Quando a estátua de D. Pedro IV foi içada em Lisboa, a 11 de abril de 1870, alguém se lembrou de lhe embutir na base, dentro de garrafas de vidro, testemunhos escritos do que se passou nesse dia e uma fotografia alusiva ao momento. Esse alguém era nada menos do que o filho de Germano José de Salles, mestre de cantaria que ajudou a esculpir a estátua a partir dos planos de dois franceses. As garrafas foram ali encontradas em 2001, durante as obras de reconversão da Praça Rossio, e o conteúdo ficou à guarda do Museu de Lisboa (antigo Museu da Cidade), que o tratou, estudou e exibe agora pela primeira vez.
A exposição tem por título O Monumento a D. Pedro IV e é inaugurada nesta quinta-feira no Palácio Pimenta, ao Campo Grande, onde se situa o Museu de Lisboa. Prolonga-se até 10 de janeiro. Integra o programa “Relembrar a Revolução de 1820: Liberdade e Cidadania”, que o Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa tem em curso ao longo deste ano. O bilhete normal custa 3,5 euros e só são permitidas oito pessoas de cada vez.
A abertura estava prevista para 29 de abril — nesse dia, em 1870, a estátua foi inaugurada e nesse dia também, em 1826, D. Pedro IV outorgou a Carta Constitucional que abriu caminho à monarquia liberal —, mas a pandemia determinou o adiamento e houve apenas uma pré-inauguração virtual, através do Facebook.
A exposição será tanto mais atual quanto o significado de estátuas e esculturas públicas tem vindo a ser questionado um pouco por todo o Ocidente, com pichagens e derrubes no contexto da revolta provocada pelo homicídio, às mãos da polícia, do cidadão negro americano George Floyd, a 25 de maio. Figuras históricas até agora aceites pela sociedade em geral estão a ser reavaliadas nos percursos e atitudes face à escravatura, ao racismo e ao colonialismo, e com isso as suas representações icónicas. O mesmo poderá acontecer com o monumento a D. Pedro IV?
Concursos e controvérsias
Além dos documentos das garrafas de vidro, a exposição inclui o busto do rei, mandado fazer pela autarquia na segunda metade do século XIX e só há pouco tempo integrado no acervo do Museu de Lisboa. Ou ainda o projeto de 1821 de Domingos António de Sequeira para um monumento no local onde hoje se encontra a estátua. “O tema permitiu-nos olhar para o nosso próprio acervo, porque somos um museu centenário e temos muito material que podia ser carreado para a exposição”, explica ao Observador um dos comissários científicos da mostra, o historiador Paulo Almeida Fernandes, que aqui trabalhou em conjunto com Aida Nunes e Henrique Carvalho.
“Este monumento estava pensado desde a Revolução Liberal de 1820, que fez do Rossio a praça-símbolo por ter sido ali que se juntaram os movimentos do Porto e de Lisboa”, sintetiza Paulo Almeida Fernandes. “Seria um monumento aos Vintismo, à Revolução de 1820, e só depois da morte de D. Pedro IV, em 1834, é que se pensou num monumento ao rei.”
Como escreveu o historiador José-Augusto França em 1980, em Lisboa: Urbanismo e Arquitetura, “o vulto do Rei-Libertador era aguardado” no centro do Rossio desde que ele tinha morrido. Mas a empresa foi demorada. Houve três concursos públicos lançados pelas cortes, várias comissões de gestão e muitas polémicas.
De forma resumida. O primeiro concurso data de 1841, “aí já se diz que a estátua tem de incluir uma coluna colossal, mas sem imitar as representações de Napoleão”, segundo o comissário científico. Houve críticas várias, incluindo de Alexandre Herculano, porque se supunha que o vencedor já estava escolhido à partida e que seria o arquiteto italiano Fortunato Lodi (1805-1883), o mesmo que irá desenhar naquela praça o Teatro Nacional D. Maria II. Houve 20 concorrentes, projetos expostos nos Paços do Concelho, mas nenhum foi avante. Em 1850, segundo concurso internacional, aberto durante dois meses e com os franceses Henri Duponchel e Jean-Jacques Feuchères como vencedores. A intenção também fica por concretizar.
Finalmente, uma terceira tentativa, em 1864. “Foi um concurso internacional exemplar, concorreram 87 projetos de praticamente toda a Europa: Itália, Rússia, Inglaterra, França, e de vários portugueses. Houve uma comissão de acompanhamento, um júri bem preparado, e todas as propostas foram avaliadas sem se saber o nome dos autores, para não influenciar a escolha”, conta Paulo Almeida Fernandes. Venceram o arquiteto Gabriel Davioud (1824-1881) e o pintor e escultor Élias Robert (1821-1874), ambos parisienses. Enviaram para Lisboa um modelo em gesso da base do monumento, idêntica à que hoje lá consta, e esse modelo, recuperado há pouco com a colaboração da Faculdade de Belas-Artes, onde se encontrava quase esquecido, também pode ser visto na exposição do Museu de Lisboa.
O monumento faz agora 150 anos. Inclui quatro figuras femininas que simbolizam características atribuídas pelos autores ao monarca, Fortaleza, Justiça, Moderação e Prudência, enquanto sobre o capitel coríntio se encontra a estátua de bronze propriamente dita, com coroa de louros, manto da realeza e a Carta Constitucional. A cerimónia de inauguração deu-se a 29 de abril de 1870, com pompa e circunstância, muitas centenas de lisboetas anónimos e a presença de Élias Robert. A praça passou a ser oficialmente chamada Dom Pedro em 1836 e de D. Pedro IV a partir de 1971 — mas continua a ser conhecida popularmente como Rossio.
“Olhamos para a estátua e não podemos deixar de a comprar com a estátua equestre de D. José, no Terreiro do Paço, que é baixa, com uma figura majestática, a assinalar o auge do Absolutismo. Por oposição, D. Pedro IV está a um nível alto, cerca de 27 metros, é como se observasse o Tejo e D. José ao fundo e anunciasse um novo tempo liberal, por oposição ao Absolutismo”, explica o comissário. “Há uma clara antítese entre as duas. Desde o primeiro concurso, quando ainda nem se falava de representar ali D. Pedro IV, uma coisa era certa para os liberais: não queriam qualquer relação com o regime anterior.”
Áreas cinzentas e figuras ambivalentes
Dom Pedro IV, de seu nome Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Serafim de Bragança e Bourbon, nasceu no Palácio de Queluz a 12 de outubro de 1798 e aí morreu a 24 de setembro de 1834.
Viajou para o Brasil com a família real em 1807, depois da primeira invasão francesa, e proclamou a independência do Brasil em 1822, sendo o primeiro imperador da antiga colónia portuguesa. Rei de Portugal por apenas dois meses, entre março e maio de 1826, protagonizou uma das maiores mudanças políticas do nosso século XIX, o início da monarquia constitucional. Viria a ser sepultado no Panteão Nacional, em Lisboa, e trasladado para o Brasil em 1972.
À luz da revisão a que diversas figuras históricas têm sido sujeitas é previsível uma contestação ao monumento do Rossio? “Hoje olhamos para a história a preto e branco, como se houvesse apenas bons e maus, mas também há áreas cinzentas e figuras ambivalentes”, observa Paulo Almeida Fernandes. “Até figuras como Churchill, ao abrigo dessa releitura mais radical que hoje se promove, se tornam discutíveis. Claro que as personalidades históricas têm sempre dimensões com as quais não concordamos se analisadas a partir dos valores atuais, mas a história não faz isso, a história procura entender e sobretudo contextualizar.”