Era uma promessa de campanha e concretizou-se num projeto de lei apresentado pelo deputado único do Chega, André Ventura, para permitir a castração química de agressores sexuais de menores. O projeto de lei deu entrada na Assembleia da República e chegou a estar agendado para discussão e votação esta sexta-feira, dia 28. Mas, dadas as dúvidas de constitucionalidade que a proposta suscitou às várias entidades que apoiam o Parlamento, o presidente da Assembleia da República foi instado a pronunciar-se: devia ou não devia a proposta ser levada a plenário da Assembleia da República? Ouvida a conferência de líderes, e pedidos esclarecimentos adicionais à comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Ferro Rodrigues travou a discussão. A proposta foi, assim, retirada da ordem do dia.

Sabendo que a sua proposta tinha sido retirada e que, dessa forma, já não iria ser discutida esta sexta-feira, André Ventura pediu a palavra no final do plenário desta tarde para recorrer da decisão. Foi aí que se deu o primeiro ato de uma discussão confusa: Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, interrompeu André Ventura para, munida de uma alínea específica do regimento da AR, pedir a Ferro que o recurso não fosse suscetível de intervenções, mas apenas de votação. Ou seja, Ventura não teria tempo para fazer o seu “número de circo”, como apelidaria mais tarde a deputada socialista Cláudia Santos, e haveria apenas uma votação sobre a admissibilidade ou não da proposta.

Ferro começou por não perceber o ponto levantado pela líder parlamentar socialista, defendendo que o deputado do Chega podia apresentar os motivos que o levavam a pedir recurso da decisão. Ou seja, Ventura podia falar. João Oliveira, do PCP, saiu em auxílio da líder parlamentar socialista para esclarecer: “O despacho da não-admissibilidade é suscetível de recurso, sim, mas segundo o número 5 do artigo 81, o recurso é imediatamente votado sem discussão”. Ou seja, André Ventura não falaria.

Mas Ferro deixaria o deputado do Chega falar na mesma. Primeira questão resolvida. Num curto espaço de tempo, Ventura lembrou que outras propostas já chegaram a ser discutidas no Parlamento mesmo havendo dúvidas sobre a sua constitucionalidade (como a proposta do BE que pedia juízes especializados em violência doméstica) e deixou claro que “o PS não manda no país nem nesta câmara”. Fora do plenário, em declarações aos jornalistas, insistiria que pela primeira vez na “história”, o Parlamento tirou um ponto que estava agendado para debate, o que é, no seu entender, um “precedente gravíssimo em democracia” porque cria “um primeiro filtro de censura sobre o que é ou não é possível de ser discutido em plenário”. “Um dia negro para a democracia”, resumiu.

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Dentro do plenário, contudo, Eduardo Ferro Rodrigues já tinha contraposto essa tese. Admitindo que as responsabilidades pela decisão de não admissibilidade do projeto de lei eram suas, e não da comissão que elaborou o parecer, Ferro Rodrigues quis deixar claro que, consigo na presidência da Assembleia da República, projetos de lei (provavelmente) inconstitucionais como este que pede a introdução da pena de castração química para pedófilos, nunca passarão. Isto é, nunca serão admitidos para discussão em plenário.

“No dia em que o Presidente da Assembleia da República agendar, sem qualquer consulta, projetos de lei que são inconstitucionais, estaria a permitir que se votasse e agendasse neste plenário projetos a pedir a reposição da pena de morte, por exemplo, ou a pedir a demissão do Presidente da República. Comigo a Presidente da Assembleia da República, não acontecerá”, disse, recebendo aplausos da bancada socialista.

Depois do statement, a votação: o recurso de André Ventura para permitir que a sua proposta fosse discutida em plenário foi mesmo chumbado pelo PS, PCP, Verdes e Joacine Katar Moreira, o que fez com que o Parlamento travasse a discussão daquele projeto de lei. O BE, o PAN e os partidos da direita (PSD, CDS, IL e Chega) votaram a favor da admissibilidade.

É tudo uma questão de “precendentes“. Fora do plenário, os partidos desdobraram-se em explicações, com Rui Rio a resumir a posição da direita (que é partilhada pelo BE e PAN): “Se alguém quiser apresentar um disparate desses [permitir a castração química, ou até permitir a pena de morte], há um plenário que tem a liberdade de debater o que quiser, tem a liberdade de votar como quiser, e não somos nós que devemos julgar a inconstitucionalidade” da proposta. Ou seja, se, “por absurdo”, uma proposta desse género, claramente inconstitucional, fosse aprovada, havia um tribunal competente para a travar. “Uma coisa é achar que a proposta é inconstitucional, outra coisa é evitar que se debata porque, assim, abrimos uma porta para, de hoje para amanhã, se poder alegar isso a propósito de tudo e mais alguma coisa”, resumiu o líder do PSD.

Também o líder parlamentar bloquista, Pedro Filipe Soares, tinha explicado as razões do BE para no sentido da admissibilidade da proposta:

https://www.facebook.com/pedrofgsoares/posts/2757690954352481?__xts__[0]=68.ARDTixD3zSd0vwkG2kxVL-C0k14NVCaKtOw5UdBExhHTQg6XxV8sodGJQLR_PgCx5AK2KOmgCySxhy86HZc5_6tbssprM2khLHw8TJvMQlpd3dn4WycLVarAbKiDlhFDNxwsWDcamqKoK3dtErzXv60eaWCkhawRQxJ5YLrPb2hlzwQB0vpdxEIoPFIsPrhDDgFy7pqsC66ZGSP98GACyHDq7s56L8HGYSpFTSBc7aUJFheUqnIjCyW4NltLdsTN3CrsyViC0nkkoip-wYy-5_n3GcEcj7skD78aoaiDLRGs-tKjMWLKmOwF4w33UxXa9q5tS5yD6atVZnf26RlP6g&__tn__=-R

Cláudia Santos, do PS, contudo, partilha da opinião do Presidente da Assembleia da República e garantiu aos jornalistas que se fez “história” hoje porque “não permitimos que a Assembleia da República fosse aviltada com a discussão de um projeto de lei que é manifestamente inconstitucional”. O mesmo reforçou o líder parlamentar comunista, João Oliveira, que lamentou a tentativa de André Ventura de “utilizar as liberdades e direitos consagrados na Constituição para acabar com essas mesmas liberdades e direitos”. “Há deputados que se estão nas tintas para a Constituição, mas nós não estamos, e tudo faremos para cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa”, disse.

O projeto de lei do Chega que permite a castração química de pedófilos tinha sido agendado para ser discutido na próxima sexta-feira, à boleia de um projeto de lei do PS que prevê o “reforço do quadro sancionatório e processual” em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores e estabelece “deveres de informação e de bloqueio automático de sites contendo pornografia de menores”. Segundo a deputada socialista Cláudia Santos, a prova de que André Ventura “não tinha sequer interesse em proteger as vítimas de crimes de abuso sexual” é o facto de o seu projeto de lei, agora travado, ter “tantos erros e contradições que, no limite, até acabava por deixar de considerar crime os abusos sexuais de menores entre os 14 e os 18 anos”.