“Alentejo, uma aldeia gaulesa”. Ao longo das primeiras semanas em que o novo coronavírus atingiu Portugal, não faltou quem tenha feito a comparação entre a aldeia ficcional de Astérix e Obélix, que os romanos não conseguiam conquistar, e a região nacional que parecia impermeável ao novo coranovírusA comparação, contudo, pouco tempo durou. Em breve o Alentejo, à semelhança dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, começou a registar casos, com o vírus a propagar-se a todo o país.

É mais uma prova, se provas ainda faltassem, da capacidade deste vírus e se propagar e da facilidade com que a Covid-19 se transmite. Neste momento, são muito poucos os países em todo o mundo que ainda não registaram qualquer caso de infeção com o novo coronavírus. Algumas ilhas no Pacífico mantêm-se intocadas pela pandemia, como é o caso do Vanuatu ou das ilhas Salomão. Outros, como a Coreia do Norte ou o Tajiquistão, afirmam não ter qualquer caso registado — mas a fiabilidade dos dados nestas ditaduras levantam dúvidas.

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Com mais de 100 mil mortes já provocadas pela Covid-19 em todo o mundo, não há dúvidas da letalidade do vírus e da sua capacidade de propagação. A ideia de “aldeias gaulesas” parece, por isso, quase inaplicável ao novo coronavírus. Mas em 1918, num tempo onde a globalização ainda não unia todos os pontos do globo, houve aldeias que conseguiram isolar-se o suficiente para impedir um vírus de entrar ou para, pelo menos, conter ao máximo a sua propagação dentro da comunidade. E o vírus tratava-se nada mais nada menos do que o da Gripe Pneumónica (também conhecida como Gripe Espanhola), a pandemia mais letal da História.

Um feito ainda mais extraordinário se tivermos em conta os níveis de conhecimento científico, saneamento e acesso a cuidados de saúde de que o mundo dispunha em 1918, quando comparados com o presente. Ao todo, estima-se que a Pneumónica tenha infetado cerca de 500 milhões de pessoas e matado cerca de 50 milhões.

Lições da pneumónica: o que fizeram as comunidades que escaparam ilesas à gripe de 1918

No meio deste cenário, alguns locais conseguiram impedir a chegada do vírus. Foi o caso de várias ilhas, devido ao seu isolamento natural, à semelhança do que está a acontecer agora com a Covid-19: a ilha Lau e a ilha Yasawa (pertencentes às ilhas Fiji), bem como a brasileira ilha Marajó, no Amazonas, não registaram qualquer caso de infetados pela gripe de 1918. Também as ilhas da Nova Caledónia e de Santa Helena, embora tenham acabado por registar casos de infetados, conseguiram adiar durante meses a chegada do vírus — e, quando este chegou, produziu sintomas mais ligeiros. Uma explicação possível é dada pela BBC, que se debruçou sobre estes casos de “aldeias gaulesas” em 2018: “A investigação científica sugere que, com o tempo, à medida que o vírus se ia propagando pelas populações, acumulava mutações que naturalmente reduziam a sua própria capacidade de provocar doença.” Ou seja, ali chegado, o vírus já vinha de certa forma enfraquecido.

O caso mais conhecido: a “excecional” Gunnison, Colorado (EUA)

Mas não houve só ilhas a ter direito a este epíteto. A cidade de Gunnison, no Colorado (EUA), é um dos exemplos destes locais quase inalcançados pelo vírus sobre o qual se conhecem mais pormenores. Localidade mineira com cerca de 1.300 habitantes à altura, acabou por ter muito poucos casos e o número de mortes contam-se pelos dedos das mãos. Porquê? Bom, para começar, desde cedo que houve uma consciência da gravidade da situação. “A gripe anda atrás de nós”, titulava o Gunnison News-Champion de 10 de outubro de 1918, como conta o The Guardian. Todos os dias, o jornal escrevia um artigo de primeira página sobre o tema.

Seis dias depois, o governador do estado do Colorado, Julius Gunter, proibia os ajuntamentos. Mas a nível local, em Gunnison, fazia-se mais. “Impus uma quarentena estrita ao condado de Gunnison, face ao resto do mundo. Foram erguidas barricadas e cercas em todas as principais estradas à volta do condado”, anunciou FP Hanson, médico responsável do condado. “Quem quiser pode abandonar o condado à vontade. Ninguém poderá regressar, a não ser que se submeta a quarentena voluntária.”

