Foi preciso esperar pelo discurso final de André Ventura, num autocarro a servir de palco improvisado, estacionado junto à Praça do Comércio, para perceber que o maior receio do líder do Chega nunca foi, por um lado, ter militantes infiltrados da extrema-direita na manifestação e, por outro, ouvir insultos ou sofrer retaliações de elementos da esquerda radical, na tentativa de boicotar a marcha “Portugal não é Racista”, agendada para as 14h deste sábado.
O maior pesadelo do deputado do Chega, que por momentos parecia que se iria concretizar, era descer a Avenida da Liberdade, agarrado à faixa que dava nome à manifestação, com menos de 500 pessoas atrás. E por isso, durante o discurso final, duas horas depois do arranque da marcha, repetiu duas vezes para os 1200 apoiantes ali presentes, quase em tom de desabafo: “Obrigado por não me deixarem descer a Avenida sozinho”. E a todos garantiu que o tempo do domínio da esquerda em Portugal, “se não acabou, está a acabar”. “Por muitas ameaças que me façam, este movimento nacional já não vai parar, nem se vai vergar”.
Esta era a mensagem que André Ventura queria vincar. A de um partido anti-sistema, que pretende “reconstruir o regime e instalar a IV República”. E conseguiu transmiti-la, não só aos militantes e simpatizantes do Chega mas a toda a comunicação social ali presente.
Não foi, afinal uma “maioria silenciosa”, com a que sonhava, nem esteve perto dos milhares de manifestantes que desceram algumas das principais ruas de Lisboa, a 6 de junho, na marcha contra o racismo “Vidas Negras Importam”, a evocar os protestos nos Estados Unidos. Mas não ficou, no entanto, muito aquém da estimativa anunciada pelo deputado – 1500 pessoas. O líder dá volta aos números e reage à desvantagem: “Hoje já somos muitos, amanhã seremos milhões”, concluiu, citando Sá Carneiro.
Mas em cima da hora agendada para o arranque da manifestação, apenas duas ou três centenas de manifestantes, nem todos militantes do Chega, aguardavam pela chegada de André Ventura – alguns de t-shirt do partido, outros só com a bandeira de Portugal – mas quase todos visivelmente incomodados com a falta de participantes e, ao mesmo tempo, com o “aparato policial” que se ia fazendo notar na zona do Marquês de Pombal. “Há mais polícias do que manifestantes”, ouvia-se entre as bases do partido, à medida que as carrinhas do Corpo de Intervenção, e os veículos das Equipas de Intervenção Rápida, iam chegando ao local.
Helena, médica do centro de saúde da Amadora, avançava com uma explicação: “Conheço pessoas que gostavam de estar aqui, que concordam com o discurso de André Ventura mas têm receio de ser associadas ao Chega. Podem não estar cá hoje, mas quando chegar a altura, vão votar”, assume a profissional de saúde, que não é militante mas escolheu o Chega nas últimas eleições.
Ao seu lado, Maria, trabalha num escritório de advogados e, apesar de ter votado no PCP nas legislativas, o discurso do Chega faz-lhe, agora, mais sentido. “Votava no Partido Comunista porque fazia oposição aos governos. Só que, agora, faz cada vez menos. Só vejo o André Ventura a criticar certos comportamentos, como a vandalização das estátuas”, diz, acrescentando que ficou chocada quando viu a estátua do fundador do escutismo, Baden-Powell, com a cabeça decepada, em Coimbra. “Fui guia e faz-me impressão ver que certas atitudes, hoje em dia, não são repreendidas”.
Nessa fase, a organização do evento desdobrava-se em justificações, fazendo crer que os militantes mais idosos tinham sido aconselhados a não participar por motivos de “saúde pública”. Foi visível o alívio com que arrancaram a marcha, em direção à Avenida da Liberdade, já com quase mil manifestantes. Bruno Lobo era um deles. Vive no Montijo, não é militante, mas vê no Chega a mudança de que o país precisa. “Estou aqui, hoje, para mostrar que quem é de direita não pode ter medo ou receio. A esquerda não nos dá espaço para expressarmos as nossas opiniões. Com esta manifestação mostramos que não vamos ceder”.
“Portugal, Portugal”, “Polícia quer respeito” ou “Políticos elitistas, Portugal não é racista”, foram algumas das frases proferidas entre os populares. Só se fazia silêncio quando André Ventura respondia às perguntas dos jornalistas ou entrava em direto para os canais de televisão. Havia mesmo quem gritasse alto para todos ouvirem: “O André está a dar uma entrevista. Silêncio”.
A marcha, que foi organizada tendo como pano de fundo o racismo, acabou por não ser mais do que uma manifestação do partido Chega. Nada a distinguiu de uma marcha política, focada, neste caso, nos temas das minorias – com a mensagem “Ter direitos é ter deveres” – ou nas questões relacionadas com as forças de segurança, explanadas na faixa “As polícias merecem respeito”.
Duas pessoas identificadas pela PSP
Se nas ruas da baixa de Lisboa, em especial a que liga o Rossio à Praça do Comércio, revelou-se impossível manter o distanciamento social, apesar de quase todos os manifestantes estarem de máscara, no Terreiro do Paço, já perto do palco, a organização colocou uma fita branca no chão (inspirada, certamente, na manifestação do 1º de maio) para garantir que os populares ouviam o discurso do líder respeitando as regras da Direção-Geral de Saúde.
Durante todo o percurso, seguiram-se à risca as indicações do Comando Metropolitano da PSP de Lisboa – com quem o partido reuniu, por diversas vezes, para acertar a estratégia de segurança – de forma a evitar confrontos e violência. A chegar aos Restauradores, a marcha ficou marcada por um incidente, quando um popular fez a saudação nazi à passagem de André Ventura, tendo sido imediatamente cercado pela polícia.
Segundo o porta-voz do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, Artur Serafim, e citado pela Lusa, duas pessoas que não participavam na manifestação foram identificadas por comportamentos inadequados contra os manifestantes, uma por “comportamentos obscenos” e outra por “comportamentos agressivos”.
O comissário acrescentou, ainda, que cerca de 150 elementos de diferentes valências da PSP estiveram destacados na manifestação. Este oficial da PSP afirmou, também, que “os manifestantes respeitaram as normas da Direção-Geral da Saúde no que toca ao distanciamento devido à Covid-19”.
A marcha, que chegou a estar prevista terminar no Palácio de Belém, a residência oficial do Presidente da República, foi obrigada a encurtar o percurso devido às “questões de segurança”, que acabaram por não se concretizar. Eram dois os riscos identificados, tanto pelo Chega como pelas forças de segurança: por um lado, a mobilização de manifestantes da esquerda radical para o Marquês do Pombal, e por outro, a infiltração de elementos de extrema direita, relacionados com Mário Machado, antigo líder da Nova Ordem Social e dos hammerskins.
Há ainda outro aspeto da manifestação que, também, não se concretizou, e que André Ventura antecipava ao Observador dias antes da marcha deste sábado. “As últimas cerimónias ou momentos festivos da esquerda a que assistimos, indignaram as pessoas. Sabemos que isso é verdade porque fizemos o nosso trabalho de casa antes de convocar esta marcha. Estou convicto de que vamos fazer um ponto de viragem na história das manifestações de direita”.
PSP identifica duas pessoas por comportamentos inadequados contra manifestação do Chega