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Ministério Público em guerra com diretiva de Lucília Gago que limita autonomia de magistrados

Este artigo tem mais de 4 anos

Parecer do Conselho Consultivo da PGR legitima intervenção da hierarquia em processos concretos. Líder sindical dos procuradores fala em "regresso à opacidade do tempo do dr. Pinto Monteiro."

Lucilia Gago, procuradora-geral da República
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Lucilia Gago, procuradora-geral da República

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Lucilia Gago, procuradora-geral da República

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Uma diretiva da procuradora-geral Lucília Gago determinando a aplicação de um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) está a incendiar o Ministério Público. O parecer aborda a questão sempre sensível da relação entre a hierarquia e os procuradores titulares dos inquéritos e não deixa margem para dúvidas: os superiores hierárquicos têm o direito de emitir “diretivas, ordens e instruções” concretas sobre determinadas diligências processuais, sendo que os subordinados (os procuradores titulares dos inquéritos) apenas têm o direito de desobedecer no caso de uma “ordem ilegal” ou de “grave violação da consciência jurídica” — que terá de ser devidamente fundamentada pelo magistrado em causa, sob pena de sanção disciplinar.

António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, critica duramente o parecer emitido mas, acima de tudo, a ordem dada pela procuradora-geral Lucília Gago. “Esta é uma teoria parecida com aquela que ouvimos no processo Face Oculta sobre os expedientes secretos que acabaram arquivados na Procuradoria-Geral da República e que nunca foram conhecidos. Esta diretiva [da procuradora-geral] abre portas para que seja muito pior do que o tempo do dr. Pinto Monteiro. É um regresso à opacidade dessa altura”, afirmou ao Observador.

Ventinhas convocou para esta quinta-feira uma reunião da direção do sindicato para analisar e anunciar medidas de combate ao que consideram ser um ataque à autonomia dos procuradores. Pode-se dizer que é o fim da lua de mel entre o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público com Lucília Gago.

Outros magistrados, contudo, não concordam com esta visão. O procurador-geral adjunto jubilado Euclides Dâmaso afirma ao Observador que não vê “razões para inquietudes nem para dramatizações, porque nada se alterou na relação de equilíbrio” a hierarquia e os subordinados. “A autonomia” do MP em Portugal “é quase ímpar ao nível mundial”, afirma o ex-procurador-geral distrital de Coimbra.

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Apesar do parecer do Conselho Consultivo da PGR ser abstracto, e ter por base oito perguntas concretas que lhe foram colocadas por Lucília Gago, as conclusões do mesmo assentam ‘como uma luva’ na intervenção do procurador-geral adjunto Albano Morais Pinto, diretor do Departamento Central de Ação e Investigação Penal, nos autos do caso de Tancos. Na prática, o parecer legitima a decisão tomada por Morais Pinto de proibir os três procuradores titulares daquele processo de inquirirem como testemunhas, e por escrito, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa.

Recorde-se que Morais Pinto invocou a “dignidade” e a “alta função” dos cargos de Marcelo e Costa para impedir a sua inquirição. Na fase de instrução criminal do caso de Tancos, o juiz Carlos Alexandre não teve qualquer problema em enviar 100 perguntas por escrito a António Costa — cujas respostas foram conhecidas esta quarta-feira.

Diretor do DCIAP invocou “dignidade” e a “alta função” dos cargos de Marcelo e Costa para recusar a sua inquirição no caso Tancos

As ordens dos superiores hierárquicos ficam fora dos processos

O parecer foi solicitado pela procuradora-geral da República numa data que não consta do documento emitido pelo Conselho Consultivo — aliás, o parecer que foi publicado no site da Procuradoria-Geral da República não está assinado, como é costume, nem refere se foi aprovado por unanimidade ou se teve votos contra e declarações de voto. Pelo documento publicado, percebe-se que o parecer foi solicitado após a polémica com o caso de Tancos e foi distribuído a um relator que o documento não identifica no dia 28 de novembro de 2019.

De acordo com informações enviadas ao Observador por diversas fontes do MP após a publicação desta peça, o autor do parecer será o procurador João Conde Correia — que no documento publicado está identificado pelas iniciais “JCC” — e o parecer terá recebido a unanimidade entre os membros do Conselho Consultivo presentes na reunião que aprovou o parecer.

