Há uma mesa num boteco do Rio de Janeiro que ficou mais pobre, sem clientes. Era nessa mesa que o autor de A Casa dos Budas Ditosos (de 1999) costumava encontrar-se para um chopinho e uma conversa com o autor de A Grande Arte (1983). Mas dos frequentadores da mesa já não resta nenhum: João Ubaldo Ribeiro – o autor de A Casa dos Budas Ditosos – morreu a 18 de julho de 2014; Zé Rubem Fonseca – o autor de A Grande Arte – faleceu esta quarta-feira, aos 94 anos. E com a sua morte perdemos o autor mais cru, realista e sexuado da língua portuguesa, o mais prodigioso observador e mais lúcido intérprete do machismo latino.
Não que isto vá interessar grandemente aos portugueses: por cá, neste momento, as trends do Twitter são Bruno Nogueira, Estado de Emergência, Slow J e Varandas. O irónico é que consigo imaginar Fonseca a escrever um romance sobre um presidente de futebol megalómano em cuja vigência a respetiva claque assalta o campo de treinos e agride a equipa, sem que nunca se saiba quem foi o responsável. Agosto, o prodigioso Agosto, é exatamente isso: um romance sobre quem fez o quê – que enfia o Brasil todo lá dentro.
Estamos muito distantes de 1973, quando O Caso Morel foi um escândalo no Brasil – o Morel do título era Paul Morel, um excêntrico artista plástico de vanguarda que foi preso na sequência de um crime (a morte de uma das suas namoradas), não sendo claro que ele seja realmente o autor do crime.
Morreu Rubem Fonseca: mestre do conto, um dos maiores escritores brasileiros e prémio Camões em 2003
Na prisão recebe a visita de Vilela, um ex-policial e escritor, que Fonseca já usara como protagonista do conto “A coleira do cão” (que aliás dá nome a um livro de contos de 1965, onde o conto está incluído). Morel aproveita o encarceramento para escrever um romance que parece ser autobiográfico e que vai mostrando a Vilela – e o mundo que Morel revela nesse romance é um mundo (sórdido, violento, pulsional) que um Brasil mergulhado em ditadura não estava habituado a ver, fazia de conta que não existia.
O relato de Morel era uma parada de pulsões mal contidas, que iam de uma relação com uma prostituta que posava para fotos publicitárias a uma filha de embaixador, de apenas 20 anos, com quem mantinha uma relação mergulhada na violência e no sadomasoquismo – um termo benévolo para descrever a necessidade de Joana de ser agredida por fim a atingir o orgasmo. Morel acaba a realizar autênticas sessões de tortura em Joana, de modo a dar-lhe o prazer que ela deseja, mas ao mesmo tempo a relação sai da esfera da simulação e entra num grau de violência em que a morte pode ser real.
Este binómio entre desejo e violência, que envolve praticamente atos de tortura não é um acaso: O Caso Morel foi escrito em 1983, durante a ditadura militar brasileira, regime que foi de 1 de abril de 1964 até 15 de março de 1985. A incapacidade de Joana de atingir o orgasmo e a sua necessidade de ser agredida simboliza a repressão desse regime.
Mas Fonseca era um escritor demasiado sofisticado e lido para se deixar pela pornografia e pela violência e o percurso de Morel é também uma reflexão sobre o valor da arte: inicialmente, Morel é um fotógrafo publicitário, que para dar vazão à sua veia artística cria instalações formadas por tubos de esgoto – instalações decididamente anti-comerciais mas que acabam por gerar mais dinheiro que as suas fotos de publicidade (não duvidem do sarcasmo de Fonseca em relação ao mundo da arte contemporânea).
Morel aspira a uma certa pureza, traída pelo reconhecimento do mundo burguês, que lhe permite os excessos carnais e imorais, pelo menos até à morte de Joana – talvez o ato de matar Joana seja a concretização da sua pulsão de destruição, talvez seja a única coisa real que exista para ele, Morel, num regime que reprime todas as emoções do seu povo.
