas a favor de novas testemunhas e pelo menos cinco (Lisa Murkowski, Pat Toomey, Rob Portman, Lamar Alexander e Jerry Moran) a ponderar o seu voto. Outros republicanos já se mostraram abertos à ideia de uma troca de testemunhas, que tem sido apontada como plano B de Mitch McConnell no caso de antever que poderá perder a votação de sexta-feira: os democratas chamam uma testemunha (que deverá ser John Bolton) e os republicanos chamam outra (muito provavelmente Joe Biden ou o seu filho Hunter Biden).

Numa altura em que parece cada vez mais certo que John Bolton acabará por testemunhar perante os senadores, terminou nesta terça-feira a primeira fase do julgamento de impeachment de Trump: a dos argumentos iniciais de ambas as partes. Enquanto os democratas gastaram praticamente a totalidade das 24 horas, os advogados do Presidente Trump usaram menos de metade do tempo que tinham disponível. Na quarta-feira, começa a segunda fase do processo, com os senadores a submeterem, por escrito, as perguntas que quiserem ver esclarecidas por parte de ambos os lados. O Senado terá 16 horas — distribuídas por duas sessões de oito horas — para este processo. Nesta terça-feira, o líder da maioria, Mitch McConnell, sensibilizou os senadores e os representantes dos dois lados do processo para que sejam concisos quer nas perguntas quer nas respostas: não mais de cinco minutos por pergunta.

Isto deixa para sexta-feira o próximo passo do julgamento: um debate de quatro horas sobre a necessidade ou não de, após ouvidos os argumentos de ambos os lados, convocar mais testemunhas. Será aí que se vai decidir um ponto que poderá, num cenário mais radical, inclusivamente mudar o curso do julgamento, tendo em conta aquilo que os excertos do manuscrito de John Bolton deixam antever sobre o que será o seu depoimento.