Isabel dos Santos pediu mesmo ao Presidente angolano para negociar, pouco depois de os seus bens e contas terem sido arrestados pela justiça angolana e da divulgação do Luanda Leaks. A mulher mais rica de África  — mantém o lugar, apesar do escândalo, e figura na 14ª posição no ranking dos milionários africanos, divulgado na quarta-feira pela revista Ceoworld — escreveu uma carta de uma página e meia a João Lourenço em que fez um pedido explícito de negociações nos parágrafos quarto e quinto.

Num deles, fundamenta o solicitado com o estado da economia nacional e a responsabilidade social, propondo uma plataforma segura de cooperação. Ou seja, a abertura de conversações que poderiam levar à devolução dos 1,1 mil milhões de dólares (cerca de mil milhões de euros) que a filha mais velha do ex-Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, alegadamente deve ao Estado angolano, em troca do levantamento do arresto. Através da assessoria de imprensa de Isabel dos Santos, o Observador enviou perguntas sobre esta iniciativa, mas não recebeu qualquer resposta até à publicação deste artigo.

A carta não obteve o efeito desejado. João Lourenço foi perentório na entrevista dada à Deutsche Welle a 3 de fevereiro. “Nós gostaríamos de deixar aqui garantias muito claras de que não se está a negociar”. Nem prevê fazê-lo no futuro. “Mais do que isso, não se vai negociar, na medida em que houve tempo, houve oportunidade de o fazer. Portanto, as pessoas envolvidas neste tipo de atos de corrupção tiveram seis meses de período de graça para devolverem os recursos que indevidamente retiraram do país”, garantiu.

As afirmações do Presidente angolano surgiram três dias depois de o Expresso ter dito que as negociações estavam em curso, citando mesmo o procurador-geral da República — “É um sinal ainda ténue”. No entanto, Hélder Pitta Grós apressou-se a desmentir a notícia, tal como o faria depois o advogado Sérgio Raimundo, tido como o porta-voz angolano da estratégia de Isabel dos Santos, ao Público.

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Mas terá João Lourenço equacionado seriamente esse caminho? Fontes políticas angolanas contactadas pelo Observador dividem-se. Há quem admita que a possibilidade de negociar com Isabel dos Santos esteve durante algum (pouco) tempo em cima da mesa presidencial, tendo sido afastada depois de alguns comentários nas redes sociais da filha de José Eduardo dos Santos que desagradaram a Lourenço. (Aliás, Isabel dos Santos só terá parado com as suas publicações sobre o assunto nas redes sociais depois de o pai lhe ter pedido para ficar calada). Em sentido contrário há quem assegure que Lourenço excluiu à partida essa possibilidade, o que vem reforçar a tese daqueles que veem uma certa seletividade na grande bandeira da sua governação: o combate à corrupção.

Uma prova disso seria o facto de Manuel Vicente parecer estar a ser poupado — o que João Lourenço negou nessa única entrevista que deu pós-Luanda Leaks, lembrando o período de imunidade de que ainda goza o ex-vice-Presidente e assegurando que “o caso está a ser tratado pela PGR”. Um outro indício seria o facto de haver negociações com alguns altos quadros do Estado acusados de envolvimento em esquemas de corrupção, como é o caso de Manuel Rabelais, antigo ministro da Comunicação Social, de um ex-governador do Banco Nacional de Angola e de alguns generais do MPLA.

“Crimes de quem? De todos os que dirigiram o MPLA? Vão todos para a cadeia?”

Marcolino Moco, ex-primeiro-ministro de José Eduardo dos Santos preferia uma solução diferente da que está a ser seguida por João Lourenço em alguns casos de corrupção

A opção de João Lourenço traz algumas dificuldades, analisa Marcolino Moco, ex-primeiro-ministro de José Eduardo dos Santos (de 1992 a 1996), que foi eliminado politicamente (e humilhado publicamente) pelo ex-Presidente, mas que tem sido uma voz ponderada no meio angolano. Autor de um livro a ser lançado brevemente em Portugal, “Angola: Por uma nova partida”, o advogado defende, em declarações ao Observador, uma “justiça restaurativa” mais do que uma justiça que prioriza mandar “este ou aquele” para a prisão.

Sobre o facto de poderem estar em causa crimes, Marcolino Moco argumenta: “Crimes de quem? De todos os que dirigiram o MPLA nesse período? Vão todos para a cadeia? O país pára? O MPLA entrega o poder a outra formação político-partidária? Tem lógica? É exequível? Não é.” Trata-se, defende, de crimes que “foram autorizados durante muitos anos”. Este foi, sublinha Marcolino Moco, um “problema político, e a solução deve ser política; o que provocou este enriquecimento da Isabel e aquela desordem toda de pessoas que só trabalhavam para elas e não para o país, foi o sistema político”. Outra saída, como a que está a ser aplicada, traz, inevitavelmente, problemas.

“Muito antes de a máquina punitiva entrar em funcionamento, chamei a atenção para o facto de que a dimensão do desvio do erário público atingira tais proporções durante os últimos 15 anos do mandato de José Eduardo dos Santos que não podia ser resolvida com uma justiça do tipo punitiva ocidental. Houve muitas irregularidades em todo o sistema; sobretudo o partido no poder, o MPLA, tem culpa no cartório em tudo o que aconteceu”.

Um cenário que, enuncia, foi facilitado por alguns fatores, como a “opacidade comunicacional” — “não se podia falar desta coisa do desvio do dinheiro”. Ou o de “os tribunais terem sido proibidos de agir contra”. Pelo contrário: “O Tribunal Constitucional, por exemplo, foi ‘obrigado’ a emitir um acórdão que dizia que os ministros e os titulares do Estado não podiam ser chamados a serem investigados pela Assembleia Nacional sem autorização do chefe do governo”.