O impressionista das maldades
Rubem Fonseca não inventou o masoquismo, as pulsões destrutivas, a pulsão sexual sem freios, a violência – mas viu-a desde muito novo. Filho de portugueses transmontanos, emigrados para o Brasil, nasceu em 1925, em Juiz de Fora, Minas Gerais, mas mudou-se muito cedo para o Rio de Janeiro. Depois de estudar Ciências Jurídicas e Sociais enveredou – a 31 de dezembro de 1952 – pela carreira policial, em São Cristóvão, no Rio.
Não durou muito tempo nas ruas: em fevereiro de 1958 tornou-se o responsável pelo serviço de relações públicas da polícia. Mas o que viu e o que os colegas de giro lhe contavam acabou nos seus livros, que começaram por ser de contos — Os prisioneiros, de 1963, é o primeiro; mas é com O Caso Morel que atinge estatuto de escritor maior, indispensável.
Sendo visto primordialmente como um contista, da sua obra destacaria cinco romances: O Caso Morel (1973), A Grande Arte (1983), Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988), E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997) e, acima de todos, um livro de quem nunca ninguém fala, Agosto (1990), o mais belo livro triste e realista da língua portuguesa.
Quando Fonseca publicou Agosto já havia explorado, de todas as maneiras possíveis, a tesão, o pecado, o pequeno e o grande furto, a vileza humana, a corrupção, aquela honra muito latina que leva um homem a pegar numa arma – todo um cardápio do machismo latino que em Agosto é apurado ao extremo talvez pelo tom de amargura que perpassa o livro.
É que em Agosto o excesso é comedido – ele está lá, numa espantosa demonstração da corrupção brasileira, nos polícias que recebem dinheiro do jogo do bicho, nos políticos que engendram golpes e assassinatos; aliás, o pano de fundo do romance é o assassinato de um empresário (em 1954), um atentado falhado contra o jornalista Carlos Lacerda e mais umas quantas mortes que redundam no suicídio de Getúlio Vargas. O excesso está lá – mas desta vez é-nos transmitido com a contenção que a gravidade do contexto merece.
Agosto é um livro de tipo que não obedece às regras desse tipo – é um noir, com um admirável protagonista, Alberto Mattos, talvez o único polícia honesto que ainda reste. De certo modo, Mattos pode ser visto como uma variação sobre um tipo de personagem que Clint Eastwood definiu: o homem reto que afasta todos em sua volta, em particular as mulheres. Há dois traços definidos em Mattos: o primeiro é a sua incapacidade de receber afeto; a segunda é uma úlcera e o que a úlcera nos diz é que por trás da sua fachada calada há um sofrimento constante, de que ele praticamente não cuida. Tal como as personagens de Eastwood se oferecem constantemente ao sacrifício, Mattos é um masoquista que insiste na verdade, um cordeiro passível de ser eliminado.
É um policial, um “who done it?”, mas é bem mais que isso: antes de mais, Mattos simboliza o Brasil, ou o homem reto do Brasil, que procura fazer o bem e só se depara com corrupção e imoralidade – depara-se com a sua pequenez, a sua impotência face às grandes forças da História, do dinheiro. A úlcera real que Mattos transporta é a úlcera metafísica que qualquer homem transporta na alma se o seu povo for privado de liberdade e justiça.
Agosto mostra tudo isso: os mandantes, as tentativas de calar a imprensa livre, os negócios, os assassinos que se vendem por meia dúzia de tostões porque cresceram na violência e para eles matar é normal, mostra uma sociedade estratificada, hierarquizada, em que uns quantos detêm o poder e sufocam as liberdades dos outros, mostra a dimensão da corrupção, do fanatismo, do egoísmo. E é por isso que Agosto não é um noir no sentido estrito, mas sim um policial história que se eleva à categoria de ensaio metafísico sobre a solidão do homem que procura fazer o bem, manter a justiça.
Perdemos Rubem Fonseca, que retratou in excelsis as nossas maldades. Mas não podemos esquecer Agosto.