Lucília Gago colocou oito perguntas, todas elas relacionadas com o princípio da autonomia dos magistrados e a sua subordinação hierárquica prevista na lei, nomeadamente no novo Estatuto do Ministério Público que entrou em vigor no início do ano. A questão mais importante era esta:

Admissível que seja a prerrogativa de o superior hierárquico emitir uma ordem ou instrução concreta, em determinado processo de natureza criminal, deve a mesma dele ser feita constar ou pode ter um registo externo (…)?

O relator não só respondeu positivamente à primeira da pergunta, como confirmou que a “emissão de uma ordem ou de uma instrução por um superior hierárquico, ainda que dirigida para um certo caso concreto, não prossegue” a finalidade de, como manda a lei, de “recolher e descobrir provas” que sustentem uma decisão final de acusação ou arquivamento. Logo, não tem de “constar do processo”, mesmo que existam divergências entre o procurador titular dos autos e o seu superior hierárquico. Porquê? Porque “não é um ato de inquérito saber ser essa relação [hierárquica] funcionou ou não”, lê-se no parecer.

Ou seja, o parecer do Conselho Consultivo legitima que os superiores hierárquicos passem a dar ordens concretas aos procuradores fora dos respetivos autos, não existindo uma obrigação legal de tais ordens serem escrutinadas ou pelas partes dos processo (arguidos e os seus advogados) ou até pela Opinião Pública através dos jornalistas.

A autonomia interna dos procuradores não está na Constituição

Do ponto de vista da autonomia do MP, o parecer do Conselho Consultivo começa por fazer uma distinção entre o que é a autonomia externa (a autonomia face, por exemplo, ao poder político) e a autonomia interna (a autonomia de cada magistrado para tomar as decisões processuais que entender).

Depois de fazer uma resenha histórica da autonomia externa, o relator não tem dúvidas: a própria Constituição estipula a mesma e a independência face ao poder político é garantida pela lei.

As dúvidas do relator João Conde Correia colocam-se sobre a autonomia interna que, segundo um acórdão citado pelo Tribunal Constitucional no parecer do Conselho Consultivo, não está prevista na Lei Fundamental.

Contudo, enfatiza o relator, o Estatuto do Ministério Público estipula a mesma. A questão reside em saber: qual o grau da autonomia interna que é admissível aos magistrados do MP e em que casos podem desobedecer a ordens dos seus superiores?

O relator João Conde Correia do Conselho Consultivo entende que os procuradores só podem desobedecer a uma ordem do seu superior hierárquico, mesmo sobre diligências processuais concretas — constituir alguém como arguido, realizar buscas, promover a detenção de um suspeito junto do juiz de instrução ou acusar um arguido, por exemplo —, quando o cumprimento da mesma ordem “implique a prática de um crime”. Ou seja, se a ordem do superior hierárquico configurar um ílicito criminal, os magistrados têm um “amplo poder/dever de resistência contra manifestações abusivas da hierarquia”. Até porque o Ministério Público rege toda a sua actividade sob o princípio da legalidade democrática.

O segundo caso de desobediência prende-se com “a grave violação da sua consciência jurídica”. Isto é, os magistrados “não podem ser constrangidos a mudar aquilo que é a sua objetiva e legal convicção jurídica”, lê-se no parecer. Mas, atenção, esta recusa por violação da sua consciência jurídica tem de ser devidamente fundamentada por escrito, sob pena de incorrer em falta disciplinar, avisa o relator.

“Embora não esteja em causa a relação hierárquica típica da administração pública, mesmo assim os magistrados do Ministério Público estão hierarquicamente subordinados e, logo, sujeitos a ordens e instruções dos seus superiores”. Tudo porque sem esse poder hierárquico, “não há verdadeira subordinação, tal como foi estabelecido pela Constituição. Uma hierarquia sem poderes diretivos e deveres de obediência não é uma verdadeira hierarquia, mas uma outra qualquer forma de organização”, lê-se no parecer.

Por outro lado, conclui o relator, “reduzir os poderes hierárquicos à possibilidade mínima de determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, sem qualquer outra possibilidade de impugnação e de controlo, será, assim, reconhecer aos magistrados do Ministério Público uma autonomia interna superior à independência dos próprios juízes.” O que é incompatível com a Constituição, enfatiza o Conselho Consultivo.

Toda esta doutrina foi aceite por Lucília Gago que emitiu a sua primeira diretiva de 2020, ordenando que a mesma seja “seguida e sustentada pelo Ministério Público” no contexto das “relações hierárquicas” da magistratura.