Os que violaram estas regras cedo se aperceberam de que as autoridades locais estavam prontas a castigá-los. Três pessoas fugiram da quarentena e, ao serem denunciadas, foram detidas. “Que este pequeno incidente mostre aos forasteiros a posição do condado de Gunnison. Não temos a gripe e não tencionamos tê-la”, resumiu o médico local JW Rockerfeller.

Quando o senador local Dexter T. Sapp chegou de comboio a Gunnison, foi colocado de imediato em quarentena, sem lhe ser concedida qualquer exceção por virtude de ser político, escreve o jornal local Gunnison Times. Ao fim de três meses, em meados de janeiro de 1919, as escolas foram reabertas. O Times local fala em “cansaço” da população, em receios de que os alunos “chumbassem o ano” e em “dificuldades económicas”. Mesmo assim, Gunnison não vacilou na sua missão: a cada dia, os alunos eram vigiados por um médico; e a quarentena para o resto da população manteve-se.

A quarentena acabaria por ser terminada em finais de fevereiro. De imediato surgiram novos casos de Gripe Pneumónica no condado. A maioria dos infetados, contudo, teve sintomas ligeiros. Ao todo, Gunnison teve muito menos infetados e menos mortes do que os condados à sua volta: segundo a investigação do Centro da História da Medicina da Universidade do Michigan, registaram-se dois casos no condado e apenas uma morte. O Denver Post fala em 58 casos registados em 1918 no condado o que, mesmo assim, corresponde a 1/5 da média do estado do Colorado. Após o fim da quarentena, Gunnison terá registado mais 140 casos e 5 mortes de pneumonia, possivelmente provocada pela Gripe Espanhola.

A gestão que que Gunnison fez da Gripe de 1918, marcada pela aplicação de ‘sequestro de proteção’, é particularmente impressionante se tivermos em conta que, em volta, praticamente todas as cidades e condados foram fortemente afetados pela pandemia”, concluiu o resultado da investigação Universidade do Michigan. “A cidade de Gunnison foi excecional.”

Mas na epidemiologia não há certezas. Alex Navarro, investigador da mesma Universidade do Michigan, partilhou com o Colorado Sun um outro detalhe importante: “Apesar de eles terem feito tudo bem [desde que decretaram a quarentena], há já quatro ou cinco semanas que o vírus circulava pelo estado”, avisa. “Eles tiveram sorte, porque o vírus não chegou à cidade antes. Caso contrário, não teria valido de nada.”

Agora, 102 anos depois, Gunnison volta a tomar medidas para lidar com outra pandemia, a da Covid-19. Logo na segunda-feira 16 de março, as autoridades locais proibiram ajuntamentos de dez ou mais pessoas na cidade, incluindo dentro de bares, restaurantes e creches. Neste momento, o condado trava uma luta judicial com um procurador-geral, a propósito da medida que impôs para impedir não-residentes de entrarem em Gunnison.

Yerba Buena, a base naval onde os isolados tinham direito a bolo e a espetáculos ao vivo (EUA)

Yerba Buena, ao largo da baía de São Francisco, tinha duas vantagens no combate contra a Pneumónica: por um lado, era numa ilha; por outro, dispunha de disciplina militar, ou não fosse uma base naval norte-americana. Contudo, tinha ali concentradas cerca de 6 mil pessoas.

Com a pandemia a atacar São Francisco (quase 30 mil ficariam infetados até ao final do ano na cidade e desses quase 3 mil morreriam), Yerba Buena decidiu que ninguém mais entraria na base. Segundo o estudo da Universidade do Michigan, os condutores dos barcos que levavam mantimentos tinham de ficar a uma distância de seis metros de cada marinheiro da base que se aproximasse para recolher a carga.

Ao todo, os residentes em Yerba Buena ficaram 62 dias isolados. Mas as autoridades da base decidiram que era importante garantir que havia distrações suficientes para todos os marinheiros e os membros da sua família que lá residiam. Por isso, e de acordo com o San Francisco Gate, foi montada uma espécie de feira, que incluiu “um encantador de serpentes e um engolidor de espadas” e concessões a vender “cachorros-quentes, gelado, bolo e limonada cor-de-rosa”.

