Joaquín Phoenix não gosta de entrevistas: até as abandona, como fez o ano passado ao “The Telegraph”, ainda que tenha regressado. Não está inscrito em redes sociais. É vegan desde os três anos. Olhando para os discursos que já fez este ano, dos Globos de Ouro aos BAFTA (em ambos levou a estatueta de melhor ator pelo seu papel em “Joker”), também não morre de amores pela indústria do cinema, muito menos pelos atores e atrizes que vão em aviões privados até Palm Springs. Não gosta de ensaios ou de leituras de guiões em grupo. E, provavelmente, gosta ainda menos de ler perfis que falam sobre a sua carreira no cinema, daqueles que procuram encontrar uma razão por detrás dos seus papéis, em busca de uma justificação para o seu “método de representar”, que o tem levado a interpretar personagens sombrias, complexas, repletas de demónios, numa linha onde, muitas vezes, não se consegue distinguir a realidade da ficção.
O que Joaquín Phoenix realmente gosta é de vestir a pele do perturbado e aspirante a comediante, Arthur Fleck, ou do veterano de guerra Freddie Quell (“The Master”, 2012), ou de si próprio, como músico, no mockumentary “I’m Still Here” (2010), que enganou tudo e todos. Joaquín, mesmo não gostando, ou não tendo essa pretensão, tem levado a sua carreira para um lado desvairado do ser humano, umas vezes bruto, quase grotesco, outras vezes profundamente infantil, sensível e doce. Não é por acaso que, em tempos, o seu primeiro nome tenha sido trocado “Whacking” (que não “bate” bem) entre os atores que contracenavam com ele. Mas esse método nem o próprio ator sabe explicar. “Gosto de interpretar papéis que têm uma realidade desconhecida para mim, que me partem o coração”, disse em entrevista ao programa “60 Minutos”. Afinal, não interessam explicações: é que Joaquín Phoenix ganhou (finalmente) o Óscar de Melhor Ator.
[um excerto da entrevista ao programa “60 minutes”:]
Joker, ou a catarse de Phoenix
O filme “Joker” já é o filme “R Rated” (para maiores de 18 anos) com maior sucesso de bilheteira de sempre, tendo ultrapassado os mil milhões de euros. As razões que levam a este sucesso ficam para cada um que foi ver o filme, mas há muitos que apontam a performance de Joaquín Phoenix como a principal — a mesma que tem sido distinguida por diferentes prémios. É um filme sobre o falhanço da sociedade em compreender um homem com problemas mentais, que pegou no mais icónico vilão da DC e lhe deu uma história (quase) original, sem os efeitos especiais a que estamos habituados. A sensação de pena, revolta e angústia que Arthur Fleck inflige ao espectador, por ser quase infantil e monstruoso num par de planos, é tudo obra de um ator que, além de se atirar para papéis fisicamente intensos (perdeu 23 quilos para o filme), gosta do perigo do desconhecido que vem com o trabalho de representação. “Não sabia o que era o Joker, não o sabia classificar, nem sabia o que íamos fazer. Foi assustador”, confessou numa entrevista ao New York Times (NYT).
Esse desconhecimento levou-o a estudar a personagem em duas dimensões, a física e a psicológica (lá está o método de que Joaquín detesta falar, mas tem de ser). A segunda, levou-o para o mundo dos psicopatas, dos comportamentos narcisistas, das doenças mentais e dos medicamentos. Na parte física, da dança, que ora liberta Arthur Fleck ora lhe dá poder, Joaquín Phoenix olhou para Buster Keaton ou para o Espantalho “do Feiticeiro de Oz”, quase como se quisesse servir-se da dimensão musical para humanizar um ser que ninguém compreende. O que muitos podem não saber é que o ator já tinha “um historial” como dançarino, fez break dancee em miúdo, mas também passou algum tempo com um coreógrafo que o ajudou a tornar aquelas escadas do Bronx numa atração turística. Até neste detalhe o papel estava à espera dele — pelo menos o realizador Todd Philips disse que o filme foi pensado para o ator, sendo que mantiveram três meses de conversação só para falar da personagem.
[a cena da dança nas escadas do Bronx em “Joker”:]
Toda esta intensidade e fascínio pelo aclamado vilão de Gotham City que desconhecia, levou-o muitas vezes a chegar ao limite. Ou a improvisar cenas, como a da dança metamórfica na casa de banho ou a cena em que Arthur se enfia no frigorífico, uma indicação que nem estava no guião. Mas também ao limite de abandonar o set de rodagem. “No meio de uma cena, ele simplesmente abandonava o set. E os coitados dos atores ficavam a achar que a culpa era deles, mas não, a culpa era dele, de não estar a sentir a cena”, afirmou o realizador ao NYT.
Robert de Niro, que também aparece no filme — e é a personagem principal de “Taxi Driver”, uma das grandes inspirações do “Joker” — tem outra razão para explicar este tormento e o porquê da audiência ser levada a gostar deste tipo de personagens. “As pessoas identificam-se de certa forma, sem que conseguissem ir ao extremo como as personagens [Travis Brickle ou Arthur Fleck]. Elas percebem o sentimento. Às vezes torna-se catártico”, conta.
