Entramos num armazém industrial a meia hora de Lisboa. Entre moldes, aparas, soluções aquosas e dezenas de peças em chacota à espera da segunda e derradeira cozedura, encontramos Alex Hell e Gabi Neves, os responsáveis por tudo isto. À primeira impressão, duas conclusões fundamentais: nem todos os ateliês de cerâmica correspondem ao cenário luminoso que vemos na televisão, nem tão pouco o ato de moldar as peças a dois se assemelha ao momento de Demi Moore e Patrick Swayze em torno de uma roda de oleiro. O Studio Neves está, na verdade, a meio caminho entre a oficina de charme e a fábrica de produção em massa. Num mês, saem daqui 1500 peças, além de uma boa dose de pensamento criativo que, no último ano, ainda não parou de render clientes. A simpatia é cortesia da casa. Aliás, do casal.
Chegaram em fevereiro de 2018. Para trás, ficaram dez anos de Studio Neves em São Paulo e uma pequena revolução na relação entre a cerâmica de autor e a alta-cozinha, um enlace que hoje é óbvio, mas que nem sempre foi um dado adquirido.
“A cerâmica era muito incipiente no Brasil. A pessoa falava que era ceramista e fazia do prato e do vaso de flor até ao banco e ao cinzeiro”, recorda Alex. “No mercado não havia ninguém assim tão especializado nisso. Tinha gente fazendo prato, mas ninguém se importava tanto com o prato”, adiciona Gabi, de ascendência portuguesa.
O furo existia e foi o ponto de partida para o arranque do ateliê. Sem dispersar, agarraram-se ao prato, unidade básica da cerâmica utilitária, e correram feiras da especialidade, onde mostrar e falar de loiça artesanal tinha ainda o seu quê de alienígena. De lojistas receosos a grandes cadeias de restauração, a carteira de clientes cresceu e, de uma primeira fase em que o Studio Neves “se pagava”, o casal encontrou a prosperidade no nicho. No dia em que Alex Atala, o homem que pôs a gastronomia brasileira nas bocas do mundo, lhes bateu à porta, hesitaram. Julgaram-se despreparados para responder aos caprichos do chef. Em vésperas da primeira reunião, não dormiram. O primeiro passo acabaria por ser dado com o pé esquerdo. “A gente tinha que reproduzir esse prato super industrial, uma porcelana super translúcida, a anos-luz do que a gente estava fazendo. E a gente morria de medo do Alex Atala. Com ele, ou você acerta e beleza ou você erra e nunca mais fala”, conta Alex.
Três fornadas depois, a solução chegou com um convite do próprio Atala para jantar. Para cada prato degustado no D.O.M., o chef pediu que a dupla desenhasse uma peça. A encomenda estabeleceu o tom do estúdio e acendeu um rastilho que percorreria todo o Brasil. “Dois meses depois, a gente estava indo de Manaus a Porto Alegre e aqueles ceramistas que faziam uma coisinha ou outra começaram a ter encomendas de restaurantes. A gente não inventou roda nenhuma, só começámos a focar-nos mais e o trabalho com o Alex Atala veio multiplicar tudo”, afirma Alex.
Nas palavras de ambos, o negócio “estava voando”. Nada mal para um casal na casa dos 30 que tinha trocado o dia a dia em agências de publicidade e eventos por um mês de internato numa escola de cerâmica em Girona. “Fomos entrando nos restaurantes, vendo quais os problemas. Porque é que ninguém estava comprando cerâmica? Ela quebra? Porque é que ela quebra? A gente foi estudando a melhoria da matéria-prima e da queima, para ser mais resistente, e também o vidrado para ser mais duradouro. Foi uma pesquisa imensa que continua até hoje. Até então, era aquela imagem de que só a porcelana dura, a cerâmica não dura. Mas ela não estava sendo feita como se deve”, refere Gabi.
