Uma pesquisa rápida em vários blogues de navegação, páginas na internet que seguem e acompanham a travessia de vários navios, de turismo ou de transporte de mercadorias, permite perceber que o RCGS Resolute é um nome conhecido e reconhecido na comunidade. O navio de cruzeiro, que navega com a bandeira portuguesa, colidiu esta segunda-feira com uma lancha venezuelana na América do Sul — motivo pelo qual um destes blogues lhe concede a alcunha de “navio assombrado”. Por isso e porque os problemas deste cruzeiro de bandeira portuguesa já começaram muito antes do incidente mais recente.

O RCGS Resolute, o navio de cruzeiro com capacidade para 146 passageiros mais 100 elementos da tripulação que navega com a bandeira portuguesa hasteada, está registado em Portugal, mais precisamente na ilha da Madeira. Essa é, aliás, a única ligação do navio a Portugal. Ao início da madrugada de segunda para terça-feira, 00h45 locais, 5h45 em Portugal, o Resolute embateu numa lancha da Marinha venezuelana a norte da ilha de La Tortuga, 180 quilómetros a nordeste de Caracas.

Nicolás Maduro acusa navio cruzeiro português de ato de “terrorismo e pirataria”

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O Naiguatá GC-23, o barco da Guarda Costeira da Venezuela que “efetuava um procedimento de controlo de tráfego marítimo”, não resistiu ao embate com o Resolute, um navio de 122 metros de comprimentos e 8300 toneladas, e acabou por naufragar. Segundo o comunicado divulgado pelo Ministério da Defesa venezuelano, as operações de busca e salvamento “permitiram o resgate na íntegra da tripulação”. A nota acusa o comandante do Resolute de não ter procedido ao auxílio imediato aos náufragos e ter prosseguido a rota.

“A ação do navio Resolute é considerada cobarde e criminosa, pois não atendeu ao resgate da tripulação, violando os regulamentos internacionais que regulam o resgate da vida no mar”, podia ler-se no comunicado. Nicolás Maduro, porém, foi mais longe: o presidente da Venezuela garantiu que se tratou de um “ato de terrorismo e pirataria” e pediu às autoridades de Curaçao, a ilha que é território holandês e onde o Resolute está nesta altura atracado, que investigassem.

“O barco [de bandeira portuguesa] que investiu [sobre]a nossa nave é oito vezes mais pesado, é como se um gigante pugilista de 100 quilos agarrasse um menino pugilista e o golpeasse”, acrescentou Maduro. Entretanto, no Twitter, surgiram imagens do Resolute já atracado no porto de Willemstad, em Curaçao, onde é possível ver os estragos provocados pela colisão com a lancha venezuelana.

O RCGS Resolute é um navio de cruzeiro privado, detido pela empresa norte-americana Bunny’s Adventure & Cruise Shipping, com sede nas Bahamas e fundação no ano de 1993. Atualmente, estava sob controlo da One Ocean Expeditions, uma operadora canadiana fundada em 2007 que tem tido problemas financeiros e que, segundo a imprensa internacional, estará perto de entrar num processo oficial de insolvência. A operadora, que chegou a ter três navios de cruzeiro mas nesta altura controlava apenas o Resolute, funcionava principalmente nos mercados do Ártico, da Antártida e da Gronelândia — o preço das viagens começava nos 4 mil dólares, mais de 3.600 euros, e podia chegar aos quase 9 mil dólares, cerca de 8.200 euros. Mas o navio estava junto à costa sul-americana depois de ter estado parado durante meses na Argentina.

[As imagens que mostram o interior do RCGS Resolute]

https://www.facebook.com/534256886680542/videos/441566006481259

Em outubro, dias antes de anunciar planos para uma reestruturação financeira e cancelar as viagens futuras, a One Ocean cancelou uma expedição à Antártida por não ter orçamento para o combustível necessário — já depois de o navio ter partido. “Infelizmente, a difícil realidade é que, nos últimos meses, temos ficado aquém das expectativas altas que tínhamos apontado para nós próprios, enquanto líderes na indústria de cruzeiros de expedição”, esclareceu a operadora no Facebook. Nessa última viagem antes da colisão desta segunda-feira, em outubro — que tinha a duração de 19 dias e custava um mínimo de 21.195 dólares –, a rota inicial do Resolute passava pela Ilhas Falkland, pela Geórgia do Sul e pela Antártida.