O estrelato, depois da morte do irmão
Em 1977, a família de Phoenix abandonou o culto Childrens of God (hoje conhecido pelas piores razões como recrutamento de fiéis através do sexo ou pedofilia) e viajou da Venezuela para Los Angeles. Mudaram o nome de família de Bottom para Phoenix, e lá foram. Os pais missionários, mais três irmãs e um irmão, faziam espectáculos de rua, a dançar e a cantar, como um verdadeiro grupo hippie, e começaram a ser notados pela imprensa local, participando em anúncios e tendo pequenos papéis na televisão — sem referências a fast-food ou bebidas com gás, por se terem convertido ao veganismo anos antes.
[o discurso de Joaquín Phoenix:]
#Oscars Moment: Joaquin Phoenix wins Best Actor for his work in @jokermovie. pic.twitter.com/M8ryZGKGHV
— The Academy (@TheAcademy) February 10, 2020
River Phoenix (que morreu vítima de overdose em 1993, aos 23 anos) tornou-se na estrela maior da família. Joaquín, com dez anos, fez a sua primeira aparaição na série “Hill Street Blues”. Chegou mesmo a participar num episódio do programa “Alfred Hitchcock Presents”, com outro nome (Leaf, porque pediu aos pais para trocar), e a obter papéis em filmes de adolescentes, ou em anúncios, que não o satisfizeram. Não por inveja ou medo de estar na sombra. Simplesmente por não conseguir sentir aquela alegria que todos os miúdos sentem quando chegam à televisão. “Em criança, percebi que eles queriam que eu representasse, que estivesse sempre feliz. Até aí eu tentava”, confessou em entrevista à revista do New York Times em 2005. Esta falta de vontade de ser superficial revelava-se até na sua postura física. O jornal “Orlando Sentinel” chegou mesmo a dizer que, durante a entrevista, “Joaquín não conseguia parar quieto”. O estilo desconcertante e a desconfiança em relação aos media tinha, portanto, nascido com ele.
[o trailer de “Joker”:]
Por outro lado, a fama de River foi crescendo, foi nomeado para um Óscar de Melhor Ator Secundário (por “Fuga sem Fim”, de 1988), e a família mudou-se para a Florida, para um rancho comprado pelo próprio. Foi aí que o irmão teve uma premonição, sem grande explicação, do que estaria para acontecer. “Tu vais ser ator e vais ser mais conhecido do que eu”, contou Joaquín numa entrevista à “Vanity Fair”. A morte de River à porta da discoteca “The Viper Room” seria um momento definidor no resto da vida do irmão, tanto na carreira, como na vida pessoal. Deixou de ser o segundo Phoenix mais famoso, para passar a ser o primeiro, com tudo o que de bom e de mau há em carregar esse fardo.
Mas ainda que seja definidor, Phoenix não consegue estabelecer uma relação direta entre o assombro provocado pela morte do irmão e a atração por papéis obscuros e violentos. Até porque viveu no seio de uma família aparentemente feliz, que foi entrando no caminho da fama, sem se desligar das suas raízes ou da sua espiritualidade. À Vanity Fair, o ator confessa até que essa predisposição pode ter nascido com ele. “Acho que é uma combinação entre algo natural e uma sensação de proteção”, afirma. Combinação que transporta para todas as suas personagens — que, ainda que despertem, muitas vezes, sentimentos negativos, captam-nos a atenção. Uma espécie de voyeurismo perverso que, no limite, nos faz ter pena de quem está do outro lado do ecrã a expurgar os seus demónios. Ou uma vontade muito grande de ver o ator atirar-se para outros alter egos que desconhecemos de perto, mas que nos habituámos a ver, por exemplo, nas notícias.
A atração pelo lado obscuro do ser humano
Ainda que o público o tenha conhecido como “Commudus” em “Gladiador” (2000), foi em “Walk The Line” (2005), no papel de Johny Cash, que Phoenix começou a dar que falar, por deixarmos de ver o ator e sim o músico (aprendeu a cantar e a tocar guitarra), mas também a pessoa. Foi no fim da rodagem desse filme que, por se sentir “abandonado”, o ator confessou ter tido um severo problema com o álcool, o que o levou a inscrever-se na reabilitação.