Sem casos a registar, a 1 de novembro de 1918 o Deseret Evening News descrevia Yerba Buena como o local “Onde a quarentena ‘funcionou'”. Contudo, assim que a quarentena foi levantada, o vírus entrou de rompante. A 21 de novembro de 1918, a base naval retomou o contacto com São Francisco e menos de duas semanas depois registava o primeiro caso. Ao todo, 28 pessoas da base contraíram a Gripe Espanhola e pelo menos cinco morreram como resultado. Razão pela qual o epidemiologista Howard Markel, da Universidade do Michigan, avisou: “Assim que se abrem as portas, o vírus entra no corpo das pessoas.”

As vilas remotas do Alasca, o estado com mais mortes per capita dos EUA

Um local tão isolado e remoto como o Alasca poderia ser um dos sítios onde a Gripe de 1918 teria mais dificuldade em chegar e espalhar-se. No entanto, lá chegou, como ao resto do mundo. E por onde passou deixou marca: ao todo, de acordo com o Gabinete de Estatísticas do Alasca, três mil pessoas morreram entre 1918 e 1919 naquela estado — o que significa que, per capita, foi o segundo lugar em todo o mundo onde mais se morreu com a Pneumónica, ficando apenas atrás da Samoa Ocidental.

No entanto, alguns lugares no Alasca mantiveram-se remotos e incontactáveis, razão pela qual a Gripe Espanhola não os atingiu. E outros, como Egegak e Shishmaref, mantiveram-se oásis rodeados de outras áreas com altas taxas de infeção.

Shishmaref é um dos locais no Alasca aonde o vírus não chegou porque, ao serem avisadas, as autoridades locais tomaram medidas. Ali, segundo o jornal local The Nome Nugget, recebeu-se um aviso de Deering dando conta de que havia pessoas a morrer com gripe nas aldeias em volta. De imediato, a aldeia de Shishmaref colocou homens armados a 12 quilómetros a sul, impedindo qualquer pessoa de passar. E a Gripe Espanhola passou assim ao largo desta aldeia do Alasca.

Vários locais no Alasca não foram afetados porque foram sendo aplicadas quarentenas ao longo das rotas até lá ou pelo seu isolamento. À altura, aquelas comunidades eram bastante auto-suficientes em termos de comida e roupa”, explicou à BBC a antropóloga Nicole Braem.

Outros casos, contudo, parecem ser os de “aldeias gaulesas” por milagre. É o caso de Egegak, no Alasca: “É estranho relatar que Egegak foi a única aldeia na baía de Bristol a não ser afetada pela doença e os nativos pareciam estar tão saudáveis como sempre, quando partimos”, pode ler-se num relatório de um enviado da Alaska Packers’ Association, um fabricante de salmão enlatado.

“Alguns sítios como Egegak escaparam à Gripe e ninguém sabe explicar porquê”, apontou a historiadora Katherine Ringsmuth à BBC. “Foi um ano terrível para o salmão. Como eles andavam a produzir muito salmão enlatado para enviar para as trincheiras na Europa [aquando da I Guerra Mundial], os stocks de peixe estavam em queda. Isso pode significar que ninguém tinha motivos para ir ali. E, portanto, foi por pura sorte”, arrisca especular a historiadora.

Samoa Ocidental: 24% de taxa de mortalidade; Samoa Americana: 0%

A Samoa Ocidental foi, como já tínhamos dito, o local de todo o mundo onde mais pessoas morreram com a Gripe Pneumónica, per capita. Ao todo, 24% da população, na grande maioria pessoas entre os 18 e os 50 anos, morreu afetada pela doença.

O descalabro foi ainda mais gritante porque, a apenas 200 quilómetros de distância, a ilha da Samoa Americana conseguiu impedir não apenas mortes, mas a existência de qualquer caso dentro das suas fronteiras. O epidemiologista John Ryan McLane, que estudou os dois casos, aponta para razões estruturais: “A Samoa Ocidental era uma colónia alemã que tinha três vezes mais visitas de navios estrangeiros do que a Samoa Americana, que era uma base militar meio negligenciada”, explicou.

A gestão da Samoa Ocidental tinha sido dada à Nova Zelândia. Mas quando o navio Talune chegou, os marinheiros que estavam doentes esconderam esse facto. O governador da Samoa Ocidental, o coronel Logan, não sabia que existia uma Gripe nova e os comerciantes não queriam uma quarentena. Portanto, Logan decidiu esperar por ordens”, diz o investigador.

