Dez dias depois de o Centro Europeu de Controlo de Doenças sugerir o distanciamento social para conter a propagação do coronavírus, vários países da Europa, entre eles Portugal, França e Grécia, começaram por fechar alguns museus, limitar alguns espaços públicos até chegarem aquela que seria a medida mais drástica: o fecho das escolas e o consequente encerramento de milhares de famílias em casa. Em Portugal fecharam-se também discotecas, limitou-se a lotação de restaurantes e espaços comerciais e, nos últimos dois dias, o conselho generalizou-se: permanecer em casa e evitar o convívio social. No Reino Unido, porém, vive-se uma realidade diferente. Os números oficiais do coronavírus, que também sobem a cada dia, não coincidem com os que o governo anuncia publicamente e a estratégia está a ser bem diferente daquela que a própria Organização Mundial de Saúde recomenda. Há já várias vozes a erguerem-se contra esta opção, sobretudo no seio da comunidade científica.

“Faremos o que temos que fazer na altura certa”. “Nós não vamos fechar as escolas agora. O conselho científico é que isso fazia pior do que melhor agora”. “Banir eventos não teria qualquer efeito na propagação”. “Apenas recomendamos às pessoas que se tiverem febre ou tosse permaneçam em casa por pelo menos sete dias”.

Estas foram algumas das frases do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, bem diferentes daquelas que temos ouvido nos últimos dias não só da Direção-Geral de Saúde portuguesa, mas também do Governo de António Costa, que fala em luta “pela sobrevivência” e aconselha todos a que fiquem em casa e evitem ao máximo os contactos sociais.

Por detrás deste discurso do governo britânico há, no entanto, uma estratégia já assumida pelo próprio conselheiro científico: permitir que milhões de pessoas sejam infetadas a fim de conseguirem a “imunidade de grupo”.  Segundo Patrick Vallance, só assim será possível proteger as pessoas mais vulneráveis. Ou seja, nas suas contas, pelo menos 60% da população — cerca de 39 milhões de pessoas — precisará de ficar infectada com a Covid-19 para criarem esta imunidade.

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“O nosso objetivo é tentar reduzir o pico, ampliar o pico, não suprimi-lo completamente”, disse. “A grande maioria das pessoas infetadas fica com uma doença leve para desenvolver algum tipo de imunidade de grupo e para que mais pessoas fiquem imunes a essa doença. Assim reduzimos a transmissão ao mesmo tempo que protegemos aqueles que são mais vulneráveis ​​a ela. Isto é a chave do que podemos fazer”, disse Patrick Vallance, citado pelo The Telegraph.

Os números oficiais dão conta de 798 casos confirmados no Reino Unido, com onze mortos. Esta sexta-feira, no dia em que o Serviço Nacional de Saúde britânico tem estes dados estatístico disponibilizados, Patrick Wallace  falou no entanto de outros números bem mais elevados em conferência de imprensa. “Provavelmente estamos entre 5.000 e 10.000 pessoas atualmente infetadas”, disse. Afirmou também que o Reino Unido estava numa fase anterior à de outros países da Europa relativamente à epidemia.

Mas muitos cientistas — ao olharem para o que está acontecer noutros países, como as restrições nas viagens, a limitação das pessoas em espaços públicos, os museus fechados — mostram-se surpreendidos.

Uma projeção da Universidade de Sussex citada pelo Telegraph mostra que estas medidas adoptada em todo o mundo podem quebrar o pico epidémico e dividi-lo em dois picos menores, libertando mais o Serviço Nacional de Saúde, que corre o risco de não ter capacidade para fazer face a um pico maior, como parece estar a acontecer na Itália e ser o medo dos restantes países da Europa.  E para quebrar o pico, diz o professor Istvan Kiss, desta universidade, deviam ser tomadas medidas como o “teletrabalho, fechar as escolas e manter a distância social”. Mas o governo britânico está a adiar esta decisão temendo que as pessoas se “cansem” com tanto tempo em casa e que no pico da epidemia violem as restrições impostas.

Uma estratégia arriscada do ponto de vista de muitos especialistas. Bharat Pankhankia, médico e professor na Universidade de Exeter, disse: “Eles não podem saber se há um aumento de casos na comunidade se não divulgarem os números e isso pode dar uma falsa perceção de que não temos infeção, fazendo com que as pessoas baixem a guarda. Eu teria imposto controlos mais rígidos. Se o país enfrenta um grande incêndio com potencial para um inferno, começamos a apagá-lo o mais rapidamente possível, não esperamos até que o inferno comece. Precisamos de ser duros e rápidos” disse.

“O governo está a ser complacente”, disse, por seu turno, John Ashton. Este perito em Saúde Pública lembra que em Hong Kong, quando os casos se começaram a multiplicar, houve logo a decisão de os serviços públicos trabalharem em casa, assim como alguns privados e de reduzir os eventos.

Boris Johnson vai fazer reviravolta?

Já o professor Jimmy Whitworth, da Escola de Medicina Tropical e Higiene de Londres, diz mesmo estar surpreendido com o facto de ainda não terem sido tomadas medidas. “Estou surpreendido por ainda não terem sido tomadas medidas mais fortes nesta altura, mas acredito que sejam tomadas em uma ou duas semanas”.  “Quanto mais demorarmos a tomar medidas, mais difícil será enfrentar o pico”, disse.

“Primeiro, não se sabe quando será o pico. E não se pode esperar para sempre. Depois pensas na capacidade do Serviço Nacional de Saúde e nos hospitais. Por isso, se estamos à espera de disseminar o pico, é melhor intervir antes” diz o professor da Universidade de Sussex, Istvan Kiss.

Aliás, Tony Rao, um antigo psiquiatra que agora é consultor do Serviço Nacional de Saúde britânico interroga mesmo: “O risco de disseminação de crianças para a sua própria família é superado pelo risco de várias crianças serem infetadas e se espalharem para várias famílias, incluindo os avós? Certamente é hora de fechar escolas. A fase de ‘atraso’ claramente não está a funcionar”, disse.

Há já uma petição no site do governo conduzido por Boris Johnson, com 40 mil assinaturas, que pede este bloqueio, ou seja, o encerramento de escolas, restrições em locais públicos e o isolamento social.

Os jornais britânicos deste sábado indiciam que Boris Johnson pode estar a preparar uma reviravolta na sua estratégia. Segundo o Telegraph, a partir do próximo fim de semana o governo vai proibir eventos desportivos, concertos e eventos que juntem multidões. A legislação deve ser publicada na próxima semana e, segundo o Guardian, pode incluir um reforço do poder da polícia.