Não é a obra-âncora do Museu Nacional de Arte Antiga, é a obra-âncora do país, defende o diretor do museu das Rua das Janelas Verdes, em Lisboa. “Quais são as obras-primas de Espanha? As Meninas, de Velázquez, e a Guernica, de Picasso. Nos Países Baixos é A Ronda da Noite, de Rembrandt. Mas há muitos países sem uma obra tão simbólica. Nós temos os Painéis de São Vicente, é quase a obra que encarna o espírito de toda a nação.”
Joaquim Caetano falava ao Observador ao fim da manhã desta segunda-feira, Dia Internacional dos Museus. Tal como dezenas de museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos, também o MNAA abriu ao público depois de semanas encerrado devido às medidas de confinamento. A ocasião serviu para revelar à imprensa pormenores sobre o processo de restauro das seis pinturas de meados do século XV atribuídas a Nuno Gonçalves. A ministra da Cultura, Graça Fonseca, e o diretor-geral do Património, Bernardo Alabaça, também estiveram presentes.
A reparação da obra começa a 1 de junho e será feita à vista dos visitantes, com os técnicos e restauradores a trabalharem por detrás de um vidro que vai do chão ao teto. O processo pode demorar três anos, mas não está excluído o prolongamento do prazo.
O diretor referiu-se ao facto de “muitos restauradores protestarem nas redes sociais, dizendo que não são animais de Jardim Zoológico para estarem a ser observados enquanto trabalham”. O restauro enquanto momento performativo “é anormal”, reconheceu, “mas acontece em obras com uma importância simbólica e histórica fundamental para as nações e os povos”. Ocorreu, por exemplo, com A Adoração do Cordeiro Místico, de Van Eyck, na Bélgica.
Sem orçamento próprio, o MNAA recorre ao apoio da Fundação Millennium BCP (mecenas do museu desde há vários anos) e irá ainda candidatar-se a subsídios públicos através, por exemplo, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e de programas da União Europeia. O mecenas vai doar 75 mil euros por ano, durante três anos, disse Joaquim Caetano — que assumiu o cargo há exatamente um ano, sucedendo a António Filipe Pimentel.
Os Painéis de São Vicente consistem num políptico de madeira de carvalho com pintura a óleo e têmpera e mais de dois metros de altura. Os especialistas têm-nos interpretado como a representação de São Vicente enquanto inspirador de “conquistas” e “cruzadas contra os infiéis” no contexto dos Descobrimentos.
Foram encontrados em 1882 na hoje designada Igreja de São Vicente de Fora, junto à Rua da Voz do Operário, em Lisboa, e originalmente não tinham a disposição atual, eram apenas quatro, com os mais pequenos interligados. Em 1909, o pintor Luciano Freire refez e retocou muitas zonas dos painéis que apresentavam lacunas, numa intervenção “muito ampla e extensa”, nas palavras de Joaquim Caetano. Mais de 110 anos depois, inicia-se uma nova empreitada. O diretor explicou que o restauro de Luciano Freire “está a dar problemas”.
“Ele utilizou óleos industriais que ao longo das décadas foram reagindo na cor e na textura, enquanto a pintura original, com mais de 500 anos, permanece estabilizada e não se alterou. Por exemplo, hoje temos rostos com um grande círculo na zona retocada por Luciano Freire, que está a ficar amarelo, enquanto o resto da face mantém a cor de pele. Além disso, o verniz colocado em 1955 está hoje muito amarelecido, um processo de degradação normal, e a moldura atual esconde um pouco os limites da pintura, por isso será substituída por outra menos invasiva”, explicou o diretor do MNAA.
Pode demorar mais de três anos
Será que o restauro à vista serve como chamariz de visitantes, mais ainda numa fase de previsível quebra de afluência devido ao medo do coronavírus? “Não pensámos muito nisso”, respondeu ao Observador o diretor do MNAA. “Temos um restauro projetado para três anos, mas será o próprio restauro a comandar os prazos. Depende de encontrarmos problemas mais ou menos complicados. Pode demorar três anos ou quatro ou cinco, eventualmente. Se isso acontecer, tratando-se da obra que é, não queríamos retirá-la por completo da vista dos visitantes. Foi mais por aí que decidimos.”
