Há sensivelmente dois anos surgiu o RTP Lab, uma plataforma no RTP Play para lançar projetos arrojados que poderiam ter formatos televisivos menos convencionais. “O Meu Sangue” (da Videolotion, a produtora que já tinha estreado, na mesma plataforma, “Subsolo”), que se estreia esta quarta-feira, 4 de março, é a mais recente aposta da plataforma da estação pública. Uma série de três episódios, com cerca de dez minutos cada, que serão apresentados até sexta-feira, ou seja, um por dia. É uma série documental, que não quer ser científica, mas que quer ser um passo na normalização da menstruação.

A ideia arrojada partiu de Tota Alves, que realizou a série em conjunto com Victor Ferreira. Tota Alves, 29 anos, natural de Gondomar, tem tido uma voz ativa nas redes sociais acerca da menstruação, tentando usar a imagem como um meio para a normalização ou, pelo menos, para que se fale sobre o assunto. Em “O Meu Sangue”, uma série de pessoas – sobretudo mulheres – são filmadas a falar sobre menstruação. De diferentes gerações, origens e, sobretudo, com experiências distintas. Uma série para terminar com os tabus sobre o tema? É um início.

[o trailer de “O Meu Sangue”:]

Os três episódios exploram diferentes perspetivas ou histórias?
Os episódios têm sempre pessoas e temáticas diferentes. A narrativa mantém-se, dá para ver os três seguidos, eles completam-se. Têm ganchos que deixam perguntas no ar para o episódio seguinte. Mas acabam por ter temáticas especificas cada um deles.

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Tais como?
No primeiro, o objetivo era falar da primeira vez. A “menarca”, é assim que se chama a primeira vez que a mulher menstrua. Comparamos gerações e culturas, é nesse que aparece a Filó, a senhora angolana que entrevistámos. Começa a deixar pontos para o segundo episódio, que é a questão das dores menstruais, mas onde também desconstruímos a ideia de que o período é algo que só as mulheres têm. Também aprendi muito ao fazer este documentário. Parti para o documentário com uma premissa que estava completamente errada, que é “ser mulher é menstruar”. Escrevi isso no projeto que levou à realização do documentário e já apaguei o que escrevi porque não faz mais sentido. Conheci mulheres que não menstruam e homens que menstruam ou já menstruaram. No segundo episódio temos uma mulher que nunca menstruou e um homem que já menstruou. O terceiro episódio é um remate das minhas próprias conclusões da realização desta série: porque é que ainda é um tabu falarmos sobre menstruação e que práticas são questionáveis em relação à própria menstruação? Nomeadamente, a questão da pílula. Nunca tomei a pílula, mas sei que uma grande parte das mulheres toma a pílula. Não sabia que uma mulher que toma a pílula não menstrua, tem sangue mas é uma hemorragia de privação. Não é menstruação. E nem todo o sangue que sai de uma vagina é menstruação. As mulheres têm hemorragias, não só menstruam, têm hemorragias e têm de perceber o que é um sangue menstrual e um sangue de hemorragia.

Como é que os homens menstruam?
Porque há mulheres que nasceram no corpo de homens e há homens que nasceram no corpo de mulheres. Estou a falar de pessoas transsexuais. No segundo episódio, entrevisto duas pessoas, o Gil e a Aurora, o Gil já menstruou até há pouco tempo e a Aurora nunca menstruou. E o Gil é um homem e a Aurora é uma mulher.

Porque fizeram só três episódios?
Três por enquanto. Terminámos de montar há algum tempo e à medida que me vou afastando do trabalho que fizemos, vou-me apercebendo de tudo aquilo que não está lá. Tenho esperança de que um dia possamos fazer um quarto episódio com o que ainda falta. Acredito que tudo o que falta é infinito. Há sempre histórias novas, maneiras novas de ver as coisas. Ainda agora, ao atravessar a praça do Martim Moniz, pensei: “tantas mulheres da Ásia e não entrevistei nenhuma”. E de certeza que têm uma experiência completamente diferente daquelas que entrevistei. Embora tenha entrevistado uma angolana. Mas cada cultura terá as suas próprias histórias em relação à menstruação e eu não explorei isso tanto quanto gostava.