António Ventinhas: “É um regresso à opacidade do tempo de Pinto Monteiro”

O presidente do Sindicanto dos Magistrados do Ministério Público entende que a diretiva de Lucíclia Gago “é gravíssima. Coloca em causa o Estatuto do Ministério Público ao admitir que os titulares dos processos não tenham autonomia e que sejam meras marionetas da hierarquia. E que passe a existir uma espécie de sombra sobre as decisões do Ministério Público no processo”, afirma ao Observador.

O sindicato não contesta a existência da hierarquia, até porque o Ministério Público é uma magistratura hierarquizada. O que “contestamos é o grau máximo de intervenção hierárquica. Entendemos que o superior hierárquico não tem poder para dizer quem dever ser investigado, quem deve ser arguido ou quem deve ser alvo buscas, por exemplo. Outra é o poder de avocar”, diz António Ventinhas, referindo-se ao poder do superior hierárquico retirar o processo ao titular dos autos e distribuir a outro procurador.

Ainda por mais, continua Ventinhas, quando vai passar a existir “um escrutínio secreto da hierarquia que não faz parte do processo.”

“Todas as partes do processo têm o direito de escrutinar as decisões que o Ministério Público toma no processo e vão deixar de o poder fazer”, critica António Ventinhas, numa alusão ao entendimento do Conselho Consultivo de que as ordens hierárquicas têm ficar fora dos autos dos processos criminais.

“Esta é uma teoria parecida com aquela que ouvimos no processo Face Oculta sobre os expedientes secretos que foram arquivados na Procuradoria-Geral da República pelo dr. Pinto Monteiro e que nunca foram conhecidos”, afirma Ventinhas, referindo-se aos processos administrativos que o ex-procurador-geral abriu com as certidões extraídas contra José Sócrates e que nunca foram investigadas nem conhecidas publicamente.

“Esta decisão abre portas para que seja um tempo muito pior do que o tempo do dr. Pinto Monteiro”, conclui Ventinhas.

Rui Cardoso, antigo presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, escreveu na rede social Facebook  que este é “o dia mais negro da história democrática do Ministério Público português: morreu como magistratura”. “Nasceu uma verdadeira autocracia, com um nível de hierarquia quem nem na administração pública existe”, acrescentou.

Euclides Dâmaso: “Não voltámos ao 24 de Abril e não menos certo é que não chegámos ao 11 de Março”

O ex-procurador-geral distrital de Coimbra vê este tema de forma muito diferente. “Não vejo razões para inquietudes nem para dramatizações, porque nada se alterou na relação de equilíbrio, apurada ao longo de décadas, entre o exercício dos poderes hierárquicos e a confortável margem de autonomia pessoal de cada magistrado no processo”, afirma ao Observador, numa reação ao parecer do Conselho Consultivo da PGR.

O procurador-geral adjunto jubilado faz questão de enfatizar, aliás, que a autonomia dos magistrados do MP português “é quase ímpar ao nível mundial .”

Classificando as alterações do novo Estatuto do Ministério Público como “pequenas inovações”, Euclides Dâmaso afirma que a “leitura das normas estatutárias que se faz no parecer do Conselho Consultivo é a única congruente com o texto constitucional” e “põe claramente a tónica na natureza hierárquica da magistraturado Ministério Público.”

Não é por isso caso para tocar a finados nem para qualquer alarme: é seguro que não voltámos ao 24 de Abril e não menos certo é que não chegámos ao 11 de Março”, afirma Euclides Dâmaso, referindo-se ao tempo da Ditadura deposta pelo 25 de Abril de 1974 e à tentativa de golpe do 11 de Março de 1975 por parte de tropas afetas ao general Spínola.

“Esta conformação do MP é a que melhor serve os interesses da sociedade, da Justiça e da democracia. E é altura de dizer que não há, nos últimos 45 anos, motivos para se por em causa a probidade e a isenção dos membros da hierarquia do MP, que são magistrados de mérito com provas dadas ao longo de muitos anos de serviço . O monopólio desses valores não pertence às bases”, conclui o ex-procurador-geral distrital de Coimbra.

Texto atualizado às 21h50 com informação sobre o relator do parecer do Conselho Consultivo e a aprovação por unanimidade – duas informações que não constam da documento publicitada pela Procuradoria-Geral da República.

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