Joaquim Caetano garantiu que a tarefa será “profunda, porque na verdade o restauro de há 110 anos foi feito sem material analítico hoje existe”, mas garantiu que “as figuras representadas não vão mudar”. Se há riscos? “Há sempre, é uma intervenção muito difícil”, assumiu.
Neste projeto o MNAA conta com o apoio científico da conservadora e museóloga Mercês Lorena, do Laboratório José de Figueiredo (da Direção-Geral do Património), e do Laboratório Hércules (da Universidade de Évora), além de consultores do Museu do Prado, do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, da National Gallery de Londres e da Universidade de Gante, entre outros. A equipa de restauro é liderada pelas restauradoras Susana Campos, Teresa Serra Moura e Rita Oliveira.
Ao que revelou Joaquim Caetano, dirigindo-se à ministra da Cultura, a Antena 2, o jornal Público e a TVI vão seguir de perto o processo de restauro. Graça Fonseca respondeu que seria interessante recorrer a uma produtora internacional para fazer o making of do processo e sugeriu uma conversa para esse fim com o secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média, Nuno Artur Silva.
Nem todos os teatro nacionais estão fechados até setembro
A ministra da Cultura chegou ao museu das Janelas Verdes às 11 em ponto e foi levada pelo diretor a visitar por breves instantes o desenho a carvão “Estudo de Figura para A Morte de Camões“, de Domingos António de Sequeira, a mais recente aquisição do museu. Depois passou pela nova exposição que abriu esta segunda-feira ao público, onde desenhos do artista visual contemporâneo Julião Sarmento dialogam com desenhos renascentistas. Antes de chegar à ala dos Painéis de São Vicente recebeu explicações sobre pinturas de Cristóvão de Figueiredo ou Garcia Fernandes.
Com a obra atribuída a Nuno Gonçalves em fundo, Graça Fonseca falou sobre a necessidade de os portugueses “retomarem a confiança para saírem à rua e voltarem a alguma normalidade”. A governante reconheceu que, no contexto do pós-pandemia, “vamos ter menos visitantes estrangeiros e isso significa uma quebra assinalável de receitas” dos museus, no entanto, “as estimativas ainda não estão fechadas”.
“Estamos a tentar construir um programa a nível nacional em que os museus e monumentos, além da programação já prevista de exposições, tenham outras atividades. Nos que têm espaços verdes, espaços ao ar livre, é possível programar música, teatro, leitura”, disse Graça Fonseca.
Explicou que até quinta-feira ficam fechadas as regras de reabertura de teatros, cinemas e recintos de espetáculos, que acontece a partir de 1 de junho. “É importante que após a publicação destas regras sejam criadas condições para a programação cultural se realizar em todo o país. Temos mesmo de combater o receio das pessoas de regressar às ruas”, sublinhou, desmentindo que os teatros nacionais estejam fechados até setembro.
“O único teatro nacional que anunciou isso, e foi tomado pelo todo, foi o D. Maria II. Quer o Teatro Nacional de São João quer o Opart [Teatro Camões e Teatro Nacional de São Carlos] vão ter programação em julho, agosto e setembro”, afirmou Graça Fonseca. Deu como exemplo o Festival Ao Largo, que se realiza todos os anos no Largo de São Carlos, em Lisboa. Este ano será noutro espaço, a anunciar em breve.
Sobre as críticas de vários setores à alegada insuficiência de apoios do Ministério da Cultura às artes e à comunicação social, no contexto da pandemia, Graça Fonseca reafirmou o que tem dito nas últimas semanas: “Nenhum outro [ministério] lançou medidas de emergência setoriais, apenas a Cultura o fez.”
Ao Observador, a ministra indicou que só no fim do mês terá números sobre quantas editoras e livrarias recorreram ao anunciado apoio de 400 mil euros, cujo prazo de candidaturas terminou na sexta-feira, e adiantou que apesar do contexto de crise de saúde “não está comprometida” a verba de 500 mil euros em 2020 para compra de obras para a Coleção de Arte Contemporânea do Estado.