No início do projeto, foi uma preocupação falar com pessoas de diferentes culturas, de diferentes idades?
Foi uma premissa. Fui-me apercebendo, através da minha própria história, que as realidades, quer agora do presente, quer do passado, eram completamente diferentes. Menstruei pela primeira vez numa época em que já havia pensos higiénicos e tampões. A minha mãe menstruou numa época em que os tampões eram de muito difícil acesso. A minha avó menstruou numa época em que nem sequer pensos higiénicos havia. Ao ver que, dentro de várias gerações que ainda estão vivas, há tantas histórias diferentes, achei que era essencial dar a todas elas voz.

No Reino Unido falava-se muito em taxar os tampões e os pensos higiénicos como “luxury items”. Se o exemplo escocês, em que são gratuitos, se tornar numa inspiração para outros países, acha que mudaria a forma como a sociedade olha para a menstruação?
No caso de Inglaterra, muito especificamente, originou um movimento muito grande chamado PERIOD movement. Porque os bens de higiene menstrual não eram taxados como bens de necessidade. Em Portugal sempre foram. O IVA dos tampões, dos copos e dos pensos em Portugal é de 6%. No caso português, acho que faz sentido, à semelhança do que acontece com seringas, preservativos, que as instituições públicas tenham disponíveis pensos e tampões e até copos menstruais se assim se justificar. Acho que faz parte dos bens essenciais. Infelizmente nem há muitos dados em Portugal para analisarmos índices de pobreza menstrual, como há noutros países, ou vermos qual a necessidade. Mas olhamos à nossa volta, vemos que há mulheres que não têm dinheiro para comer, muito menos dinheiro para comprar pensos e tampões.

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Até porque é um grande negócio.
Há uns dias voltei a lembrar-me daquela cena do filme “Eu, Daniel Blake”, em que a protagonista vai ao supermercado única e exclusivamente para roubar pensos higiénicos. É apanhada. Não me lembro bem, mas acho que é o dono do supermercado, ao invés de chamar a polícia, dá-lhe os pensos higiénicos. Ele próprio compreende que é uma necessidade básica. Voltei a lembrar-me dessa imagem e pensei que há dados sobre furtos em Portugal, o que é furtado em cada contexto, e seria interessante ver a quantidade de pensos e tampões que são roubados nos supermercados. Acredito que haja uma parte substancial de furtos em Portugal que tenha a ver com higiene feminina, especialmente em furtos realizados por mulheres. Posso estar só a lançar um boato, mas acho que faz sentido.

No primeiro episódio há alguém que se refere ao sangue menstrual como o “sangue bom”.
E é o único sangue que ninguém vê. É das coisas que quero que as pessoas falem e pensem sobre esta série. Como é que o único sangue que é bom de existir e que é supernatural, que é o da menstruação… É graças a esse sangue que eu aqui estou, que estamos aqui, que todas as pessoas no mundo existem. Como é que é o único censurado? Na publicidade a produtos menstruais nunca existe sangue. Quando existe, é azul, não sei porquê. Em nenhuma novela as mulheres menstruam. Não temos de ver o sangue, mas podem falar sobre isso. Em nenhum filme vemos sangue menstrual.

Muitas vezes vê-se apenas para o propósito da piada.
Acaba por haver uma canalização da menstruação para piadas: “o Benfica joga em casa”; “ela está de TPM” ou está “naqueles dias”. Acaba por ser uma piada quando é uma coisa… não tenho nada contra o humor, mas falemos do sangue menstrual de uma forma bonita e de uma forma natural.