No final de 2017, a faturação do estúdio tinha duplicado face ao ano anterior. Mas, com dois filhos, o casal vivia em sobressalto. O carro blindado e o circuito de câmaras em casa não apaziguavam o sentimento de insegurança constante. No dia em que um homem armado parou o carro onde seguia uma das crianças, os dois tomaram uma decisão irreversível. Numa única chamada, Alex vendeu o ateliê, com todo o recheio, e garantiu que a nova proprietária, uma ceramista já no ativo, manteria todos os funcionários. Em dois meses, mudaram-se para Lisboa, dispostos a sacrificar o sucesso profissional em prol da segurança. “Virámos a página. Aqui, a gente ia poder trabalhar à noite e levar as crianças para o parque. Mas Portugal é muito menor, tem outro desenvolvimento da cerâmica, muita concorrência. A gente sabia que ia ganhar qualidade de vida, mas também sabia que ia ganhar muito menos”, admite Alex.
Nos arredores de Sintra, o Studio Neves labora há 11 meses. Há um ano, antes mesmo de terem um forno, Alex e Gabi aceitaram a primeira encomenda em solo português. João Rodrigues preparava a abertura do Rossio Gastrobar. O ateliê entregou as peças dentro do prazo, a obra atrasou, o chef não resistiu e pôs a loiça a uso no Feitoria, o seu restaurante principal. A história acabou com uma segunda (e definitiva) fornada para o novo espaço. “Já produzimos para 32 restaurantes portugueses. Sei que em Espanha também pode ter um mercado e na França também estou conversando com eles. No final, o volume pode não ser o mesmo, mas esse crescimento inicial, em Portugal, está muito acima da expectativa”, admite Alex.
Do Brasil trouxeram um estilo difícil de confundir. São peças com acabamentos e texturas irregulares, de aspeto rústico – tosco até –, muitas delas claramente manufaturadas do princípio ao fim. As formas circulares predominam e, mesmo nas outras, os cantos arredondados harmonizam o mostruário. Da espessura dos objetos às arestas esbeiçadas, o ateliê construiu um estilo em torno de um único objetivo – fazer com que as peças sejam mais resistentes e duráveis. Para isso, nenhum detalhe é deixado ao acaso. Antes de começarem a produzir em Portugal, durante um mês, Alex e Gabi testaram 950 vidrados. Apenas oito passaram com distinção nas provas de acidez e alcalinidade.
A paciência e a determinação continuam a dar frutos. O ateliê ainda fornece alguns restaurantes brasileiros, entre eles o de Alex Atala. Recentemente, uma edição de 30 pratos foi produzida para um jantar inédito, cozinhado por José Avillez e Henrique Sá Pessoa, na suíte presidencial do Ritz. Ao mesmo tempo, a dupla pisca o olho a Espanha, com uma primeira encomenda já fechada para o El Celler de Can Roca, restaurante com três estrelas Michelin, que já foi considerado o melhor do mundo pela lista World’s 50 Best Restaurants. Com os franceses, o caminho adivinha-se mais longo. “Fui na França achando que era a meca da cozinha. Cheguei lá e a pessoa falou: ‘essa peça não serve para nada, é grosseira’. Ela até comentou que parecia que um homem das cavernas a tinha feito”, conta Alex.
No regresso, repensaram o próprio estilo e produziram as primeiras peças em porcelana, proposta mais tradicional, leve e delicada. Curiosamente, continua a ser a cerâmica ao estilo neandertal a mais apreciada, ou a “rusticidade chique”, como entretanto é apresentada aos clientes. Na loiça que vai para a mesa, a perceção do feito à mão faz parte de um exercício que pretende alienar o cliente de uma era digital e contactless.
Juntamente com três ajudantes, Alex e Gabi mantêm as mãos na massa. A partir dos moldes já construídos, os dois produzem centenas de peças diferentes. Tudo pode ser adaptado, transformado, repensado e desenhado de raiz a partir do momento em que um chef entra pelo portão. “A gente fala que ninguém vai nos restaurantes para ver prato, mas a gente gosta de dizer que aquilo é uma moldura. Ela tem o poder de acabar com uma arte, mas ela também pode enaltecer a arte. Esse é o nosso trabalho, enaltecer a comida.”
Artigo publicado originalmente na revista Observador Lifestyle nº 5 – Especial Comida (setembro de 2019).