Já a Samoa Americana, por ser uma base militar, pôde muito mais facilmente impor uma quarentena. Qualquer barco que quisesse atracar na ilha tinha de se submeter a uma quarentena de cinco dias. Isso fez com que o vírus não ali chegasse durante bastante tempo e, quando tal aconteceu, não matou ninguém. Entretanto, a 200 quilómetros dali, a Samoa Ocidental era devastada. A Samoa Americana chegou a oferecer-se para enviar mantimentos e uma equipa de médicos, mas, segundo conta a imprensa neo-zelandesa, o coronel Logan não aceitou.

Coromandel, a cidade da Nova Zelândia que se manteve intacta

O vírus da Gripe Espanhola tardou em chegar à Oceânia, mas quando o fez, chegou em força. Ao todo, na Nova Zelândia, 8.600 pessoas morreram em apenas oito semanas — um número ainda mais impressionante se tivermos em conta que, à altura, a população do país era de cerca de um milhão.

A exceção foi Coromandel. A vila foi de imediato colocada em quarentena, incluindo os navios que vinham da capital, Auckland, cujos passageiros eram colocados em isolamento durante um dia e vigiados por médicos. Ao longo das estradas foram também colocados postos de controlo, onde se media a temperatura aos que passavam. No caso de ser elevada, eram impedidos de entrar.

O major Lovell Gregg, responsável pela resposta, descreveu as suas ações num artigo publicado no New Zealand Journal of Medicine: “Nas estradas a três quilómetros de Coromandel foram erguidas câmaras de formalina [um desinfetante] e todos os que chegavam tinha de ser expostos aos fumos durante cinco minutos. Dia e noite havia homens a vigiar estas barreiras”, conta.

Quando a epidemia chegou aos povos indígenas em Manaia, a cerca de 12 quilómetros de Coromandel, o major também agiu, pedindo ao chefe daqueles maoris que isolasse as casas dos 55 infetados. A sua esposa reuniu as outras mulheres da vila e todas preparam mantimentos. Gregg, com uma “máscara de gaze embebida em ácido carbónico”, levou-os até aos indígenas: “Eles responderam bem e desde aí passei a ir a Manaia com um carragamento a cada dois dias. Passava sete horas por dia naquelas casas, a alimentá-los, a medicá-los e a tratá-los. Conseguia sempre deixar comida suficiente até à minha próxima visita. Desde que tomei o comando, não houve casos novos na região. Dez dos 55 morreram.”

Os copos de penálti e as máscaras na rua que ajudaram a Tasmânia (Austrália)

À semelhança do que aconteceu na Nova Zelândia, a distância física da Austrália do resto do mundo não impediu que a Gripe Espanhola lá chegasse. Ao todo, 12 mil pessoas morreram no país, muito embora a Pneumónica só tenha chegado à Austrália na chamada “terceira vaga” da doença, em teoria mais enfraquecida.

Uma vez mais, houve um local que impôs medidas drásticas de quarentena e registou uma das taxas de mortalidade mais baixas do mundo: a Tasmânia. A ilha começou por limitar o número de pessoas que se podiam juntar num bar (no máximo três) e a duração de tempo que lá podiam passar dentro (apenas cinco minutos). O resultado, explica o académico Craig Carnes, foi que de imediato os consumidores se habituaram a beber as bebidas de um trago: “As pessoas pegavam nas suas cervejas e tentavam beber de penálti a maior quantidade que pudessem”, explicou à cadeia de rádio e televisão australiana ABC.

Rapidamente se percebeu que tal não era suficiente. Os locais públicos foram encerrados, os ajuntamentos proibidos e o uso de máscara foi tornado obrigatório na rua. Os barcos que ali chegassem passaram a ser automaticamente colocados em quarentena durante uma semana. As regras parecem ter compensado: à medida que o vírus entrou na Tasmânia, revelou ser de uma estirpe mais fraca. Ao todo, apenas 171 pessoas morreram o que, de acordo com a ABC, corresponde a uma das taxas de mortalidade mais baixas do mundo para a Gripe de 1918.

A Gripe Espanhola não atingiu toda a Espanha: Canárias com poucas mortes

A Gripe de 1918 ganhou o nome de Espanhola mas, tecnicamente, não teve ali origem. A perceção errada veio do facto de Espanha ser um dos primeiros países europeus de onde surgiram notícias de casos, por ser um dos poucos países neutrais durante a I Guerra Mundial, de onde os correspondentes conseguiam escrever livremente. Apesar disso, mais de 250 mil morreram em Espanha, infetados pela Pneumónica.