Barco da Marinha venezuelana afundou-se após colisão com cruzeiro português

Depois de vários atrasos e adiamentos, já em alto mar, o comandante acabou por comunicar aos passageiros — 140 passageiros, de países como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, África do Sul, Nova Zelândia e Maurícias — que o navio iria regressar ao porto, na Argentina. “Houve uma variedade de emoções em resposta. Foi como as várias etapas do luto. Muitas pessoas choraram. Um casal com cerca de 80 anos tinha poupado a vida toda para esta viagem, quase 50 mil dólares. Estavam em lágrimas”, contou uma passageira ao The Guardian.

Já em Buenos Aires, o Resolute acabou por ficar retido devido a uma dívida que, segundo o jornal argentino Clarín, ascendia “aos sete dígitos em dólares”. Os passageiros foram repatriados mas a tripulação, que reporta a uma empresa alemã, manteve-se a bordo. O navio só voltou a navegar no início deste mês de março, quando a Bunny’s Adventure & Cruise Shipping, a empresa que é dona do Resolute, acabou por saldar as dívidas em causa para evitar perder o cruzeiro numa batalha jurídica. Durante estes meses, e apesar das garantias da One Ocean de que tudo estaria a fazer para reembolsar passageiros e agências de viagens, surgiu uma página de Facebook onde os clientes lesados se juntaram para partilhar experiências e divulgar o dia-a-dia da One Ocean. O Observador tentou contactar a operadora mas sem sucesso — o e-mail disponível no site já está desativado e ninguém atende o número de telemóvel que abrange o continente europeu (e que tem indicativo português).

A imagem que revela o desvio do RCGS Resolute depois da colisão com a lancha venezuelana

Depois de sair de Buenos Aires, o Resolute partiu para norte sem destino ou ETA, estimated time arrival, hora estimada de chegada. Segundo um blog de navegação, que acompanhou o percurso do navio, o Resolute terá chegado à costa de Trinidad a 25 de março, onde acabou por reabastecer. A 29 de março, no passado domingo, o navio começou a reportar que não estava sob comando — ou seja, que não conseguia efetuar manobras em alto mar e que, por isso mesmo, todas as embarcações se deveriam manter afastadas. Foi já a 9 milhas náuticas da ilha de La Tortuga, e na segunda-feira, que o Resolute começou a navegar normalmente e acabou por dar como destino o porto de Willemstad, em Curaçao, onde está atualmente atracado.

No Twitter, para além das fotografias do Resolute com estragos visíveis, surgiram imagens que mostram o abrandamento do navio junto à ilha de La Tortuga, teoricamente quando colidiu com a lancha da Marinha venezuelana. Segundo Augusto Santos Silva, as duas grandes questões que precisam de esclarecimento são se o incidente ocorreu em águas internacionais ou em águas sob controlo venezuelano e se, como acusou Nicolás Maduro, o comandante do Resolute não procedeu ao auxílio aos náufragos. Segundo Augusto Santos Silva, o navio circulava sem passageiros, apenas com tripulação a bordo, e ainda não é certo que essa tripulação não inclua qualquer cidadão português. Até agora, “não foi ainda requerido nenhum apoio consular”, garante Santos Silva, que reiterou que este não é “um incidente entre Estados”.

Augusto Santos Silva não descarta existência de cidadãos portugueses na tripulação do navio que afundou lancha venezuelana

Em declarações à Rádio Observador, o ministro dos Negócios Estrangeiros revelou que recebeu “versões contraditórias” por parte das autoridades venezuelanas e holandesas e por parte da empresa proprietária do navio. “As informações que tenho ainda são muito lacunares e são contraditórias. A versão das autoridades venezuelanas diz que se tratou de um abalroamento — a lancha da Marinha venezuelana terá intercetado o navio em águas territoriais venezuelanas e o navio reagiu, abalroando a lancha e provocando o seu afundamento, nem sequer prestando socorro aos náufragos”, explicou Augusto Santos Silva. O comandante do Resolute, porém, indica que contactou o posto de socorro de Curaçao, cumprindo a regra de providenciar socorro, e fala também num alegado disparo da lancha venezuelana. A proprietária do navio retira qualquer responsabilidade ao comandante.