Já pensava antes assim, como o “sangue bom”?
Sim, foi isso que me levou a fazer este projecto. A Patrícia Lemos é que diz isso, ela diz de uma forma muito bonita. Há outra pessoa no primeiro episódio, a Amélia, que é uma miúda de  quatro anos, eu pergunto como é o sangue menstrual e ela responde a coisa mais simples que há no mundo: “é vermelho como todos os outros sangues.” É bonito percebermos isso. Quem constrói este nojo e esta aversão à menstruação é a sociedade. Não nascemos com repúdio a algo natural, é-nos construído esse repúdio.

Não acha raro crianças de 4 anos já saberem o que é o sangue menstrual?
É muito comum haver intimidade entre mães e filhas. E é muito comum uma criança de quatro anos entrar pela casa de banho quando uma mãe está na casa de banho ou tomar banho com a mãe. Acredito que muitas já tinham visto sangue, ou a mãe a limpar o sangue da vagina, ou um penso com sangue, sangue na banheira. Acredito que tenham visto. Mas como é algo tão natural, se calhar nem dramatizaram.

Devia ter feito esta pergunta no início, mas.. o que a levou a este projeto?
A urgência de se falar sobre sangue menstrual. Na minha vida normal falo sobre menstruação. E comecei através do instagram a mostrar sangue menstrual, de uma forma que acho bonita, dessa forma aquarela. Comecei a mostrar fotografias de gotas de sangue na sanita, cuecas com sangue, calças com sangue. Comecei a postar com algumas referências a outras pessoas no mundo que já tinham feito isso. Achei interessante, decidi adotar isso na minha vida e comecei a fazer isso também. A quantidade de pessoas que me escreveram, enojadas, foi assustadora. Inclusive pessoas da minha família, a compararem sangue menstrual às fezes: “vou começar a postar uma foto do meu cocó para ver se gostas”. Quando não tem nada a ver… E comecei a aperceber-me que era algo que queria combater, com muita força. Comecei a provocar ainda mais essas pessoas. Nem sempre em posts, mais em stories, porque acaba por ir e já está, já passou. Depois comecei a ser mais agressiva, a mostrar mesmo sangue menstrual em stories e o hate começou a ser ainda maior. Foi a partir daí que surgiu essa vontade, aperceber-me de que era urgente falarmos de menstruação.

Tem referido mais “sangue menstrual” do que “menstruação”. Preocupa-a mesmo a imagem do sangue?
Nem tinha pensado bem sobre as minhas estratégias de comunicação verbal.

Mostra que a preocupa mais a imagem do sangue do que falar da menstruação em si, do processo em si. Mais do que é real.
Isso foi uma premissa. Esta série documental não é científica. Não é para aprender sobre o corpo, mas para que falem do corpo humano, do seu próprio corpo.

Se os homens tivessem o período, tudo seria muito diferente?
Se fosse os homens a ter o período, muita coisa era diferente. Se fossem os homens a tomar um comprimido por dia, que inibisse a produção hormonal, era tudo muito diferente. Há muito aqui uma questão de género. Há uma diferença substancial, que na verdade é um reflexo de uma sociedade. Acredito que hoje vivemos um tempo diferente daquele que foi vivido pelas nossas avós, mas ainda está muito longe de ser o ideal. O ideal é a normalização. Ser normal uma pessoa caminhar na rua com uma mancha de sangue nas calças, porque também é normal uma pessoa caminhar na rua com uma mancha de sangue na camisola se fizer uma ferida. Se cair de joelhos e fizer uma ferida, não ponho um pano à volta do meu joelho para ninguém ver o meu sangue. Mas se eu menstruo e ficar com uma mancha nas calças, eu tenho muita vergonha de andar com uma mancha nas calças. Enquanto isso não for normal, há muito trabalho para fazer para a normalização.