As ilhas, contudo, foram muito menos afetadas. De acordo com o jornal El Dia, as Canárias e as Baleares foram beneficiadas pela redução dos fluxos marítimos devido à I Guerra Mundial, que decorria naquele momento. Só a partir de agosto de 1918 é que o vírus chegou aos dois arquipélagos. As Baleares registaram um número de mortes semelhante ao do continente, mas as Canárias, surpreendentemente, não. Segundo o El Dia, a taxa de mortalidade em Espanha era de 127 pessoas em cada 10 mil, mas nas Canárias não terá ido além das 5,4 mortes por cada 10 mil pessoas.

Porquê? “As condições meteorológicas” e “as características da população” são apontadas pelo jornal como hipóteses que ajudam a explicar a limitação da propagação do vírus. Mas nada mais se sabe, para já.

Amieiro (Portugal), a aldeia das fogueiras que deixaram a Pneumónica ao largo

Com a Gripe de 1918 a chegar a todos os cantos do mundo, Portugal não foi exceção. Debilitado pelas más condições de vida de grande parte da população, estima-se que cerca de 60 mil portugueses terão morrido na sequência da Pneumónica. Algumas zonas do país chegaram mesmo a perder 10% da sua população.

Mas também aqui houve um local onde o vírus não chegou. Amieiro, uma pequena aldeia de Alijó à beira do rio Tua, conseguiu manter a Gripe Espanhola à margem. Isso mesmo recordaram alguns habitantes à agência Lusa, em fevereiro, a propósito da propagação da Covid-19 por todo o mundo. “Quando se falava em maleitas, toda a gente combinava à mesma hora acenderem uma fogueira ao escurecer, na rua, à porta de cada pessoa. Iam então buscar molhos de mato verde, alecrim, urze, carqueja, rosmaninho e toda a gente fazia a fogueira à mesma hora”, contou à Lusa Fernando Quintas, antigo ferroviário e presidente de junta, com 74 anos.

Situada num vale e rodeada por “sete colinas”, como dizem os habitantes, era também um lugar de difícil acesso. “Nas aldeias à volta havia pessoas infetadas, mas aqui não houve ninguém, nem houve mortos provocados por essa doença. Não sei agora se foi do fumo ou se foi da posição geográfica em que o Amieiro se encontra”, acrescentou o presidente da junta.

Amieiro recorda como sete colinas e fogueiras protegeram aldeia da pneumónica

O caso foi inclusivamente mencionado no Estudo Clínico da Gripe Epidémica, escrito em 1920 por Celestino da Costa Maia. “Não seria por este meio que o Amieiro, pequena povoação de 400 habitantes do concelho de Alijó, rodeada por todos os lados de freguesias onde a Gripe grassava impiedosa, conseguiu escapar aos seus horrores? De facto, os habitantes do Amieiro, logo que a seu lado o incêndio gripal se ateou, acenderam fogueiras em toda a volta da sua aldeia, mantendo-as acesas enquanto o flagelo não desapareceu das visinhanças [sic]. Não seria este o fogo sagrado que os protegeu? Não desviariam estas fogueiras as correntes atmosféricas portadoras da morte?”, interrogava-se o seu autor.

A profilaxia coletiva foi declarada ineficaz, mas factos há, sobre os quais reflectindo, se compreende, em certos casos, a sua possibilidade”, acrescentava mais à frente Celestino da Costa Maia, apontando novamente para Amieiro como exemplo. “Que significação pode ter o caso, já citado, da povoação do Amieiro, situada entre penhascos nas margens do Rio Tua?”, interrogava-se.

Ainda hoje não há consenso sobre o efeito de estas e outras medidas de quarentena e isolamento social, particularmente num mundo globalizado como aquele em que vivemos atualmente e que é em muito diferente do mundo de 2018 — mas que, também por isso mesmo, tem mais armas de combate às epidemias do que tinha há um século.

“Em 1918 havia muito pouco conhecimento sobre vírus e sobre o que provocava a pandemia”, apontou Markel, investigador da Universidade do Michigan, à BBC. “Hoje em dia temos mais hipóteses para conseguir lidar com isso. Temos antivirais, temos hospitais com unidades de cuidados intensivos, temos ventiladores e uma vigilância muito melhor. Mas também viajamos mais e mais rápido do que nunca, o que pode fazer com que a propagação seja muito mais rápida do que aquilo com que estamos preparados para lidar.” Em caso de dúvidas, o melhor é seguir os exemplos destas “aldeias gaulesas” e ficar em casa.