Ora, resume, o jurista, “havia uma licença para o desvio, toda a gente estava envolvida”.  Aliás, há dias, “o próprio Presidente reconheceu isso mesmo”, refere Marcolino Moco, aludindo à entrevista à Deutsche Welle em que João Lourenço afirmou: “Ninguém pode dizer que não fazia parte do sistema. Todos nós fizemos parte do sistema”.

“Todos nós fizemos parte do sistema”, diz Presidente angolano

Mas, em termos práticos, isso significaria o quê em relação a Isabel dos Santos, suspeita de ter lesado o Estado angolano em mais de mil milhões de euros em negócios que envolveram a Sonangol e a Sodiam, por exemplo? Negociar? “Este tipo de justiça não se aplicaria a indivíduos isolados, seria o regime —  que no fundo continua a ser o mesmo, são as mesmas leis, a mesma Constituição, não direi as mesmas práticas, porque João Lourenço inegavelmente trouxe outras — que se deveria autocriticar, reconhecer as irregularidades que fomentou de forma geral”, responde o ex-governante que foi secretário-geral do MPLA nos anos 80.

Angola não foi um país normal

Esse seria um primeiro passo. O segundo, preconizado por Marcolino Moco, consistiria em o Governo “arrepender-se formalmente perante o povo de Angola e a comunidade internacional e prometer que o que aconteceu numa mais aconteceria”.

O terceiro gesto, e “o mais importante, principalmente para estabilizar a economia e encontrar solução para os problemas sociais graves, como a fome, seria recuperar os meios financeiros desviados, sobretudo para o estrangeiro, porque os investimentos já feitos no país deviam ser tratados de modo a não abalá-los porque eles já estão cá, já propiciam empregabilidade, prestam serviços”. Estes teriam um tratamento que se “cingisse apenas a fazê-los cumprir as regras do fisco e outras do género e até talvez submetê-los a um processo paulatino de devolução dos dinheiros desviados, mas o foco seria colocado na devolução das fortunas colocadas fora do país”.

Finalmente, o quarto ponto estaria em “marcar um dia D a partir do qual se começaria a aplicar as verdadeiras normas inspiradas no ocidente — do género quem rouba vai para a prisão — e nunca mais se permitiria qualquer tipo de desvio do erário público à luz do dia (porque sabemos que ao longo da história haverá sempre desvios e corrupção e tentativas de passar para o património individual aquilo que pertence ao Estado).”

Traçado este caminho, isso significa que devia haver negociação com todos? “Naturalmente”, responde Marcolino Moco.

É que, insiste o jurista, não faz sentido seguir uma linha punitiva tipo ocidental como se Angola fosse um país igual aos outros. Não o foi. “O Presidente diz que as pessoas tiveram seis meses para devolverem o dinheiro desviado. Escolheu-se a via que pressupõe que somos um país normal, que nunca houve nada de especial para não aplicarmos a lei como está, a solução política faz-se apenas por essa lei do repatriamento dos bens desviados do país. Mas este sistema pelo qual se quer resolver o problema é inadequado, é uma solução que nos dá a sensação de alguma seletividade”.

Uma solução inspirada no que aconteceu na África do Sul pós-apartheid

Pior, continua Moco: “Estamos a seguir um esquema que não estabiliza o país, vamos por uma solução casuística, hoje é o ministro dos Transportes, [Augusto Tomás, acusado de corrupção e preso sem que lhe tenha sido dadas algumas garantias legais], caso que foi muito descarado na passagem de pastas; depois Isabel dos Santos; alguns generais como Kopelipa e Dino; o ex-presidente Manuel Vicente…”

Como “uns entram [no raio de ação da justiça], mas não sabemos se outros vão entrar mais tarde ou se já não vão entrar mais, isso causa um problema muito grande de desestabilização permanente do quadro nacional e entra em contradição com a vontade que há de tornar Angola num país confiável, onde se possa investir sem grandes sobressaltos”.

Colocando o assunto “no campo do judiciarismo de países que sempre tiveram vida normal, nós vamos errar. Aliás, ouvimos pela primeira vez o Presidente dizer que também fez parte do sistema, então pela lógica desta solução alguém pode vir a dizer que João Lourenço — que até é um homem que tem mostrado boas intenções e quer retificar o rumo do país — também ‘fez isto ou deixou fazer isto e aquilo e deveria ser julgado’… faz sentido?”

Marcolino Moco recorda que abordagens da Justiça semelhantes às que se aplicam a figuras cimeiras de Estados, como os casos de José Sócrates em Portugal ou Lula da Silva no Brasil, ou mesmo Jacob Zuma na África do Sul, não são replicáveis no seu país. “Nesses países a justiça nunca esteve bloqueada, como esteve tantos anos em Angola, onde as pessoas que condenavam é que iam para a cadeia, como o Rafael Marques, já para não falar dos que eram mortos a tiro como aconteceu ao [Hilbert] Ganga da CASA-CE abatido [por um membro da Guarda Presidencial de José Eduardo dos Santos enquanto colava cartazes de uma manifestação, em 2013], em que o assassino foi absolvido porque disse que estava a defender uma causa patriótica”.

Assim, o ex-primeiro-ministro angolano invoca, na sua defesa de uma justiça restaurativa, o exemplo do que se passou na África do Sul no pós-apartheid, com a Comissão de Verdade e Reconciliação que não puniu crimes cometidos nem pelo regime nem pelo partido ANC: “Angola podia aplicar a mesma ideia ao desvio do erário público”.