Jean Seberg teria hoje 81 anos. Durante a carreira como atriz — foram duas décadas passadas em frente às câmaras –, entrou em mais de 30 filmes. Começou na grande máquina de Hollywood, impulsionada por Otto Preminger, fixando-se mais tarde em Paris onde se tornou uma musa da Nouvelle Vague do cinema francês. Seberg não foi uma típica estrela de cinema. Do corte de cabelo ao espírito recatado e ao mesmo tempo combativo, é ela própria a personagem vestida por Kristen Stewart no filme “Seberg”, com estreia marcada para esta quinta-feira, 27 de fevereiro, em Portugal, mas que chegou às salas de cinema nos Estados Unidos a 13 de dezembro.

Na fita dirigida por Benedict Andrews, ressalta a fase em que se muda para a Europa e se torna alvo de uma investigação do FBI, uma perseguição que contribuiu para a degradação da saúde mental da atriz nos últimos anos de vida, segundo declarou o seu segundo marido, Romain Gary, após a sua morte, e que a terá precipitado para uma bem sucedida tentativa de suicídio, a 30 de agosto de 1979. Jean Seberg morreu em Paris, aos 40 anos.

Foi como Joana d’Arc que se estreou na sétima arte, escolhida pelo realizador Otto Preminger entre um extenso rol de pretendentes ao papel. “Santa Joana” estreou em 1957, tinha a atriz apenas 18 anos. Anos depois, numa entrevista ao jornal The Blade, Jean falaria de uma experiência quase traumática — por causa da crítica e por causa de uma exposição pública até então inédita para uma miúda nascida e criada no Iowa. “Tenho duas memórias do ‘Santa Joana’. A primeira foi quando fui queimada numa fogueira, no filme. A segunda, quando fui queimada na fogueira pelos críticos. Esta última doeu mais. Estava assustada como um coelho e isso notou-se no ecrã. Não foi uma boa experiência, de todo. Comecei onde a maioria das atrizes acabam”, afirmou na referida entrevista.

No papel de Joana d’Arc em 1957 © Mondadori via Getty Images

Um ano depois da estreia, Seberg surgia novamente como protagonista de Preminger. O próprio realizador admitiu o risco, por oposição a uma escolha segura como teria sido o caso de Audrey Hepburn no papel de Cecile. O filme em questão era “Bonjour Tristesse”, com a ação a decorrer em França e, mais uma vez, com a crítica a arrasar o desempenho da jovem Jean. Indiretamente, a fita acabaria por lhe mudar a vida. Durante a rodagem, conheceu François Moreuil, com quem casou ainda em 1958 e com quem se mudou para Paris, à época, um terreno cinematográfico mais fértil do que nunca.

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Seberg, a musa da Nouvelle Vague

Seberg foi então a rapariga de Hollywood por quem o cinema francês se enamorou, embora o romance não tenha sido sempre recíproco. A atriz chegou mesmo a resumir esses anos como uma sucessão de personagens e histórias com as quais não identificava. “Estou em Paris porque o meu trabalhado tem sido aqui. Não sou nenhuma expatriada. Irei para onde está o trabalho”, referiu durante a mesma entrevista ao The Blade, em agosto de 1961.

“A vida em França tem as suas desvantagens. Uma delas é a formalidade. O sistema parece estar baseado em reservares o máximo de ti para os que te são mais próximos. Talvez seja melhor do que o outro extremo em Hollywood, onde as pessoas as pessoas dão tanto delas na vida pública que não sobra nada para a família. Ainda assim, é difícil para uma americana habituar-se […] Tenho saudades do lado maus casual e amigável dos americanos. Também tenho saudades das calças de ganga, dos batidos, dos grandes bifes e dos supermercados”, acrescentou.

1960 foi o ano do primeiro divórcio, mas também da grande obra-prima. “À bout de souffle” (“Breathless” em inglês, “O Acossado” na versão portuguesa) foi um sucesso a todos os níveis. Realizado por Jean-Luc Godard, escrito por François Truffaut (que a apontou como “a melhor atriz da Europa”) e coprotagonizado por Jean-Paul Belmondo, o filme estava destinado a tornar-se um clássico.

Numa combinação de força e fragilidade, Seberg eternizou-se na pele de Patricia Franchini, de corte de cabelo ao estilo pixie, vestidos e tops às riscas e a icónica t-shirt amarela (onde se lia “New York Herald Tribune”), revisitada pela californiana Rodarte em 2010, para assinalar os 50 anos do filme. Em 1986, o visual da personagem inspirou Madonna no guarda-roupa do videoclipe do tema “Papa Don’t Preach”.

O visual que marcou a imagem de Jean Seberg. Aqui, por volta de 1065 © Hulton Archive/Getty Images

Seguiram-se muitas outras produções, ora na Europa, ora nos Estados Unidos, e um segundo casamento, com o piloto, diplomata e realizador Romain Gary. Jean Seberg saltitava entre continentes, somando apenas duas indicações a prémios da indústria — em 1962 esteve nomeada para o BAFTA de melhor atriz estrangeira, em 1965 para o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Drama. Não ganhou nenhum.

Em 1962, nasce o primeiro filho do casal. No final dessa mesma década, a atriz começa a passar mais tempo em Hollywood. O ano de 1970 ficou marcado pelo fim do seu segundo casamento, mas com um novo enlace ao virar da esquina. Em 1972, Seberg casa com o realizador Dennis Berry, relação na qual atravessaria os últimos e mais conturbados anos da sua vida.

