Título: Tempos Modernos: cerâmica industrial portuguesa entre guerras
Textos: Maria Helena Souto, Rita Gomes Ferrão, António Miranda & José Madeira Ventura
Design: Maria João Ribeiro (Bloodymary & Braun)
Editor: Museu Nacional do Azulejo
Páginas: 250, também edição em inglês
Preço: 20 €

A capa de “Tempos Modernos”

Com lamentável atraso sobre a exposição que lhe dá nome, decorrente no Museu Nacional do Azulejo entre Setembro de 2018 e Agosto de 2019 (desta vez, um justíssimo prolongamento), o livro que temos entre mãos perdeu a melhor ocasião para se fazer notado, interna e internacionalmente — há uma tiragem de 400 exemplares em língua inglesa —, por todos aqueles que puderam admirar de perto esta colecção particular de cerâmica portuguesa que agora enriquece, em depósito, as reservas de um dos principais museus nacionais. Num país em que a filantropia das artes não criou raízes (nem mesmo com o poderoso “fertilizante” Gulbenkian), o caso da nunca suficientemente elogiada doação de António Miranda e José Madeira Ventura à instituição sediada no convento da Madre de Deus mereceria até que essa exposição fosse desdobrada numa itinerância continental e insular que enquanto ajudasse a tornar mais conhecida a riqueza e diversidade da arte cerâmica de fábricas portuguesas, disseminasse também essa ideia generosa da partilha pública de colecções privadas. Mas, como bem sabemos — mas é preciso repetir, repetir, repetir sempre —, isso seria quase como pedir este mundo e o outro a instituições museológicas públicas quase paralisadas pela exiguidade de recursos e pela estreiteza de horizontes de trabalho e sonho que as projectem para lá dos serviços mínimos e do acatamento manso que a tutela ministerial lhes impõe ou recomenda, num círculo vicioso de efeitos nocivos tão facilmente previsíveis quanto persistentes…

Outro aspecto particularmente relevante, e que constitui novidade: as aquisições e avanços historiográficos da Colecção AM-JMV foram alcançados sobretudo por via de uma extensa rede de coleccionadores privados e mercadores de arte que tirando máximo partido de ferramentas contemporâneas — blogues da especialidade, leilões online e comércio electrónico sem intermediários — acelerou exponencialmente a expansão dos conhecimentos sobre fábricas, artistas plásticos e artes decorativas permitindo derrubar fronteiras nacionais ou continentais no entendimento da origem e recepção de artefactos, novas tendências estéticas e respectivas influências de época, sucessivamente renovadas em poucos anos. Além disso, nesse pequeno mundo de cumplicidades e fascínios, peças em duplicado são por essa via trocadas amiúde por outras localmente inacessíveis, criando uma contínua e interessantíssima mobilidade ou recomposição geográfica deste ramo do coleccionismo privado. São todos factores novos a darem impulso à história das artes decorativas, quase sempre depreciadas na chamada história da arte.

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Essa é, sem dúvida, a grande moldura destes Tempos Modernos, além do prazeiroso mas quase insano vício de coleccionar e — naturalmente — das preferências estéticas e da provável oscilante folga financeira dos dois coleccionadores, um historiador olisipógrafo e um bibliotecário académico, elementos decisivos para este núcleo de obras de cerâmica artística mas de produção industrial acumulado ao longo de três décadas, num ritmo e carga de investimentos que os museus portugueses desconhecem por inteiro. “O sentimento de que todo um ciclo civilizacional em que vivemos está prestes a acabar compele-nos a coleccionar para proteger” (p. 17) não poderia ter sido escrito por todos.