A forma como a imagem feminina é representada na publicidade não ajuda…
Na verdade, acho que a representação medieval e renascentista acaba por ser mais plural do que a representação de hoje. Acredito que hoje as meninas que menstruam pela primeira vez estão relativamente à espera disso. Coisa que não acontecia há umas décadas. Mas continua a haver muita vergonha. Tenho trinta anos, das primeiras menstruações que tive, estava de férias, com o meu irmão, em casa dos avós dele, e a menstruação veio e eu não disse a ninguém. Tive de arranjar os meus próprios meios para estancar o sangue, sem ter de dizer ao meu irmão: “olha, vamos comprar pensos.” Tive vergonha. Eu própria sou fruto disso. Isso acontece hoje, uma mulher pede um penso higiénico em segredo. Aconteceu-me há pouco tempo, veio-me o período num avião, fui pedir um penso a uma assistente de bordo. Ela veio-me dar o penso embrulhado no guardanapo. Se fosse um penso de uma ferida, ela não iria embrulhar no guardanapo. E, de certeza, que a senhora que fez isso, fê-lo com a melhor das intenções e não julgo minimamente. Parte-se do princípio de que as pessoas têm vergonha, porque efetivamente têm vergonha. É preciso é desconstruir essa vergonha.

Qual o papel dos médicos? Falou com algum para o documentário?
Acho que este combate pela normalização tem de ser feito por todas as pessoas, especialmente as mulheres, ou as pessoas com útero, especialmente as pessoas que menstruam. Mas tem de haver pilares da sociedade que têm também, a meu ver, a obrigação de o fazer. Um deles é a escola e outro deles é o SNS. Por exemplo, para o planeamento familiar, as únicas pessoas que são chamadas para consultas são as meninas. Os rapazes não são chamados para consultas de planeamento familiar. Só as raparigas, aos quinze anos, recebem uma carta para uma consulta de planeamento familiar. Nessas consultas, quando há uma abordagem ao início da sexualidade das raparigas e uma conversa sobre menstruação, muitas vezes impingem a pílula. A pílula é um método contracetivo, não foi inventada para parar as dores menstruais, acabar com o acne ou para regular a menstruação. A pílula impede que haja uma contraceção. Com a realidade da sexualidade hoje, parece-me pouco rigoroso receitar pílulas às meninas quando há preservativos e quando as práticas sexuais não são as mesmas que eram há 60 anos, quando começou a existir a pílula. Aí, eu acredito que há pouca preocupação do SNS em dar literacia de corpo às mulheres. Se há dores menstruais, elas têm uma razão, um motivo. Há muitas doenças associadas à menstruação, como a endometriose, os ovários poliquísticos, que são muito tardiamente diagnosticadas porque quando as meninas disseram que tinham dores menstruais, os profissionais de saúde receitaram a pílula para acabar com essas dores menstruais. Isso eu acho que é grave. Respondendo à questão, não entrevistei profissionais de saúde, porque o meu objetivo foi não ser científica. A única pessoa que entrevistei e que trabalha nesta área foi a Patrícia Lemos, e entrevistei-a porque ela tem um Instagram dedicado ao útero da mulher, que se chama Círculo Perfeito, dedicado ao ciclo menstrual. Outra pessoa que entrevistei foi a Catarina Maia, que tem a conta de instagram O Meu Útero. Foi por este motivo que as entrevistei.

Está sempre a referir que não queria que fosse científico. Queria que fosse um documentário mais visual?
Visual e de histórias. Queria que fosse visual, não faz sentido falar da menstruação sem ver a menstruação.

Ou que se chamasse “O Meu Sangue” sem que se visse sangue.
No ano passado, o Óscar de Melhor Curta Documental foi para um filme sobre menstruação [“Period. End of Sentence”, de Rayka Zehtabchi]. É sobre menstruação, mas não se vê menstruação. Na verdade, é sobre mulheres que fazem pensos menstruais, é um bom documentário, não tenho nada contra. Mas não se vê menstruação. E, na altura, quando vi, fiquei desiludida. Achei que ia ver menstruação.