Mas foi com “I’m Still Here”, de Casey Afleck, que Joaquín Phoenix decidiu colocar a nu uma hipocrisia sentida sobre a indústria, e um certo prazer em gozar com quem a segue, uma crítica à fama, como quem está farto disto tudo. Neste falso documentário, o ator anuncia que vai largar a profissão e dedicar-se a uma carreira no hip hop. O filme foi um fiasco, mas deixou os Estados Unidos baralhados, inclusivamente o apresentador David Letterman, numa das entrevistas mais estranhas que Phoenix (em personagem) deu:
https://www.youtube.com/watch?v=maBjr0yPfu4
Esta farsa durou mais de um ano, com suspeitas de depressão, consumo de drogas, dando a Phoenix uma certeza muito satisfatória, que lhe permitiu partir para papéis sem medo de falhar: “Há algo libertador na humilhação pública”, disse a Anderson Cooper no mesmo programa “60 minutos”. Ditaria o destino que essa tal humilhação estaria espelhada neste seu mais recente filme, mas agora em ficção. A carreira de Phoenix parece ter sido pensada ao milímetro, ainda que nem o próprio se aproxime sequer desta hipótese.
Essa vontade do ator em brincar com a audiência ficou em 2010, porque dois anos depois surgiu num papel que pode muito bem ser entendido como a preparação para o murro no estômago que Phoenix nos iria trazer com “Joker”: o veterano Freddie Quell que procura ajuda na cientologia para se reconstruir em “The Master” (de Paul Thomas Anderson), num dos últimos grandes papéis de Philip Seymour Hoffman, como líder do culto. Os tiques violentos fruto de um colapso nervoso, os olhos tristes, o poder de mudar de humor em poucos segundos, o uso de medicação e a descoberta da espiritualidade, tudo misturado num cocktail explosivo a que Phoenix deu corpo. Se Arthur Fleck vem do mundo dos palhaços, Freddie vinha do mundo da guerra. Que, em diferentes escalas, acabam por ter uma semelhança: ambos, cada um com a sua máscara, escondem algo mais que queremos muito conhecer. Mas, neste filme, há ainda outro ponto de ligação com “Joker”: a pena impotente que a personagem nos transmite, como se de um underdog se tratasse.
[o trailer de “The Master:”]
Não deixa de ser curioso que, no ano seguinte, “Her” tenha trazido um escritor solitário, Theodore, um Phoenix futurista, moderno, frágil, de coração partido, sem o mínimo da violência que caracterizou o anterior papel, mas igualmente depressivo. Theodore apaixona-se por uma versão da Siri (com a voz de Scarlett Johansson). O desafio aqui foi ter de representar sem haver contra cena e explorar um lado mais vulnerável que talvez só tenha acontecido na adolescência, quando interpretou um adolescente problemático em “Parenthood” (1989). Ao “The Guardian”, Phoenix volta a demonstrar que, apesar da crítica e do público estabelecerem ligações entre o ator e a personagem, quem ele é no filme deve-se, sobretudo, a quem está no guião. “Nunca tive um desgosto amoroso”, conta.
[o trailer de “Her”:]
Antes de chegarmos a “Joker”, Phoenix ainda fez mais alguns filmes menos memoráveis. “Maria Madalena” (2018), no papel de Jesus Cristo, onde contracenou com a mulher, a atriz Rooney Mara — “a única mulher que pesquisou na internet” –, “Inherent Vice” (2014), como Larry Doc, investigador com problemas de drogas, ou “You Were Never Really Here” (2017), como Joe, (mais) um veterano que resgata raparigas do tráfico sexual e mata homens ricos com um martelo. A brutalidade e a frieza com que Joe mata estes homens mascara, mais uma vez, a sensibilidade da personagem, que ainda vive com a mãe (faz lembrar algum filme?).
Chegamos a 2020 e Phoenix ainda não conseguiu deixar definitivamente de fumar — interrompeu o processo quando o filme estreou em Veneza –, apesar de ter feito hipnose, mas parece ter-se distanciado do álcool. E também não dá pistas de querer adaptar-se ao que é ser uma estrela de hoje em dia. Talvez prefira manter-se na sua casa, em Hollywood Hills, longe dos holofotes, ao lado da mulher e dos seus cães vegan, Oskar e Soda.
Quanto aos discursos, ora pelo ambiente, ora contra a indústria, não devem parar. Não é por ter ganho a estatueta dourada que vai largar a alma ativista. A não ser que seja preso de vez (só foi mesmo detido há pouco tempo em Washington durante um protesto contra as alterações climáticas). Quanto a perceber o seu método de representação, talvez não aconteça. Ou percebê-lo a ele, o porquê de achar que não merece o crédito que tem, ou porque é que simplesmente não gosta de ensaiar, ou que lhe façam entrevistas, onde aproveita sempre para se irritar com as perguntas ou para gozar com os jornalistas. Ou o porque é que estamos sempre no limite de ver uma explosão de uma qualquer neurose, que se fica entre a realidade e a ficção. Na volta, nem queremos.
Aqui não vale a pena quebrar a quarta parede. É esperar pelo próximo filme — e pela opinião positiva da mãe de Phoenix, que leu o guião de “Joker”, segundo o próprio. Ou então, podemos mesmo ver uma “nova pausa” na carreira de Phoenix. É que, afinal, ele “ainda está aqui”. “Não há nenhuma meta final. Acho que nunca vou saber se tive sucesso. Mas está tudo bem, isso faz-me trabalhar ainda mais”, finalizou no artigo do NYT de 2005.