É por isso lícito que comece pelo elogio ao coleccionismo privado que se abre à fruição partilhada — depois de algum tempo e garantida a plena coerência do conjunto —, neste caso concreto facilitado pelo admirável grupo de Amigos do Museu Nacional do Azulejo, a que Miranda e Ventura pertencem. E à sua decisão meritória e clarividente de confiarem a curadoria da exposição à investigadora da arte cerâmica Rita Gomes Ferrão, permitindo boas conversas a três sobre que peças expor mas também a inclusão neste livro-catálogo do pormenorizado ensaio “Tempos Modernos: projectar o futuro dentro de casa”, que contextualiza a produção industrial portuguesa no cenário euro-americano que a inspirou e faz reconhecer “a paternidade e o parentesco de muita da produção nacional dessas duas décadas” (Miranda e Ventura, p. 15). Enquadramento esse também reforçado pela verdadeira aula de história da arte que é o texto de Maria Helena Souto “Art Déco em Portugal. Entre tempos: do fim da I Guerra Mundial aos epígonos”, e pelo glossário de fábricas e marcas nacionais preparados pelos coleccionadores. Faltou apenas — mas um apenas que incomoda — acrescentar-lhes um índice onomástico que rapidamente tornasse explícitos artistas de diferentes ofícios, empresários, fábricas, escolas, lojas, edifícios, museus, outras instituições, etc.

Rita Gomes Ferrão começa por nos elucidar das debilidades do ensino industrial nas primeiras três décadas de Novecentos e do predomínio duma “produção oficinal e artesanal com mão-de-obra barata e abundante” (p. 30), aplicada a copiar e adaptar modelos estrangeiros, sem verdadeira capacidade criativa, portanto. São além disso escolas de âmbito local, suprindo ao rés da porta as necessidades de fábricas de Aveiro, Coimbra, Caldas da Rainha (na Escola Fernando Caldeira, os professores são os irmãos Carlos e Gervásio Aleluia, proprietários da empresa homónima; p. 30), entre outras. Foi a extraordinária expansão da pintura a aerógrafo — iniciada na Alemanha, onde 90 fábricas de cerâmica chegaram a produzir com esta técnica — que veio revolucionar a louça de mesa e a decorativa portuguesa em finais dos anos 1920, quando fábricas como Sacavém, GAL e Lusitânia a adoptaram “extensamente” (p. 34). Digamos que, do erudito ao vernacular, era o correspondente doméstico da mudança de gosto visível na arquitectura de novos bairros em construção, na publicidade, na moda feminina, no ferro forjado, até no capismo de livros, para aquilo a que só muito mais tarde se chamaria a Art Déco. Rita Gomes Ferrão conclui o seu texto concordando com os dois coleccionadores, com a frase de belo efeito: “Em Portugal, a modernidade entrou pela cozinha” (p. 41).

Parece um tanto exagerado, pois além de muitos pratos, tijelas, taças, malgas, jarros, chávenas, serviços de chá e café ou de jantar — certamente de consumo alargado, e socialmente diversificado —, a produção cerâmica modernista estendeu-se rapidamente a outras áreas residenciais, como a sala de estar, com uma enorme variedade de jarras, talhas, floreiras e caixas, bibelots, até candeeiros e castiçais, ou a biblioteca, com curiosos aperta-livros de figuração zoológica. O centro de mesa de fiança pintada a prata reproduzido na p. 191 (“formato Veado”, 42 cm), criado pelos anos 1930 por Donald Gilbert, da Fábrica de Loiça de Sacavém, a talha de quatro asas da Vista Alegre (p. 54; Ângelo Chuva, 1922, 21,5 x 16 cm, P. 384) ou a estatueta Greta Garbo em biscuit com pintura a frio ou em faiança vidrada (pp. 205-5; 24 cm), de Alberto Morais do Valle para a Cerâmica Moderna das Caldas da Rainha, representam muitíssimo bem esses “tempos modernos” cujo expoente máximo me parece bem ser a própria loja Sacavém na Avenida da Liberdade, hoje demolida.

É mesmo um prazer folhear este livro e reconhecer o alcance desta colecção privada, com as peças aqui e ali ilustradas com os protótipos alemães, franceses, ingleses, italianos, austríacos e checos de que derivam ou com os quais têm afinidade estética, e com as fichas de obra fabril que as identificam. Num afã coleccionista que por certo não acabou, porque não pode acabar, estes Tempos Modernos cumpriram já de forma muito exemplar a sua função de partilha pública, ajudando a um maior esclarecimento das nossas artes decorativas. À suivre, como na banda desenhada…

A exposição Cerâmica Modernista vai estar patente na Casa do Design, em Matosinhos, em data a anunciar, depois de ter visto adiada a sua inauguração a 14 de Março.