Jean Seberg e o marido, Romain Gary, em 1967 © KEYSTONE-FRANCE/Gamma-Rapho via Getty Images

As camisas e os sapatos rasos: uma lição de estilo

Existe uma unanimidade em torno da imagem de Jean Seberg. Os traços de uma beleza clássica são inegáveis, porém as opções de guarda-roupa da atriz e, claro, o corte de cabelo fizeram dela um emblema do estilo boyish e andrógino, na realidade muito mais parisiense do que americano. “Ela é o epítome da modernidade”, admitiu Jane Hess, autora do perfil de Instagram Medora, ao The New York Times. “Tudo se resume àquele rosto lindo e fresco sem maquilhagem, ao corte de cabelo loiro, à t-shirt branca, às calças de ganga e aos óculos de sol”, continuou.

Retrato de Jean Seberg por volta de 1965 © Silver Screen Collection/Archive Photos/Getty Images

Uma silhueta contemporânea, como reforçou ainda a especialista. Fora dos sets de filmagem, Jean era a rapariga com camisas largas, camisolões de lã, calças cigarette e sapatos rasos. Para Michael Wilkinson, o responsável pelo guarda-roupa do filme “Seberg”, apresentado no final de agosto no Festival de Veneza, começou por identificar uma personalidade à frente do seu tempo. “Ela era pública e privada, independente mas também muito carente. A ideia de que não temos de nos definir por um único traço ou estilo — isso faz muito sentido hoje”, explicou também ao The New York Times.

O exercício de recriar o guarda-roupa de Jean foi exigente, sobretudo nos seus trintas, momento em os registos fotográficos escasseiam. Yves Saint Laurent, Courrèges, Givenchy, Ungaro — o designer acredita que a atriz terá envergado peças dos génios do momento, embora os visuais sofisticadamente descontraídos (a imagem que perdurou no tempo) também estejam lá.

Os Black Panthers, o FBI e os boatos na imprensa: os anos conturbados de Jean

A partir do final da década de 60, os passos de Jean Seberg começam a ser seguidos pelo FBI. Na origem da investigação esteve o apoio da atriz a organizações de direitos civis como a National Association for the Advancement of Colored People, bem como a grupos dedicados à educação em comunidades nativas dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, os registos de contribuições para o Black Panther Party, grupo político revolucionário de combate à descriminação da comunidade afro-americana, incendiaram as suspeitas do gabinete de J. Edgar Hoover, diretor do FBI, o mesmo que colocou sob monitorização personalidades como John Lennon, Malcolm X, e Muhammad Ali.

Retrato de Jean Seberg em 1966 © Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images

O método usado para neutralizar a ameaça Seberg passou pela imprensa, uma estratégia de difamação pública descoberta apenas após a morte da atriz. Em 1970, Jean estava grávida do segundo filho. Ao mesmo tempo, a notícia de que a criança era fruto de uma relação extraconjugal com Raymond Hewitt, membro dos Black Panthers, e não de Romain Gary, começou a ser veiculada pela Newsweek e pelo Los Angeles Times. A suspeitas sobre um caso fora do casamento não seriam, de todo, infundadas. Jean terá mantido um romance com Carlos Ornelas Navarra, revolucionário mexicano que terá conhecido durante a rodagem do filme “Macho Callahan”, no México. No dia 23 de agosto desse mesmo ano, o bebé nasceu prematuramente, uma menina que morreu dois dias após o parto.

No funeral, que teve lugar na terra natal da atriz, o caixão foi aberto para mostrar que a bebé era caucasiana, afastando os rumores. O casal processou as publicações, alegando que o parto prematuro teria tido como origem os artigos difamatórios. O caso acabou com uma indemnização de mais de 10.000 dólares e com a publicação da sentença em alguns meios de comunicação, incluindo a Newsweek.

Retrato de Jean Seberg, no seu apartamento em Paris, nos anos 70 © STILLS/Gamma-Rapho via Getty Images

Nos últimos anos, Seberg terá vivido atormentada pelo controlo e perseguição do FBI, que incluiu escutas telefónicas. A presença da atriz numa lista negra de Hollywood nunca chegou a ser comprovada, contudo é uma possibilidade, tendo em conta os anos de ausência em produções norte-americanas.

Jean Seberg foi encontrada morta a 8 de setembro de 1979, enrolada numa manta, no banco de trás do seu pequeno Renault, em Paris. A atriz tinha desaparecido a 30 de agosto, de acordo com o seu companheiro da altura, o argelino Ahmed Hasni (o divórcio de Dennis Berry foi nesse mesmo ano), pelo que se concluiu que terá sido esse o dia efetivo da sua morte. Tinha 40 anos. Foi Romain Gary, o seu segundo marido, a convocar uma conferência de imprensa, atribuindo o suicídio da atriz às pressões da investigação do FBI. O mesmo referiu ainda que a atriz já tinha tentado pôr fim à própria vida, salientado a data de aniversário da morte da filha. Gary acabaria também por se suicidar pouco mais de um ano depois.

Manchete do Los Angeles Times no dia 14 de setembro de 1979, cerca de uma semana depois ao corpo de Jean Seberg ter sido descoberto em Paris © Los Angeles Times

O caso foi amplamente noticiado e chegou rapidamente às manchetes dos jornais, incluído a famosa capa da Time com o título “The FBI vs. Jean Seberg”. Uma semana após o corpo ter sido descoberto, o FBI veio admitir a existência de uma investigação, bem como a estratégia de difamação pública. Nas declarações oficiais, o gabinete estatal demarcou-se ainda das decisões tomadas por Hoover, que tinha cessado funções em 1972, quando morreu de ataque cardíaco. Em França, o caso da morte de Seberg acabou arquivado em junho de 1980.